Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice



Ilda Crugeira (Portugal). Museologia e Património
Investigadora do Gabinete de Estudos Olisiponenses

Câmara Municipal de Lisboa.

ILDA CRUGEIRA

Exilio: a palavra e a esperança

Projeto «Sarmento Pimentel»

 
 

                                               “A Esperança é qualquer coisa que leva tempo a perder”

No dia 16 de Maio de 1974, pouco depois do meio-dia, chegou ao aeroporto de Lisboa João Sarmento Pimentel, após um exílio de 47 anos no Brasil. Aguardavam-no figuras tão incontornáveis na luta contra o Estado Novo quanto ele: Mário Soares, Maria Barroso, Raul Rego, Miguel Urbano Rodrigues, Urbano Tavares Rodrigues e Lúcio Tomé Feteira, representantes da Junta de Salvação Nacional, de partidos políticos, ex-exilados políticos e amigos.

“A maior homenagem que posso ter é a liberdade e a democracia”, frase proferida por Sarmento Pimentel, em parangonas saídas nesse dia no jornal República, tal como um outro artigo, intitulado “Um Grande Capitão” da autoria de Victor Cunha Rego, referindo a chegada do “capitão”, com 86 anos, “herói na África, que conheceu palmo a palmo, muito antes de os soldados portugueses que lá estão agora terem nascido. Foi herói na Flandres muitos anos antes de nós termos nascido. Derrubou a monarquia no Porto e consolidou a República (…) Sem nunca dar importância descabida às polémicas ideológicas, praticando a política na sua dimensão concreta, foi para nós, todos, que andámos pelo mundo sem direito de voltar a Portugal durante décadas, um exemplo”.

No dia seguinte, foi recebido carinhosamente na cidade do Porto, saudando o povo, de uma das janelas da estação da Campanhã, com as palavras “Temos por obrigação defender a República e a Democracia”. Um pequeno discurso, canalizado numa narrativa sobre a vida de exilado e combatente na revolução de 5 de Outubro, culminou com o cântico do hino nacional por parte da multidão, constituída por amigos, correligionários e muita população, alguma proveniente do Eixo - Eixes, sua terra natal; muitos traziam cravos vermelhos, bramindo “vitória”.

Inolvidáveis foram os primeiros dias que se seguiram ao 25 de Abril, cumulados por uma “alegria imensa” (1), uma sensação galvânica de sentir-se “como parvo, a rir-se para toda a gente”, com o corolário de ser abraçado e beijado nas ruas e, quem não sabia de facto quem ele era, vinha colocar-lhe um cravo na lapela; outros, os que tinham visto o seu rosto na televisão ou nos jornais, pediam-lhe um autógrafo; uma catarse com o passado de exilado político, iniciado no dia 7 de Abril de 1927, ao desembarcar na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, na sequência da fuga desencadeada pela Proclamação revolucionária de 3 Fevereiro de 1927, de que foi um dos quatro signatários (2), contestando a situação política iniciada a 28 de Maio de 1926.

Clichés da sua história de vida

No outro lado do Atlântico, reconstruiu a vida “desafogadamente”, com um nível aproximado ao de Portugal. Na primeira edição do seu livro “Memórias do Capitão”, adotado nas universidades brasileiras na cadeira de Literatura Portuguesa, referiu o primeiro ano, no Rio, sem trabalhar e os passeios com o almirante Gago Coutinho, aquando das “escapadelas” deste ao Brasil. Os catorze anos em que trabalhou na empresa “Cia. Souza Cruz”, permitiram-lhe, inclusive, manter os quatro filhos a estudar no Colégio Mackenzie. O encontro com o multimilionário português Lúcio Tomé Feteira, o grande industrial, homem generoso e inteligente, também ele expatriado, proporcionou-lhe novas perspetivas económicas, ingressando, durante uma década, numa arrojada aventura, pautada pelos meandros dos “altos negócios”, vindo a desempenhar a função de co-fundador da primeira fábrica de vidro plano do Brasil. No país de acolhimento, veio a tornar-se, também ele, o protótipo de português bem-sucedido, um íman de emigrantes audaciosos que, em grande número, afluíram á sua porta, a perscrutar o ingresso na Companhia em que trabalhava.

