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Adelto Gonçalves é
doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de
Os
vira-latas da madrugada
(Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981;
Taubaté, Letra Selvagem, 2015),
Gonzaga, um poeta do
Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona
brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002),
Bocage – o perfil
perdido
(Lisboa, Caminho, 2003),
Tomás Antônio Gonzaga
(Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2012), e
Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015),
entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br |
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ADELTO
GONÇALVES
Uma
visão polifônica do primeiro Saramago |
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I |
No prólogo que escreveu para
O jardim
dos caminhos que se bifurcam (1941), Jorge
Luis Borges (1899-1986) refere-se à “escrita de
notas sobre livros imaginários”, a uma época em
que já havia publicado o conto “A aproximação a
Almotásim” (1935), que constitui um
pseudo-ensaio ou uma resenha ou recensão de um
suposto livro publicado em Bombaim três anos
antes. Para “enganar” seus leitores e futuros
estudiosos de sua obra, dotara o livro
imaginário de um editor real e um prefácio que
teria sido escrito por um escritor real, mas
tanto o autor como o livro, seu enredo e
detalhes de alguns capítulos eram de sua inteira
invenção.
Mais de 70 anos depois, o professor Francisco
Maciel Silveira, se não foi tão longe, lançou um
livro,
Exercícios de caligrafia literária: Saramago
Quase (Curitiba, Editora CRV, 2012), que
segue nessas pegadas, pelo menos em parte, ao
reunir ensaios que parecem ficções e que seriam
de diferentes autores, todos preocupados em
desvendar a obra ficcional e o teatro da
primeira fase de José Saramago (1922-2010) como
autor. Em outras palavras: o ensaísta recorre ao
conceito de polifonia utilizado por Mikhail
Bakhtin (1895-1975) no estudo da obra de Fiodor
Dostoievski (1821-1881) para reunir vozes e
pontos de vistas conflitantes a respeito da obra
saramaguiana.
São ensaios que analisam o universo ficcional de
Saramago em seu período de formação (1947-1980),
até aqui bem pouco estudado, que vai de
Terra do
pecado, romance publicado em 1947, a
Que farei
com este livro?, peça de teatro, e
Levantado
do chão, romance, ambos publicados em 1980.
Nesse período, como se sabe, o autor publicou
ainda O
ano de 1993, prosa poética, de 1975,
Manual de
pintura e caligrafia, romance, de 1977,
Objecto
Quase, contos, de 1978, e
A noite,
peça de teatro, de 1979.
Para tanto, Maciel imaginou ensaístas fictícios
para que cada um se ocupasse de um determinado
livro saramaguiano daquele período. Por exemplo,
Manuel Pelourinho, diplomata, faz a crítica de
Terra do
Pecado, título que por sugestão do editor
substituiria o anterior,
A viúva,
dado originalmente pelo autor, utilizando uma
linguagem polida, sempre preocupada em não ferir
susceptibilidades, como um bom profissional da
área de Relações Exteriores, “de punho de rendas
e luvas de pelica”, como disse o próprio Maciel
em entrevista a Daniela Guedes, publicada no
site www.artedeescrever.com.br.
O ano de 1993
é discutido por Apolo Constantinos Jr., que
seria astrônomo e antropólogo, enquanto F. Kohm,
microempresário e latinista ocupa-se de
Manual de
pintura e caligrafia. Já José Roberto Jauss
Iser, jornalista enófilo e
gourmet,
interpreta
Objecto Quase, enquanto Ângelo Ruzzante de Pádua, encenador e
crítico teatral, discorre sobre
A noite,
peça teatral, e Legenda Vaz Est e Samir Savon,
doutores em Letras pela Universidade de São
Paulo (USP), estudam a fundo
Que farei com este livro?, destacando o diálogo intertextual de
Saramago com suas fontes. Por fim, Romeu Raneman
da Silva, médico homeopata, analisa o hermético
romance
Levantado do chão.
Como pode perceber o leitor, há aqui, para além
dos nomes dos ensaístas fictícios, uma explícita
ironia com suas profissões e modo de ver o mundo
(e não só o mundo saramaguiano) e tentar
reproduzi-lo em palavras. O sobrenome Jauss
Iser, logo se percebe, trata-se de uma homenagem
à famosa Estética da Recepção ou Teoria da
Recepção, que propõe uma reformulação da
historiografia literária e da interpretação
textual. Como se sabe, o alemão Wolfgang Iser
(1926-2007), professor de Literatura Comparada
na Universidade de Konstanz, na Alemanha, e seu
colega Hans Robert Jauss (1921-1997), igualmente
alemão e professor na Universidade de
Heidelberg, são os maiores expoentes da Teoria
da Recepção, que fundamenta suas bases na
própria crítica literária alemã.
