Este ano resolvi
inscrever-me em duas cadeiras de uma “Universidade
Sénior”, assim escrito, quando
correto seria escrever
senior
e
junior.
Sofri uma enorme desilusão e houve logo quem
criticasse:
- A universidade está bem para a Estela
ensinar nela, não para se inscrever como aluna.
Não concordo. Mesmo
admitindo que eu fosse a quinta essência da
atividade docente, e como professora nela
exercesse, a universidade não passava por mim a
ser melhor. De outra parte, eu não quero – não
queria - ser mestre ao inscrever-me, sim
aprendiz, e como tal devia o meu intuito ser
satisfeito pela instituição.
A comunidade entende
decerto a universidade senior como local de
entretenimento, terapia ocupacional, acredito
que seja esse até o fundamento da criação de
tantas, mas está errado. O entretenimento e a
ocupação podem buscar-se em outras associações,
de dança, pesca ou peregrinação – estão na moda
as viagens de aposentados a Santiago de
Compostela, vamos lá meter pés ao caminho! Eu
chamo a isso turismo de joelhos, porque muitos
cumprem a promessa de assim fazer o circuito
interior do santuário na peregrinação a Fátima.
É deprimente, não devia ser permitida tal
exibição, nenhum Deus exige dos crentes o
exercício da tortura, ainda menos como
espetáculo para multidões.
A universidade senior
promove passeios, visitas a locais de interesse
histórico e idas ao teatro, o que está muito
bem. A necessidade de associativismo é grande,
muitos idosos vivem isolados,
já não têm
família, daí a importância dos companheiros e de
uma instituição que ao menos reconheça a sua
existência! Porém essa não é a missão
fundamental de uma universidade! Se a
instituição adopta um tal designativo, há que
recheá-lo com ensino e propósitos compatíveis.
Um estabelecimento de
ensino que assume o título de “universidade” não
pode comportar-se abaixo do nível de uma escola
secundária. O professor não pode saber tão pouco
que divide pessoas por frangos quando o
piquenique exige o inverso, nem pode ocupar o
tempo da aula a mostrar os seus próprios
exercícios, pondo-se ao nível dos instruendos,
alguns dos quais já apresentaram melhor trabalho
e já mostraram dominar mais profundamente a
matéria. A circunstância de sermos maiores de 65
anos não legitima teorias de que “não faz mal,
eles já não vão transmitir conhecimento, é
preciso é que estejam entretidos para não se
sentirem uns inúteis”. Errado, erradíssimo! Nós,
seniores, somos os principais transmissores,
sempre fomos os mais importantes educadores. A
literatura, oral e escrita, valoriza os velhos
como fonte de amor, amizade e sabedoria. As
fadas são jovenzinhas (quando envelhecem ficam
bruxas…), mas os grandes chefes, os grandes
feiticeiros, os grandes magos, os grandes
sábios, são sempre seniores. O sábio, até há bem
pouco tempo, era o homem de ciência, de cultura,
quase sempre velho. Culturas existem em que os
anciãos presidem ao conselho que governa o seu
povo. E mesmo na nossa cultura ocidental, que
põe a juventude e a beleza num trono de ouro, os
mais velhos são sempre preferidos para cargos de
máxima responsabilidade, porque a idade lhes dá
saber e experiência. Se queremos ver conselhos
de anciãos a funcionar, basta abrir o televisor
no canal Parlamento: quase todos os deputados
são maiores de cinquenta anos, o que, diga-se em
abono da verdade universitária dos nossos
tempos, não lhes concede por isso nenhum grau de
sapiência…
Qualquer estabelecimento
de ensino deve aliar às asperezas do estudo a
alegria e doçura do prazer, promovendo festas,
espetáculos, passeios e outras distrações. Claro
que sim, somos todos a favor dos estádios, dos
orfeões e dos teatros universitários. A
universidade senior, aliada muitas vezes ao
governo local, cumpre essas funções. Mas não
basta, essa não é a sua principal missão, em
primeiro lugar está o que é próprio dela:
ensinar o que se conhece e promover a aquisição
do que até ali não se conhecia, mediante
pesquisa, necessária ao avanço do conhecimento,
e este necessário ao fortalecimento da cultura e
melhoria das condições técnicas da civilização.