Num registo intrinsecamente contestatário, “contra tudo e todos”, que acompanhou Sarmento Pimentel desde a escola, os seus artigos na “Seara Nova” (3) incidiram predominantemente sobre a instrução militar, o analfabetismo, Angola e Brasil, e neles, em particular na coluna “Cartas do Brasil”, a sua voz acutilante fez-se ouvir, recorrentemente, sobre a emigração confrangedora e “à doida que cada vez mais compromete o futuro da grei”, constituída por ”cardumes de gente miserável e andrajosa” (4); insurgiu-se contra o afluxo da mão-de-obra analfabeta, totalmente impreparada e desprotegida, sugerindo veementemente, a proibição da mesma.  

Na sua residência de São Paulo, onde a família estava radicada (e passará a residir oficialmente a partir de 1954), realizavam-se tertúlias com a participação de uma plêiade de intelectuais portugueses, nomeadamente Jaime Cortesão, Fidelino Figueiredo, Jorge de Sena e Fernando de Lemos mas, também, de intelectuais brasileiros, como Paulo Duarte, Júlio de Mesquita Filho, o professor António Cândido, Sérgio de Buarque de Holanda, Almeida Prado, Florestan Fernandes, Lygia Fagundes Telles e Rui Coelho (5).   

Nos primeiros doze anos a residir no Brasil, efetuou o pagamento da renda da casa em Portugal e permaneceu com as chaves no bolso (6), com a expetativa de um volte-face no país. Na correspondência confiscada pela Pide, endereçada, na maior parte, para o amigo Hélder Ribeiro, residente no Porto, a nostalgia e a convicção no regresso enquadram o discurso persistente pela queda do Estado Novo e subsequente deflagrar da democracia e a reimplantação da liberdade. A herança da ditadura, no seu entender, estava a arraigar no povo português, genuinamente bondoso, o despoletar de um espírito vingativo, inquisitorial, sem respeito pela dignidade humana. O primeiro documento que consta do Processo Individual da PIDE /DGS de João Sarmento Pimentel e do irmão Francisco refere-se a um panfleto intitulado “Intelectuais Portugueses Livres Denunciam o Terror Salazarista”, extraído do jornal brasileiro “Última Hora”, publicado no Rio de Janeiro, a 28 de Março de 1959; o último documento do processo tem por data 12 de Outubro de 1973, no qual refere que virá a Portugal no início do verão de 74 “se os deuses e os donos (expressão sublinhada pela censura) não me embargarem as passadas de emigrado político, inimigo do Estado Novo e cambada fascista (…) necessitado moralmente de um derradeiro olhar á pátria madrasta, para não a levar com rancores no magoado coração”. O discurso inexoravelmente saudosista sobre a Pátria, alicerçado por uma procrastinada, mas inequívoca, esperança de que haveria de pisar o solo português antes de falecer, são angustiantemente reincidentes ao longo das cartas que integram o processo, folha a folha. Deprimido pela morte da mulher, a “doce e corajosa companheira” de meio século, a vinda a Portugal “contribuiria para suavizar a (…) angústia, sofrimento, desânimo” (7); acontecimentos comezinhos, como o casamento de uma sobrinha, em Londres (8), têm o espectro da ameaça, de um perigo latente, tendo o irmão Francisco sido dissuadido, por pessoa amiga, a “desviar a rota” de Portugal, a caminho de Inglaterra, em virtude do processo a decorrer, na “Formosa Estribaria”, contra ele e todos os envolvidos no manifesto do cessar da guerra em África e independência das colónias. Durante catorze anos as palavras de Sarmento Pimentel foram criteriosamente auscultadas em surdina pelos agentes da Policia de Informação sendo que, nos últimos anos, o “epigrafado” tinha a convicção de ser alvo de vigilância, referindo explicitamente na carta a um amigo, o facto de esta ter chegado mais de um mês depois, em correio comum, questionando, com ironia “se a minha prosinha de fraterna amizade se perdeu no labirinto dos carteiros" (9). Na mesma missiva, dactilografada pelos agentes da Pide, refere ainda, a solicitação a Mário Soares, aquando da sua passagem pelo Brasil com destino aos Estados Unidos, para que interviesse, relativamente á apreensão em Portugal, do primeiro volume das “Memórias”.

