Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016



A.M. Galopim de Carvalho. Geólogo, escritor.

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

A História da Terra escrita nas rochas sedimentares

 

A história da Terra lê-se nas rochas e, em grande parte, nas rochas sedimentares.

Para além das suas múltiplas aplicações na sociedade(na construção civil, nas várias indústrias, na escultura), as rochas podem ser entendidas como documentos que os geólogos aprendem e ensinam (sempre que for caso disso) a ler. E as letras que trazem escritas são, em especial, os fósseis que muitas delas encerram, como é o caso das rochas sedimentares, e os minerais que, em todas participam como constituintes essenciais.

Como entidades mais peliculares da litosfera acessíveis à observação de qualquer curioso, as rochas sedimentares constituem um domínio particularmente importante da Geologia, fulcro das preocupações dos sedimentólogos, uma especialização relativamente recente que se fica a dever, em grande parte, aos interesses das grandes empresas petrolíferas. Arquivos de vultuosa informação, estas rochas têm-nos permitido  a sua leitura e, assim, conhecer grande parte da história da Terra e da Vida.

Numa linguagem com preocupações de estilo, poder-se-á afirmar que as rochas sedimentares trazem consigo, não só as marcas dos seus progenitores, mas também as das condições ambientais em que foram geradas, ou seja, como e onde nasceram e que muitas delas nos revelam ainda a data do seu nascimento.  

É, pois, nesta medida quen podemos comparar as camadas de rochas sedimentares às páginas de um grande livro onde está escrita uma história com milhares de milhões de anos. Em 1941, nos primórdios da sedimentologia, o físico e cosmólogo russo George Gamow escreveu: "O Livro dos Sedimentos, reconstruído pelo esforço de diversas gerações de geólogos, equivale a um extensíssimo documento histórico, ao lado do qual todos os alentados volumes da História da Humanidade não passam de insignificantes opúsculos”. 

Se o cidadão abarcar os como e os porquês, os quando e os onde relativos à dinâmica inerente aos processos que levam à génese das rochas sedimentares (alteração das rochas em superfície por efeito dos agentes externos, erosão, transporte e sedimentação);  

Se interiorizar os principais conceitos sobre os mais variados ambientes de sedimentação que hoje nos rodeiam (marinho, fluvial, lacustre, glaciário, etc.) em todas as latitudes, a ponto de os poder correlacionar com os do passado; 

Se souber que foram ambientes iguais ou semelhantes a esses que, ao longo de milhares de milhões de anos, estiveram na origem de uma parte substancial das rochas sedimentares e das que delas derivaram por metamorfismo e anatexia (fusão em profundidade e transformação num magma);

Se, em suma, adquirir preparação de base nestes domínios:  

Irá entender a maravilhosa história do planeta que nos deu e assegura a vida, compreenderá melhor o mundo físico que o rodeia e ganhará capacidade para intervir conscientemente nas decisões do poder político que, tantas vezes, em nome do lucro, atentam contra o ambiente.

Na “Enciclopédia” de Os Irmãos da Pureza, obra colectiva, concluída por finais do século X, diz-se, numa notável antecipação ao conceito moderno, que “a erosão destrói perpetuamente as montanhas e que o escorrer das águas pluviais arrasta rochedos, pedras e areia para o leito das torrentes e rios; diz-se ainda que, por seu turno, ao escoarem-se, os rios acarretam tais materiais para os pântanos, lagos e mares, onde os acumulam sob a forma de camadas sobrepostas”. 

No século XIII, Alberto, o Grande (1206-1280), aludia “ao lodo agarradiço e viscoso, trazido pelas águas, que cimenta a terra (material detrítico, desagregado) e a transforma em rocha dura”.

No século XIV, Jean Buridan (circa 1300-1360), filósofo francês e reitor da Universidade de Paris, reformulando uma ideia vinda da Antiguidade, escrevia “Onde hoje se encontra o mar foi outrora terra e, inversamente, onde a terra firme está no presente, esteve o mar e aí voltará.

