1.
Que o teu peito guarde
um coração rosado.
E cristalino como o mar.
2.
Que o teu coração te
resguarde o peito
de dores aflitivas, de
sombras
de náuseas e de causas
vendidas.
3.
Que o teu coração puro
te acompanhe
e sustente sonhos e
anseios
— os olhos da tua alma
vigiam
os nós os passos e
abraços contidos
os risos e encantamentos
gaiatos e
gestos de estar e ficar,
silenciosos;
— meu amor anónimo e
universal
traço do vigor macho da
vida
porta para assomar a
fêmea graça
que contida em mim
caminha e me encaminha.
Que o teu peito te
estremeça, cintilante,
te perturbe de
improváveis afectos, fundos
te conquiste para o lado
incondicional
do amor, o único porto
amoroso
pois as ondas e os
afectos são iguais
no momento da dança das
marés.
Que os astros luminosos
em teus dias
ardam e a tuas noites
aconcheguem.
Possa teu sorriso maroto
encantar
o rasto de quem perdido
se encontre
pleno, à beira da
dourada beira-mar.
Possa teu sentido de
raiz aflorar
a concha inacessível e
intocável
dos ansiados desejos.
Possa teu passo leve e
firme guiar
os enxames de infelizes
errando
ao largo da casa de água
onde habitamos
há eras habitamos, sem
outra consciência
que o arrepio e a
impressão de nossas almas
de nossa íntimas vozes,
almas inscritas.
Que o teu peito te
proteja da aridez
da pedra que cobiça
rocha e espuma,
da pedra invejosa de
gente e algas
— pedra ou criatura
vazia de amor de gente.
Possam as nortadas
aliviar
tua solidão de traça
suave,
tua exactidão cautelosa
terna e exacta, apesar
das esquinas
apesar das quebras de
medos e dias.
Permaneça em ti a
presença inconstante
do banal mas doce cuidar
cuidadoso
doce cuidado ali
inteiro, como só pode
quem, mesmo sem saber, é
flor de mar.
Que a rebentação das
ondas te comova
tanto como este verbo me
move e retém
aqui, extasiada frente
ao oceano de prata
que é muito mais do que
oceano, pois é o mar.
Possa o arrepiante voo
destas vizinhas curiosas,
(o arrepiante e
estridente voo das gaivotas),
alisar o traço destemido
de teu furor
herdado mas desprovido
da turbação dos dentros
e dos sais.
Que teu dourado coração
perene
ilumine ou reacenda a
fantasia
da mão que, ao encontrar
a outra mão,
emparelha, por fim,
caminhos de linhas
ou puríssimas vibrações
do que é terno
e pela pura ternura
devém eterno.
Ouve-se
"you look
wonderfull tonight"
e dou por mim a rever
bitolas critérios
e ideias encastradas
doentes
que minam o coração da
felicidade.
Possa teu coração
permanecer
vibrando na paz, sereno
na agitação:
- este o voto do Mestre
que te remeto
meu amor anónimo que
ainda não.
4.
Que o teu peito guarde
um coração excelente
capaz de sentir o erro e
abandonar
desculpas traidoras da
poesia.
Que o teu peito se
entregue aberto e pleno
ao imaculado milagre da
anunciação
ao radical milagre da
ressurreição
da contemplação do que
te supere nos outros
e, sobretudo, ao gesto
do humano amparo.
Que o teu coração seja
agente da ressurreição:
seja operário,
proletário, soldado do “éme éfe á”
varina ou Maria das
fontes e das searas
padre católico na pampa
latino-americana
pastor protestante no
vaticano corrupto
mestre budista ou sufi
na bolsa de nova iorque
designer de humor na
imprensa muçulmana
jovem pacifista em pleno
campo de guerra.
Que o teu coração seja o
milagre da redenção
que tanto te falta e há
tanto te invoca e chama.
E saiba amar acima de
todas as coisas, ámen.
