Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016



NOTAS DE LEITURA




Paulo Moreira.
E
ncenador de teatro profissional (na ACTA) e ex-professor de Física e Química e Teatro. Publicou 2 obras em nome próprio: a novela/romance “Maria Manuel” e o volume “Pessoa(s) em Cena” (peças de teatro com textos de F. Pessoa), ambos pela Redil Publicações.
Foto: Rui Serra Ribeiro
PAULO MOREIRA
Curtir  as letras
Por Maria Estela Guedes
O principal mérito de Paulo Moreira estampa-se no título da sua coletânea, Curt'os contos. Ele curte e o leitor também, por causa dessa inclinação para o gozo, para o entretenimento que a modernidade subtraiu à cultura mais erudita. É fácil ver que o entretenimento foi monopolizado pela cultura de massa e reina sobretudo na televisão.

Um outro lado destes contos, curtos, vem apontado até no título de um deles, logo o terceiro, «Um escrito surrealista». A curtição dos contos muito deve realmente à espontaneidade (num deles há uma promessa de nada corrigir), ao humor negro, ao deslocamento de peças de realidade do seu lugar próprio para outro, como num puzzle errado, à irrupção de notas sexuais, à descoberta da língua, tão típicos do surrealismo. A descoberta da língua tem natureza psicanalítica, de resto a moda da Psicanálise foi lançada pelos surrealistas. A curtição incide na escuta das sílabas e na visão dos sons, como acontece em Curt'os contos ou no conto sobre a expressão «fá-lo» e suas variantes gráficas e semânticas. O autor não tem medo de o acusarem de falta de originalidade com um termo como este, e este é um aspeto de outro posicionamento que vale a pena encarecer, a ausência de preconceitos. Antes de vermos como, anote-se que é uma das maiores curtições da escrita o ficar à coca destas pequenas aventuras que podem tornar-se tão grandes que dão origem à criação de uma Gramática secreta da língua portuguesa, como aconteceu a António Telmo, que, para a palavra "dar" e variantes achou mais de 50 aceções semânticas. Portanto Paulo Moreira não dá à perna com a aventura de ler e escrever, pelo contrário, dá-lhe mais para o destemor, e com ele concluo esta nota, não porém sem recuar ao seu romance Maria Manuel, que é onde a falta de preconceitos mais se oferece à admiração.

Maria Manuel é uma das personagens do romance homónimo. Tem como principal característica o ser uma pessoa do sexo masculino e do género feminino, ou seja, um transgénero. É bom que estes assuntos seja ventilados em todos os meios de arte e comunicação, para desdramatizar, para integrar as consciências num mundo de inclusão e não de expulsão. Por razões menos importantes as pessoas molestam-se, queixam-se de palavrões e feridas na ortografia, com tudo isto falhando no conhecimento da língua e da literatura e desobedecendo ao que manda a Lei.

Em matéria de sexualidade vivemos ainda na sacristia. Tal como em matéria de igualdade de direitos entre homem e mulher, Homem sem distinção de etnia e cor, etc.. De um lado temos a Constituição e a Lei, que assentam numa visão avançada e promovem a vida de acordo com a Ética. A maioria das pessoas, face à concreta realidade de homossexuais na família, por exemplo, reage não de acordo com a Lei, sim de acordo com a moral, e esta provém da Igreja.

Paulo Moreira invoca este tipo de problemas em que os que se julgam mais progressistas esbarram em preconceitos morais, sem se aperceberem de que a Lei repudia a discriminação e, se concede o direito de casamento entre pessoas do mesmo sexo, é porque essas pessoas têm de ser tratadas como qualquer outro casal. Escusado dizer que a família é a defensora da moral, por isso não é impunemente que o escritor ousa trazer à flor das páginas assuntos que a moral tem por condenáveis, por muito que a Constituição e a Lei etc.., etc., vale a pena ler os Curt'os contos e o romance Maria Manuel e pensar em como é absurdo, paradoxal e retrógrado o nosso comportamento.
 



 

Obra distinguida com Recomendação para Publicação

por Agustina Bessa-Luís, Dinis Machado, Maria Ondina Braga,

Fernando Dacosta e José do Carmo Francisco,

júri da 1ª Mostra Portuguesa de Artes e Ideias, 1987.

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Maria Estela Guedes
PORTUGAL
 
 
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