                                     “o drama do meu exilio foi sempre este complexo do regresso”

Em finais de Maio de 1950, na sequência da amnistia aos presos políticos e por condição imposta ao “ditador”, para o ingresso de Portugal na O.N.U., pisou o solo português, após “23 anos e alguns meses” de exílio, “para Inglês ver” (10). Em Lisboa, visitou amigos, promoveu encontros com companheiros, alguns dos tempos da 1ª Guerra Mundial (remetidos para a situação de reforma compulsória), intelectuais, ostracizados e espezinhados pelo regime e definiu parâmetros, com os homens da “Seara Nova”. Percorrido o norte do País, regressou á capital, e após cinco meses de permanência em Portugal, regressou ao Rio, no dia 15 de Novembro. De volta a casa, reencontrou a vida de exilado político, formatada na vida de um dinâmico homem de negócios, no enleio da indústria do vidro plano, o trabalho no escritório e a inspeção á fábrica, em São Gonçalo, “do outro lado da Guanabara”; ao final do dia, as “visitas ao consulado dos exilados”, onde as publicações periódicas com notícias da Metrópole afluíam sem demoras, bem como cartas de amigos e outras informações, inevitavelmente de cariz político mas, também, curiosidades detalhadas sobre a situação de correligionários que, estoicamente, ainda não tinham ido aumentar o número de presos nas cadeias de Portugal ou deportados para as Colónias. Retomou as sistemáticas viagens de avião, “das sextas para São Paulo e no primeiro de segunda para o Rio”. Do registo das cartas a Fortunato Cardoso, diretor de “O Comércio do Porto”, seu cunhado, vê-se que partilha a intimidade familiar, a debilidade física da mulher, Isabel, à beira dos oitenta anos, e a visita diária do neto, filho do Leopoldo, que vive uns andares acima; os fins- de- semana, passados no campo, num local emprestado pelo amigo Lúcio Feteira. O sentimento empolgante e honroso de integrar a equipa de Feteira, constituída por portugueses, nomeadamente os engenheiros João Lopes Raimundo e Cândido Souto Maior Torres Vouga, o comandante Jaime de Morais, Francisco Rafael Rodrigues, e comandante Campos Mota; por belgas, como o técnico Maurício Lefevre e o engenheiro Octávio Verry, tendo a colaboração do Dr. San Thiago Dantas e Hermes Lima, brasileiros especializados na área da jurisdição, os conceituados advogados Renato Tocoulat e Alcy Demillecamps, bem como industriais António Prado Júnior e Sebastião Pais de Almeida, cujo corolário desse império incidia no grande industrial português.    

Após a Revolução de 1974, João Sarmento Pimentel voltou ao Brasil, a segunda Pátria, onde os filhos cresceram e viviam, vindo a falecer em São Paulo com 99 anos, no dia 13.10.1987. A agrura com que viveu, com resiliência, será, provavelmente, inerente ao exilado político, especificada no segundo volume das “Memórias do Capitão”: “O drama do meu exílio foi sempre este complexo do regresso. Nunca quis. Ou melhor, nunca pude radicar-me em profundidade nesta terra acolhedora de Piratininga, que estimo e me interessa e conheço. Mas como sendo de próximos parentes, não a minha. Já aqui cheguei tarde de mais para me adaptar finalmente, ficar aqui, ser paulista de corpo, alma e coração. Sou-o, sim, por gratidão sincera”.


 (1) Sarmento Pimentel Ou uma Geração Traída. Diálogos de Norberto Lopes com o autor das “Memórias do Capitão”, Editorial Aster, Lda. 1963 (Edição brasileira), pág. 201.

(2) Jaime de Morais, Jaime de Cortesão e José Domingues dos Santos, constituíam os restantes elementos.

(3) Escreveu o primeiro artigo a 20 de Janeiro de 1924, vindo a integrar o corpo diretivo de 09 de Abril de 1924 até ao final do ano de 1957. A renovação da mentalidade da elite portuguesa e a criação de uma opinião pública nacional que promovesse e apoiasse as reformas necessárias integravam alguns pressupostos do seu programa.

(4) Seara Nova, Nº 112, 22.12.1927.

(5) Sarmento Pimentel Ou Uma Geração, pág. 150-151.

(6) Testemunho de uma sobrinha, Ana Luísa Janeira.

(7) Carta dirigida a Sant'Anna Dionísio, 17 Julho 1970.

(8) Carta dirigida ao Coronel Hélder Ribeiro, 24 de Outubro de 1968.

(9) Carta ao Dr. J. Sant'Anna Dionísio, 26 Fevereiro 1970.

(10) Carta a Fortunato Cardoso, 17 Janeiro de 1973. Menciona a entrada provisória, nessa data, e o facto de voltar a ter passaporte, recusado, durante, quase cinquenta anos.

 
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Maria Estela Guedes
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