Possa a palavra que
desconheces ser-te anunciada.
Possa a luz que anseias
ser-te soprada.
Possa a esperança ser
inalada por tua alma
no ar que inspiras, ao
ser-te inspirado.
Possam as pequenas e
grandes asas serem-te casa
devirem tua casa de
comoção, asas de abrigo
cantos de noivos
encantados pela pureza
pelos gestos de ouro e
límpidos de noivo,
pelos gestos de ouro e
cintilantes da amada.
Que o teu peito se
dilate, doce e silencioso
até abarcar o sussurro
das folhas da oliveira
até dançar ao ritmo das
ondas salgadas das orlas
até esvoaçar, inebriado,
para o colo da claridade.
Possa a poalha do
universo baixar a teus ombros
descer a teus seios e
enlaçar-te, de gestos, as mãos
de actos gratuitos de
entrega e desprendimento,
de gestos secretos e
íntimos do entendimento.
Possas libertar-te da
aguda dor onde militas
e acercares-te da
magnífica, a esbelta entrega
da coroação pela
mestre-mor, a esperança.
Sossega teus travessos
desvarios.
Acalma tuas falas
desesperadas.
Livra-te da corrupção da
inveja,
do fraco arrepio que te
dilacera
o olhar o passo a
perspectiva e
polui o sangue amoroso
em sangue vil.
Confia no invisível e
intocável.
Aprende que o corpo
magnífico da poesia
não se atrapalha nem
admite a prisão
dos que retêm a fala o
dom e a caridade
a pura dádiva da branda
tenacidade.
Que o coração rosado te
perturbe o peito
anunciando madrugadas
ternurentas.
Sejam tuas veias
antecipação do mapa,
da plena construção do
destino
marcha, rumo em
movimento lento.
Bem sabemos: o
despertador está rouco ou chega sempre atrasado
aos requisitos da alma.
Bem sabemos: o ouvido
esquece o eco e qualquer pretexto vale o
silêncio interno.
Bem sabemos: na
clorofila resiste a básica orientação das
folhas.
Bem sabemos: o sol borda
a tom morno o rebordo da borda da voz.
Bem sabemos: as cantigas
esvoaçam até encontrarem colo para aninhar-se.
Ergo a taça prateada,
levanto alto
o cálice da rara
ambrósia sagrada.
Bafejo a mão direita com
bagas de uvas
e água sem mais
estranhas colorações.
Bem sabemos: a
mediatização da vida atrasa a acção de
esperanças e utopias.
Atento no lado humano e,
ante estes versos,
devolvo-lhes o lado
adiado e desejado.
Possa tua memória viajar
lisa e imperturbada
até ao ninho da candura
e do sonhar.
Que teu peito te guarde,
excelente coração.
5.
Que o teu coração seja o
pousio da esperança.
6.
Que o teu coração
resguarde a chama
lenta do compromisso com
a terra
a vasta chama da aliança
com as marés
a grata chama do
encontro de amorosos
a farta chama do pueril
encantamento.
Que o teu coração
arqueje um pouco,
o bastante pouco do
tempero certo
o tanto quê-bê do ígneo
sal de prata
fervido entre os gestos
e os passos
demoradamente entre
palavra e abraços
de ramos dos seres
majestosos com copa
de ramos dos seres
amorosos com lava.
7.
Que o teu coração lateje
em permanência
até ao fim dos séculos
dos séculos, ámen.
É da eternidade esta
minha fronteira
onde nasci me atraso me
vivo e ardo
em cada verso-drama que
me encaminha
em cada versículo-chama
onde me aguardo
escondida sob estranhos
nomes variáveis
pois todos somos apenas
esse nome um.
Que o teu coração se
abra ao fulgor
da maior viagem de entre
todas que é ficar:
a vigente perturbação da
seiva branca
atrasa a intensidade do
pousar,
atrasa o ministério
horizontal
o governo da única
duração
designada por entrega e
imanência
— prismas oclusos pela
descartabilidade*.