Noutra vertente do
assunto, as instituições promotoras de eventos
não devem baixar o nível intelectual e cultural
das sessões ao que pensam ser o estado gagá do
auditório. Nem o auditório é inepto nem devia
ser constituído só pelas quarenta ou cinquenta
pessoas da universidade senior e dos lares de
terceira idade que se inscreveram no evento e o
governo local transporta com gentileza
(esperando que a gentileza não seja interesseira
caça ao voto) nos seus autocarros. Algo não
funciona, algo está muito errado por aqui, quer
no modo condescendente como são tratados os mais
velhos, quer na vertente de infantário como se
lhes exibe a cultura. Para cúmulo, ao menos
parte dos estudantes têm graus académicos
superiores, obtidos em épocas de muito maior
exigência no ensino.
A que propósito vem
medir o valor de um homem pela sua utilidade?
Vale enquanto trabalha, deixando de trabalhar
passa a ser um inútil dispensável? O valor da
existência pode medir-se pela qualidade da
interação com os outros, mas não é a utilidade o
termo adequado para a exprimir. Útil é a louça e
inútil quando se parte. Que faríamos dos
eremitas, dos solitários, dos deficientes, dos
reclusos em prisões e mosteiros, dos doentes,
dos guias espirituais, daqueles que nunca
trabalharam? Que faríamos dos artistas? As
sociedades não funcionam só com quem executa
trabalho braçal ou exerce um ofício rotineiro.
Sem o ócio e sonho de uns quantos, definhariam
as civilizações por falta da inovação que esses
tais ociosos e sonhadores criam e desenvolvem.
A palavra
“universidade” foi adotada para caracterizar o
ensino superior por causa do seu significado: o
conhecimento nelas ministrado era universal,
global. Dispondo de uma língua comum, o latim,
servia aos estudantes de todo o mundo, daí que,
em tempos antigos, os aprendizes ou aspirantes
de qualquer país pudessem inscrever-se em
famosas universidades como a Sorbonne, a de
Montpellier (famosa pelos estudos de Medicina,
onde aprendeu Rabelais), a de Oxford ou a de
Coimbra. Isso acontecia porque não havia
obrigatoriedade de estar presente nas salas de
aula, de resto o termo “universidade” designa a
comunidade de professores e alunos, deixando de
lado o espaço físico.
Universitas hominorum – associação de
homens, dizia-se. Parece tudo excelente,
acontece entretanto que só quase no nosso tempo
se começou a entender aquele “hominorum” como
“humanos”, independentemente de género masculino
e feminino. O acesso da mulher ao ensino, tal
como ao voto, é muito recente. Na generalidade
dos países, as mulheres só começam a frequentar
as universidades na segunda metade do século
XIX. A primeira a entrar na Universidade de
Coimbra foi Domitila de Carvalho, no ano lectivo
de 1891-1892. Considerava-se indecente a
presença das mulheres em cursos como o de
medicina, em que as meninas tinham de estudar o
corpo humano e era completamente impensável
deixar uma mulher ir sozinha para estudar noutro
país. Embora em Portugal não se tenha verificado
a feroz oposição à entrada das mulheres patente
nas outras universidades, Branca Edmée Marques
(1899-1986) conseguiu graus académicos
universitários e tornar-se cientista mas, quando
se tratou de ir pesquisar a radioatividade com
Madame Curie, em Paris, teve de levar a mãe na
sua companhia para evitar a situação
escandalosa.
A universidade apareceu
na Idade Média. A primeira é a de
Constantinopla, em 425, mas precedem-na
estabelecimentos de ensino superior mais
antigos, por exemplo na China. E há lugares
perdidos em regiões inóspitas onde nada se
esperaria a não ser uma subida lancinante do
mercúrio nos termómetros, como foi o caso da
mesquita de Tombuctu, na orla do deserto do
Sahara, no atual Mali, onde, no século XIV,
começou a funcionar a famosa Universidade
Corânica de Sankoré. Situada a cidade em local
estratégico, na curva norte do Níger, era centro
nas rotas comerciais entre o Egipto e os países
da África sub-sahariana. Daí que na época de
maior esplendor tenha contado, diz-se, com vinte
e cinco mil estudantes. Os sábios que ali
ensinaram, e é realmente “sábios” o termo usado,
também se contam por milhares. Circunstância
surpreendente, quem financiou a construção da
mesquita de Sankoré foi uma mulher tuaregue,
conhecida pela sua riqueza. A cidade e as suas
mesquitas atraíram homens de todo o mundo
muçulmano.
