Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice



ANTÓNIO BARROS

Miguel d'Alte . Memento mori

M e m e n t o   m o r i   -   ser artista, ou o medo de ninguém

Miguel d'Alte não era uma força da natureza. Era a própria natureza. E é nesta condição naturae que o artista nele se fazia dizer.

Mas o que é um artista? Já que sabemos depois de Maciunas quem é o artista.

Foi muito cedo, muito no início da minha vida, que me apresentaram lá em casa um artista. Era António Areal. Ainda recordo a imagem dura no contraste entre o rosto branco leucémico e o negro sobretudo gigante até aos pés. Disse-me o meu pai - é um artista e vai morrer.

Depois foi a vez de um outro artista que diariamente entrava pela porta grande do jardim. Era António Aragão. Rasgava as revistas lá de casa para sacar as palavras que colava em tábuas para fazer textos. Eu permitia-me ficar horas a olhar. Era o processo. Nunca o levei a sério. Mas aprendi uma lição - nunca mostres o processo.
Aragão acabou por ir viver com os índios huicholes, no México. Era um sonho antigo.
Quando lá chegou, levaram-lhe ao "Chefe" que lhe perguntou o que sabia ele fazer. Aragão disse que era artista- Artista, então vais diariamente levar as vacas a pastar e trazes ao pôr-do-sol.

Miguel d'Alte não era uma força da natureza. Era a própria natureza. E é nesta condição naturae que o artista nele se fazia dizer.
Mas como com estes exemplos não ficou claro para mim o que era um artista, fui um dia até Cerveira - à Bienal de Arte.

Fui de Comboio. Depois de longas horas de viagem saí julgando ter chegado. Mas não. Obrigava ainda andar a pé rompendo a escuridão. Era noite.

Cheguei ao centro da Vila, jantei reservado, mas depois fui a um café central à procura dos artistas.

Entrei. O café estava cheio de gente rural. Barulhenta.

No contraste, em silêncio, um solitário engabardinado bebia delicadamente de um minúsculo copo de vidro barato. Um copo que lhe escapava entre os dedos. No rosto contido uns óculos de lentes redondas tão grossas quanto o copo. Na mesa um café já bebido.
A personagem destacava-se de todos os outros. Pensei - será um artista? A esculturalidade da figura parada e triste dizia-me que ele era um artista.

À minha mesa perguntaram-me o que queria tomar. Igual àquele indivíduo. Com um bagaço? Sim!

Bebi a bica. E copiei um gole de bagaço. Tive a sensação que ia explodir. Álcool puro. Insuportável.

Pensei como seria possível ele conseguir? Ou será que não era um artista? Admiti então.

E teria eu que tanto sofrer assim para ser artista?

Fui esclarecido só no dia seguinte. Apresentaram-me - este é o Miguel d'Alte. Mas eu já tinha ganho por ele um grande respeito. Ficámos amigos. Nunca mais bebi bagaço.
Anos depois convidei-o a ir a Coimbra fazer uma exposição num projeto marginal que criei na Alta da Cidade. "Califa Tempo de Cultura". Era um quase bar, quase casa de família, quase oratória.
Cada dia tinha uma vocação. E foi a partir do Dia da Pintura que surgiu Miguel d'Alte. Os quadros ficavam um mês na parede. Recordo a delicadeza daquela paleta de cores tão sugadas da terra. Sentia-se até uma humidade nos olhos. Emocionavam-me aqueles cenários de viagem para lugar nenhum. Uma viagem sem fim. Uma frescura de lama.
Toda aquela paz. Sossegava-me.
Precisava agora desse cenário gerado pela pintura de Miguel d'Alte para me acolher a alma. E todo aquele silêncio confortante.
Foi com Miguel d'Alte que aprendi o que era um artista. Depois de Areal e Aragão.

Com D'Alte desenhei este triângulo de definição do que é ser artista. Aprendi com ele.
Aprendi, de Miguel, quanto vale ser genuíno. Mas também quanto isso custa.
Aprendi aí também o medo. O medo de ninguém.

As suas pinturas são um medo de ninguém. Húmidas. Sinto frio. Tanto frio por vezes quando olho para elas.

Todos os anos, em dezembro, há um dia em que faço um esforço hercúleo para não me lembrar dele. Do Miguel. Porque há uma história que não vou contar.

Mas lembro-me. Lembro-me tantas vezes do Miguel d'Alte. Vejo-o tantas vezes na natureza. Que reza. Nessa oratória.

António Barros
Barcelona, 2016
António Barros • Nasceu em 1953 - Funchal, Ilha da Madeira.
Estudos: Facultat de Belles Arts, Universitat de Barcelona; Universidade de Coimbra. Vive e trabalha em Coimbra.
Em "Artistas Portugueses na Colecção da Fundação de Serralves", é o director do Museu, João Fernandes, quem enuncia: "António Barros é dos nomes relevantes do contexto da poesia experimental e das artes performativas em Portugal. A obra de António Barros objectualiza e espacializa o texto, explorando novas polissemias originadas pelo cruzamento da textualidade com uma visualidade iconoclasta e irreverente".
De sensibilidade fluxista, a sua obra convoca não só uma arte de situação debordiana, como ainda a Escultura Social de Joseph Beuys, tendo também trabalhado com Wolf Vostell no Vostell Fluxus Zug, Das Mobile Museum Kunst Akademie em Leverkusen.
Se as suas artitudes convocam o situacionismo de Guy Debord ao visitar a poésie directe francesa, Lawrence Ferlinghetti, pioneiro do Movimento da Beat Generation para a poesia - quando destaca a obra performativa "Revolução" em Cogolin, 1986 -, e Julien Blaine - ao publicar "Tradição" e "Escravos" na revista Doc(k)s -, são quem primeiro internacionaliza a arte de António Barros.
Esta última atitude em objecto-texto, é a que em 1984 um júri - integrando Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Carlos de Vasconcelos, Maria Velho da Costa e Manuel Alegre -, destacou no Concurso Nacional de Poesia 10 Anos do 25 de Abril, resultando este texto num elemento identitário do seu percurso "visualista" - onde o objecto e a palavra sinergicamente se insinuam.
A resiliência com que sinaliza os seus gestos de escrita [progestos], leva-o ainda à territorialidade do objecto escultural, vindo a criar, e para além dos seus múltiplos environments  como "Algias, NostAlgias" e "Amant Alterna Camenae", o Prémio de Estudos Fílmicos Universidade de Coimbra, com que foram laureados Alain Resnais, Manoel Oliveira e João Bénard da Costa.

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Maria Estela Guedes
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