* termo com que
a autora designa a propriedade do que é
descartável.
8.
Que o teu peito guarde
um coração gracioso
isento de esporas e
andaimes
liberto de rascunhos,
tracejados,
hesitações do medo e
cobardias.
Que teu peito guarde o
coração da coragem
a semente do sonho e da
vontade
a persistente floração
dos cravos
enquanto a fraterna
cidade demora
enquanto os campos
oficinas e portos
são escritórios da vida
em segunda mão.
Que o teu peito abrace a
gratidão
e semeie versos
ventejados pelo arrojo,
seja ventre da mais
justa indignação
da mais digna intenção:
a da humilde
mestiçagem dos sabores e
dos amparos.
Que o teu peito seja o
teu cálido ninho
que o teu peito seja tua
fecundação,
teu ovo elementar, teu
berço morno
enfim: teu colo, embalo
e cântico mimoso
— te seja cioso e suave
teu coração.
9.
É este o caminho da
celebração da vida
do nobre laudo esguio,
aliado do travo a mel,
a sal e a outros sabores
acres saciados
pelas insaciadas bocas
do eros sapiente.
Este o caminho por fazer
e desbravar
atabalhoado pela prova a
outros-terceiros
comprometido com a vã
externalidade
pois existe, só, na
dobra do dentro
na discreta bainha dos
sonhos gratos.
Este o limiar e a
fronteira rósea,
bermas ou margens da
libertação
e da mais intangível
matéria
onde as margens se
entregam ao leito
do caudal íntimo da
serenidade.
Este o ângulo perplexo
desde onde o rio
das incertezas se
confunde com dormência
e traição legal, a
traição prevista
nos cânones desta
civilidade
onde os senhores matam
com a mesma mão
da cobarde neutralidade
e da revisão
de miniaturas e
promessas vãs:
para que o cinzento
permaneça
há que mudar figurantes
e adereços.
Brilha, insinua-se o
clarão de luz
ao largo da sofrida
costa, receptiva.
Afago-te a mão calosa de
dedos e medos:
que o teu peito guarde
um coração aguado,
pouso do gratuito e
eterno hemisfério
dúplice na holográfica
ânsia do obter.
É esta a simplicidade
das áleas
este o caminho da
celebração da vida:
que o teu peito guarde a
semente devida.
11.
Que o teu peito — é como
quem diz, tu
tua amada teu amor
vizinho ou desconhecido —
te anime a guardares as
5 pedrinhas
numa mão e, na outra, o
caule da revolução.
Que o teu peito nos seja
acessível em flor, em cor,
em vibração alada das
figuras de mitos, arquetípicas,
as reais senhoras da
realidade profunda e real
onde tal caule mergulha
a vibração, a revolução
que não acabou pois a
viagem ao centro da terra
ao centro da serra das
águas e das gentes está por fazer.
Que teu cravo resguarde
as asas de teu peito
e seja ele que borde de
esperança teu coração.
Que teu cravo transporte
a revolução do centro
de teu peito para o
centro da anónima emoção,
da anónima passagem de
gentes rumo ao trabalho
da anónima romagem ao
crédito bancário,
da anónima voragem dos
indigentes pelas sarl
de capital anónimo,
responsabilidade deslocalizada
e dignidade esvaída nos
destinos seguros
onde afagam metal e
notas podres de boçalidades.
Que o teu peito lembre,
sempre, o valor do trabalho
o valor de saber fazer
com arte e memória sábias
o valor de aprender a
cadência das horas
o valor de tecer vida
amor e prosperidade.
Possa teu coração
destrinçar soberba de alegria
possa distinguir
contentamento e vitória de vileza e roubo
possa diferenciar a
brava luta da manipulação suja
diferenciar o ultraje e
a corrupção da séria tarefa honrada,
e a sobranceria da
pilhagem do vero sucesso, o de quem progride.
