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Maria Azenha
(Portugal). Poeta, ensaísta. Foi
professora universitária.
Tem mais de
duas dezenas de livros publicados. |
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MARIA AZENHA
Viagem de aprender no escuro |
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PARIS,13
depois das sombras as águias voam
para bem mais longe
o grito de novembro espia os nomes
é a lei dos cegos
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A pergunta é, o que vamos fazer?
Pepper*
pesa cerca de 27 quilos.
Mede 120 cm. Um pouco menos do que eu.
Foi concebido para ler emoções.
A minha mãe também.
Quer fazer as pessoas felizes.
Reconhece tons de voz e expressões faciais.
Perguntei-lhe uma ocasião : o
que é morrer?
Não respondeu e abriu-se a porta de um jardim
com dois olhos enormes.
No meio de nós havia a sombra de um assassino,
um poeta e um anjo,
que recolhiam mortos velhíssimos para dentro de
espelhos.
Pepper sente-se
confortável quando está com pessoas que conhece.
Além disso fica muito satisfeito quando é
elogiado,
Um pouco assustado, quando as luzes se apagam.
Nas fendas do luar ninguém o enxerga.
Questionei-o : Que
morte preferes?
Avariou e cometeu um erro terrivelmente
informático.
Pepper é
um rapaz belo.
Sem dúvida.
Não sofre. Não simula constipações. Nem toma
vacinas no inverno.
Andará à procura de lírios amarelos?
A sua sabedoria é descarregada a partir de uma nuvem .
E, aprende com o tempo, como os meus netos.
As suas emoções aparecem num tablet .
É capaz de perceber e responder a partir do seu
“tronco”.
Pepper fala
em múltiplos idiomas. Contudo,
não lava nem aspira a casa.Nem escreve
sobre as primaveras de Herberto Helder.
Finge Beber comigo copos de gin nas barmácias da
noite.
Através dos meus lábios escreve milhares de
poemas.
E eu volto com o vento de regresso,
como um soldado protegido pela solidão dos seus
passos
e o peito sem medalhas.
Pepper está
na sala da casa Com as luzes apagadas.
A sua inteligência não pode remediar o que o
coração apodreceu.
A pergunta é, o que vamos fazer?
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Carta do século
Somos escravizados por gente maldosa fechada em
gabinetes.
Somos escravizados por mentiras que sustentam o
planeta.
Somos escravizados pelos medos.
Somos escravizados quando o corpo cai e ninguém
lavra a terra.
Somos escravizados, Europas!
Somos escravizados, Américas!
Somo escravizados, Ásias!
Somos escravizados, Montanhas altas,
onde as mães cantam a luz acesa das estrelas!
O medo é a ditadura dos currais das trevas!
Não temos a quem gritar este grito de eremitas e
de panteras acossadas.
Continentes todos, passando pelas Áfricas!,
somos escravizados duma ponta a outra da Terra!
Alguns de nós, dentro de paredes.
Outros, fora das casas, em tarefas.
Outros ainda, com as mãos postas em grades,
aprisionando as pedras
que lá foram colocadas.
Todos encerrados em gaiolas como cárceres de
répteis!
Abaixo a escuridão das tochas.
Têm medo de nós.
Nós temos medo deles.
O medo transformou-se no sursum
corda dos
escravos atuais!
Fermat é
um artista matemático! Cantou o seu belíssimo
teorema!
Encontrei-o a caminho de uma terra prometida!
Tenho medo!
Não! Nós não temos medo!
Esse é o mais belo Teorema da humanidade.
O Medo é uma porta de dois sentidos: a de
entrada e a de saída!
Não vedes as estrelas e as vacas anunciando tudo
isto e muito mais?! ?
Digo: A virgindade das sombras tem alta cotação
no mercado!
Sabiam?
Quem negoceia com metáforas democráticas?
Fora a lógica! Fora as falácias!
Os ventos fluem.
O planeta tem árvores cobertas de frutos.
Quem sacia a fome de biliões de crianças nuas?
O Teorema de Fermat é minúsculo comparado
com tudo isto.!
A alta finança é um navio que desliza nos
subúrbios das grutas!
Foi lá que nasceu a primeira Mentira a
ser vendida ao mundo!
Não vos parece, a Terra, um túmulo?
Vede os grandes transatlânticos humanos!
Vede!
Atravessamos a escuridão das fábulas.
Somos cegos de mãos dadas!
Sabemos que não acabou o banquete da miséria.
O anjo guardião das trevas continua vestido de
Príncipe.
Príncipe, sim!
Batemos à porta, em turbas, cheios de fome e
frio
e já aconteceu a inúmeros suicidarem-se!
O meu coração dá voltas dos pés à cabeça e não
tem sossego.
Há árvores cobertas de moscas!
Sinto vontade de gritar a plenos pulmões, mas
que não me chegam!
Libertem-nos !
LIBERTEM-SE!
Podemos todos escrever versos! Fazer um Poema
Contínuo!
As nuvens escrevem todos os dias mais uma letra!
O Anjo do Medo está sempre escarnecendo!
Tornei-me uma mulher insuportável.
Espanco todos os dias a minha boca com palavras
de amor.
Sou uma criança com fome, como todos vós .
Trago em meus lábios o verso mais puro do ódio!
Sinto-me Eléctrica ! Robot! Maquiavélica!
O que nós fazemos é horrível! Mentimos
uns aos outros com palavras doces!
Parece que dormi toda a noite num Inferno.
Acordei um monstro vomitando tudo o que engoli
durante séculos!
Nem queiram saber!
Os meus olhos são um Abysmo-de-Ver.
Tenho uma Monumental Cabeça como numa escultura
de Giacometti.
Os meus braços são janelas sem piedade!
Os meus pés pegam fogo a tudo quanto passa!
Entrámos no Inverno.
A Hora está cada vez mais próxima!
Vivemos uma aventura que dura há mais de vinte
séculos.
Não fiquem sentados!
Todos em pé!
Libertemo-nos das amarras!
A partir de agora é em frente que vamos.
É a nossa Hora!
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Num tempo escuro e renegado
(I am a poet.
And like all lovers
and sad people.)
Começo o dia com uma coroa de espinhos e a flor
do desdém.
Pela manhã logo o sono se dissipa,
Nenhum esplendor mais me exulta.
O coração, flor tenra dos muros,
Move-se transparente de um lado para outro.
Inclino-me, então, ao vento, para cima e para
baixo
até que os frutos se desprendam.
Alguns viram meu Pai abraçado a uma semente!
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Jardim de uma só sombra
Hoje pedia só uma árvore em flor
e um caderno de outono. Ou tão só o rosto
de minha mãe refletido num lago
onde cantam eternos pássaros doces.
Mas o paraíso cheio de ladrões
ensinou a minha mãe e a meu pai
que os homens se comem sem piedade
uns aos outros.
Minha mãe, hoje, faria cento e dez anos.
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