Ali se traduziram para
árabe textos de filósofos e matemáticos gregos
que afinal são os alicerces da nossa cultura
ocidental. Foi a partir deste centro de estudos
que se verificou a irradiação do islamismo em
África. Por causa da sua importância histórica e
valor dos manuscritos à sua guarda, a cidade de
Tombuctu foi inscrita pela UNESCO, em 1988, na
lista do Património Mundial.
Estes manuscritos,
alguns dos quais pré-islâmicos, conservam-se há
séculos como segredos de família. Na maior parte
estão redigidos em árabe e em fula por sábios
oriundos do antigo império do Mali. Tratam de
astronomia, medicina, botânica, música e outros
assuntos. Manuscritos mais recentes cobrem as
áreas do direito, das ciências, da história, da
religião e do comércio.
«Timbuctu», o
magnífico filme de Abderrahmane Shami Sissako,
revela aspetos da invasão do Mali pelas tropas
do fundamentalismo islâmico, em 2012. Os
fanáticos, obcecados em banir o que consideravam
pecaminoso, impuseram leis absurdas, como o uso
de luvas às vendedeiras, nos mercados, proibiram
a música,
etc.. Na
realidade, chegaram ao ponto de demolir os
túmulos de santos sufis, espancaram mulheres por
não cobrirem o rosto e chicotearam homens por
fumarem ou beberem. Um dos seus planos era
queimar os milhares de manuscritos guardados em
bibliotecas públicas e privadas espalhadas pela
cidade. Os documentos eruditos mostram como o
islamismo é uma religião moderada, considerados
tesouros culturais por institutos ocidentais,
factos que bastavam aos jihadistas para os
desejarem destruir.
Entretanto, as
autoridades do Mali, com ajuda externa, tinham
montado uma operação secreta algum tempo antes
da chegada dos jihadistas. Recorrendo a burros,
esconderijos e contrabandistas, conseguiram
levar os manuscritos para fora da cidade.
Sem o esplendor de
outrora, a Universidade de Tombuctu ainda
funciona, mas a cidade está a ser paulatinamente
devorada pelas areias do Sahara. Ao caminharem
para sul, deixam atrás delas aquela faixa de
terra entre o Atlântico e o Índico na qual se
localizam os países mais pobres do mundo,
conhecida por
sahel.
A Universidade
Islâmica de Tombuctu é algo mais recente do que
as asiáticas e europeias. Em Portugal, foi o
documento
Scientia thesaurus mirabilis, assinado em
1290 pelo rei D. Dinis que criou em Alfama
(depois andou entre Coimbra e Lisboa até se
fixar em
Coimbra) a
nossa mais antiga universidade e uma das
primeiras da Europa, a par da Sorbonne, da de
Oxford, e da de Bolonha – esta a
mais antiga
das quatro. Tal como a de Tombuctu é uma
universidade corânica, onde se ensinava o
Alcorão, a lógica, a matemática e a história, as
outras eram também escolas religiosas, em que
reinava a teologia. Faziam parte de catedrais ou
de conventos. O monopólio do ensino por parte da
Igreja, particularmente pelos jesuítas,
manteve-se até meados do século XVIII, quando
recebeu o primeiro grande golpe, desferido pelo
Marquês de Pombal. O último golpe recebeu-o da
República, ao instituir o ensino laico.
No Brasil, a
universidade surge muito tarde. O melhor ensino
de que dispunha, sob governo português, era o
jesuíta. O mesmo aconteceu em Cabo Verde,
arquipélago em que o ensino de melhor qualidade
também pertencia à Ordem de Jesus. As outras
colónias – Guiné, S. Tomé e Príncipe, Angola,
Moçambique, Macau e Timor viviam em condições
ainda mais pobres. Portugal não tinha interesse
em educar as populações: quanto maior o
conhecimento, tanto menor a capacidade de
tolerar regimes despóticos. O erro do
colonialismo brando nesta matéria foi crasso e
manifesta-se hoje no elevado grau de
analfabetismo e falta de língua materna
unificante na maior parte destes jovens países.