Possa teu coração — que
é como quem diz, o de teu amor
ou de teus vizinhos ou o
de todos nós —
negar-se a apagar
trilhos de tempos e almas
recusar o desafio de
matar a singularidade,
o espelho por olhar, o
novo horizonte, as rotas
a desbravar e o peito a
amar.
Possa teu coração
ganhar-te, assim,
para a labuta cintilante
dos sonhadores
incansáveis viventes da
vida.
12.
Possa a minha memória da
menina
a caminho da escola
interrompida
pelos avisos, segundo a
vizinha,
do rádio clube sobre a
capital
com direito a armas
soldados e outras pessoas
inundando praças e ruas
da cidade branca;
possa a minha memória de
filha
chorosa por um pai em
guerra dura
saudosa do pai na guerra
tramada
no mato de outros onde
os nossos e outros caíam
em nome ainda de outros
que cá ficavam;
possa a minha memória da
natureza domada
do riso moderado da
ajuizada brincadeira
da saia arredondada, das
curvas disfarçadas e,
sobretudo, da vida
adiada ou suspensa
entre aerogramas e
partidas e chegadas
entre idas e vindas de
navios fardados
navios odiados cobiçando
maridos, pais
e namorados de meninas
domadas
e amantes de meninas
adiadas:
possa esta memória dizer
a teu coração:
Que o teu peito semeie
versos de arrojo e
seja ventre da mais
justa indignação
da mais digna intenção
de liberdade
da mais justa ambição de
dignidade
que ninguém te pode
trocar por injúrias
nem mentiras descaradas
da vil corrupção.
Possa, em nome da
revolução de flores e amores,
teu coração ser o centro
da indignação.
13.
Que o teu coração se
expanda alumiado
pela interna faísca
prateada,
guiado pelo raio
prateado e luminoso
que te habita. que,
generoso, habitas
e revelas em cada tremor
das mãos
e assumes em cada
estremecer de asa.
Que o teu coração se
expanda sem aflição
nem outro significativo
cuidado.
Que a calma dos suis
sempre te acompanhe,
tua seja a bonomia e a
temperança,
teus persistam os
segredos, a confiança e
a contemplativa maneira
de estar
sem mais atalhos nem
compassos desfasados.
Que a tua pulsação
alcance os ínfimos interstícios/
da matéria vibrante,
amante
- que o teu pulsar,
habitando o desejo,
deseje multiplicar-se
infinitamente
deseje permanecer na
duração
inquieta do instante e
da eternidade.
Que o teu coração seja o
próprio pulsar
e o receptáculo do jorro
da vida
- as veias do arrojo são
as mesmas
por onde passam as
causas mais temidas.
14.
Que o teu coração seja
ambicioso
e cioso da franca
fraternidade
cioso da gaiata e
contagiosa,
da pueril e fresca
gargalhada.
Que o colo de teus
sonhos mais risonhos
saiba aguardar pelos
rebentos e musgos
da idade majestosa sem
cuidados
nem outros requebros
destemidos
que contemplar intuir
saber e ser.
Que o colo dos teus
braços maduros
enlace céu e nuvens num
só abraço
às meninas de teus olhos
endereçado.
Possa o horizonte
descansar um pouco
entre as rugas de
alegria de teu lábio
encarnado — que é como
perduras
na memória do mais cioso
amado
no travo saudoso de teu
homem e amigo
constante e firme como a
fraternidade
com que o teu franco
coração anseia
acertar o compasso,
aliar o passo,
alinhar o espaço da
pujante veia-mãe,
o espaço onde a alquimia
do verso
abre a dor ao soluço de
bonança,
à reconciliação entre o
convexo e o côncavo,
quando chega a idade de
refazer universos.
.
15.
ao passear na marginal a
vida ensina-nos o valor de distância e
libertação.
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