Para intensificar o conflito, Maciel ainda
tratou de inventar, ao final de cada ensaio, a
seção “Cartas à redação: foro e desaforo do
leitor” em que leitores igualmente imaginários
interagem e discutem as formulações críticas
aventadas pelos ensaístas fictícios.
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II |
Dos relatos de
Objecto
Quase, Jauss Iser diz apreciar, sobretudo,
“Cadeira”, que conta o trabalho de conspiração
de um voraz e subversivo caruncho a roer o
madeirame da cadeira em que diariamente
assentava-se o ditador António de Oliveira
Salazar (1889-1968), antigo professor na
Universidade de Coimbra, que exerceu o mando com
mão de ferro em Portugal por quase meio século.
Obviamente, trata-se de uma alegoria, que
procura reconstituir os últimos anos do
patriarca celibatário (porque casado com a
pátria, como dizia o discurso fascista da época)
até a sua derrubada, que antecede em seis anos o
fim da ditadura que leva o seu nome. Para o
fictício Jauss Iser, o conto pode ser definido
como “autópsia de uma queda” (ou de uma época?),
ao registrar a
causa mortis do salazarismo, ou seja, o acidente vascular-cerebral
que levou o ditador para a cova e colocou o seu
regime diante de um corredor que só chegaria
mesmo ao fim a 25 de abril de 1974 com a chamada
“Revolução dos Cravos”.
Por aqui, o leitor já pode ter uma ideia do que
encontrará neste livro. Recomenda-se apenas que
esteja bem preparado e solidamente estruturado
quanto aos conceitos literários, além de
conhecer com alguma profundidade boa parte da
obra saramaguiana porque, muitas vezes, não
saberá se o que lê é do original saramaguiano ou
inventado pelo estudioso de sua obra, tal a
presença de fenômenos de intertextualidade. Com
certeza, o Prêmio Nobel de 1998, o único da
Literatura Portuguesa, não terá tido até agora
um especialista tão conhecedor dos meandros, às
vezes até enigmáticos, de sua obra.
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III |
Professor titular de Literatura Portuguesa na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP, onde obteve os títulos
de mestre, doutor e livre-docente, com trabalhos
em torno da oratória sagrada dos padres António
Vieira (1608-1697) e Manuel Bernardes
(1644-1710) e da comediografia de António José
da Silva (1705-1739), o Judeu, Francisco Maciel
Silveira é crítico literário, com ensaios e
resenhas publicados em periódicos do Brasil e do
exterior. Poeta, ficcionista, dramaturgo e
ensaísta com mais de duas dezenas de prêmios,
atua na docência, pesquisa e orientação com
ênfase no Classicismo, no Barroco, no Realismo e
no Teatro Português.
É autor dos livros de
contos
Esfinges
(1978) e
A caixa de Pandora:
aquela que nos coube
(1996) e de poemas
Macho e fêmea os
criou, segundo a paixão...
(1983), além de outros ainda na gaveta. Nas
áreas didática e ensaística, publicou ainda
Português para o segundo grau
(1979; 5ª ed. 1988);
Aprenda a escrever
(1985; 2ª ed. 1989);
Padre Manuel
Bernardes – Textos doutrinais
(1981);
Poesia clássica
(1988);
Literatura barroca
(1987);
Concerto barroco às
óperas do Judeu
(1992);
Palimpsestos – uma
história intertextual da Literatura Portuguesa
(1997; 2ª ed., 2008);
Fernando Pessoa(s) de um drama
(1999);
Ó Luís, vais de Camões?
(2001; 2ª ed,. 2008);
Saramago – eu-próprio o outro?
(2007);
Eça de Queiroz: O mandarim do Realismo
português
(2010); e
Canteiro de obras
(2011). É responsável pelo site
Pinceladas
em que discorre
sobre a pintura alheia:
http://www.pinceladas-fms.com.br
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Exercícios
de caligrafia literária: Saramago Quase,
de
Francisco Maciel Silveira. Curitiba: Editora
CRV, 174 págs., 2012, R$ 42,87. Site:
www.editoracrv.com.br E-mail:
sac@edirtoracrv.com.br |
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