Na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique, só
uns dez por cento da população falam português,
e quase só nas grandes cidades. Os líderes
políticos, quando precisam de se deslocar às
regiões do interior para falarem com os
habitantes, fazem-se acompanhar por intérpretes.
O primeiro
estabelecimento de ensino superior no Brasil,
instituído em 1792, é atualmente a Universidade
do Rio de Janeiro, criada com este nome em 1920.
Constituía-o a Real Academia de Artilharia,
Fortificação e Desenho, que desaguou na Escola
Politécnica. São inúmeras hoje as universidades
brasileiras, criadas segundo o modelo da
primeira.
D. Dinis lançou os
fundamentos da cultura portuguesa, não só devido
à criação da universidade mas também porque
legislou para que os documentos oficiais
abandonassem o latim e passassem a ser escritos
em português. Nesse tempo as línguas europeias
de raiz latina ainda não se tinham diversificado
nas línguas românicas, pareciam-se entre elas, a
ponto de, no nosso caso, se falar do
galaico-português. Língua comum à Galiza e a
Portugal, nela se esboçaram os primeiros passos
da nossa literatura, os cancioneiros
trovadorescos – cantigas de amigo, cantigas de
amor e cantigas de escárnio ou maldizer. Ora D.
Dinis também era poeta e ainda hoje são
admirados os seus poemas. Na maior parte
cantigas de amor, de delicada beleza, bem podiam
ter sido inspirados pela esposa, D. Isabel, mais
conhecida por Rainha Santa, protagonista do
milagre das rosas. Mas parece que não, invoca-se
mais Aldonça e outras amantes de quem o rei
poeta recebeu, conta-se, cinquenta filhos
bastardos.
Observa Rodrigues
Lapa, no prefácio à
Crestomatia arcaica, antologia em que
recolheu umas dezenas de textos medievais, que o
espólio de D. Dinis é o mais rico da época
trovadoresca. Deixou-nos 138 composições
poéticas, em que estão representados todos os
géneros do lirismo do seu tempo. Dessas 138, 76
são cantigas de amor. À semelhança de seu avô,
D. Afonso X de Castela, cognominado
O Sábio,
consta ter composto um livro de cantigas em
louvor da Virgem, que se perdeu. Vale a pena
lembrarmos a poesia de D. Dinis, bem como o
registo de língua em que escreveu, uma língua
que é nossa, mas num estádio de desenvolvimento
ainda embrionário. Remato assim este ensaio
sobre a universidade com uma das mais conhecidas
cantigas do rei fundador da nossa cultura de
língua portuguesa, aquela em que a donzela pede
às flores dos pinheiros notícias do seu amigo,
provavelmente marinheiro. D. Dinis, cognominado
O Lavrador,
também promoveu a agricultura e impulsionou algo
que já vinha de reinado anterior, de suma
importância para fixar as areias do litoral,
consolidando assim a linha costeira – os
pinhais. Importados dos países escandinavos, os
pinheiros muita madeira forneceram para a
construção das caravelas. Entre todos os
pinhais, o mais famoso é o de Leiria (Azambuja),
dado o seu protagonismo numa obra literária de
referência para o romantismo português, as
Viagens na minha terra, de Almeida Garrett. A cantiga de amigo de D.
Dinis que refere as flores de pinheiro é por
isso emblemática.
Cantiga de amigo de D. Dinis
—Ai, flores, ai flores
do verde pino,
se sabedes novas do meu
amigo?
Ai, Deus, e u
é?
Ai, flores, ai flores do
verde ramo,
se sabedes novas do meu
amado?
Ai, Deus, e u
é?
Se sabedes novas do meu
amigo,
aquel que mentiu do que
pôs comigo?
Ai, Deus, e u
é?
Se sabedes novas do meu
amado,
aquel que mentiu do que
m'á jurado?
Ai, Deus, e u
é?
[— Vós preguntades polo
voss' amigo?
E eu ben vos digo que é
san' e vivo.
Ai, Deus, e u
é?]
Vós preguntades polo
voss' amado?
E eu ben vos digo que é
viv' e sano.
Ai, Deus, e u
é?
E eu ben vos digo que é
san' e vivo,
e sera vosc' ant' o
prazo saído.
Ai, Deus, e u
é?
E eu ben vos digo que é
viv' e sano,
e sera vosc' ant' o
prazo passado.
Ai, Deus, e u
é?
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