No século XV, Leonardo da Vinci (1452-1519) admitia que os fósseis encontrados nas montanhas eram restos de seres vivos depositados no fundo dos mares. Polemizando entusiasticamente com os defensores de ideias conservadoras, contrárias às suas, da Vinci descreveu notavelmente os grandes processos actuais e passados da erosão, transporte, sedimentação e fossilização, numa óptica muito próxima das concepções actuais.

No século XVII, o dinamarquês Niels Steensen (1638-1686), teve papel igualmente importante na área da geologia sedimentar, no seu todo, incluindo a estratigrafia, muito antes desta disciplina se ter afirmado como tal, dizia: “Se as conchas e outros restos de antigos seres vivos, encontrados nas rochas de uma dada região, são despojos de animais marinhos, as camadas que os contêm são necessariamente marinhas”, concluindo que o mar ocupara essa região. Por outro lado, ao dizer que ”as camadas são formadas paralelamente à horizontal, em obediência à gravidade terrestre” este médico e naturalista dinamarquês introduziu o que ficou conhecido por “princípio da horizontalidade original”, concepção que lhe permitia concluir: “quando as camadas se encontram inclinadas, tal é devido a deformação posterior”. Uma outra sua afirmação, segundo a qual, “qualquer camada é mais moderna do que a que lhe fica por baixo e mais antiga do que a que lhe está por cima, foi considerada  como “princípio fundamental da estratigrafia”, pois mostrou que as camadas sedimentares são cada vez mais modernas à medida que se sobe na série..

Estas afirmações constituem hoje verdades mais do que evidentes, mas foram, na época, grandes passos em frente no avanço do pensamento geológico. Com Niels Steensen, as sucessões de camadas sedimentares passaram a funcionar como “arquivos da natureza”, como lhes chamaram, mais tarde, o naturalista e geólogo alemão Peter Simon Pallas (1741-1811), e o geólogo francês Faujas de Saint-Fond (1741-1819), ou como “anais do mundo físico”, no dizer do padre francês, Giraud Soulavie (1752-1813), fundador da moderna estratigrafia paleontológica.

Por esta altura, o escocês James Hutton (1726-1797), considerado o pai da geologia moderna, ensinava que “a história da Terra pode ser decifrada a partir do estudo das rochas sedimentares estratificadas, uma vez que estas rochas se geraram de modo comparável ao dos modernos sedimentos em formação sob os nossos olhos”. Este raciocínio é hoje usado, automaticamente, sem qualquer hesitação, quando, através do estudo das rochas sedimentares, procuramos conhecer o ambiente e as condições em que foram geradas. Uma tal concepção, que constituiu um passo decisivo no conhecimento geológico à escala global, assenta no que foi o trabalho deste professor da Universidade de Edimburgo e no do seu concidadão Charles Lyell (1797-1895), corroborado pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), através do estudo do evolucionismo. Conhecido por “Princípio do Uniformitarismo”, do “Actualismo”, ou das “Causas Actuais”, dele se conhece a expressão que ficou clássica “O presente é a chave do passado”. Esta frase diz concretamente, na situação em que aqui é usada, que qualquer corpo de rocha sedimentar foi depositado por agentes como gravidade, chuva, vento, água corrente, gelo, acções marinhas, etc., todos eles processos familiares nos dias de hoje. As rochas sedimentares, no geral, sedimentos antigos posteriormente litificados, guardam as marcas deixadas pelos ambientes e agentes deposicionais semelhantes aos actuais. É, pois, com base neste princípio que se elaboram reconstituições paleoambientais contemporâneas das rochas sedimentares que vemos por todo o lado. Hutton dizia que “a Terra é um sistema dinâmico, cuja superfície está constantemente em transformação em virtude, não só do calor armazenado no seu interior, mas também dos efeitos causados em superfície pela energia solar”. Por outro lado, no desenvolvimento da teoria plutonista (formação de rochas magmáticas em profundidade), de que foi o protagonista mais visível, as rochas sedimentares ganharam o significado que não tinham tido até então. Com efeito, o modelo cíclico de renovação da crosta terrestre, implícito nesta visão, resulta, segundo ele, de um equilíbrio dinâmico entre a elevação das montanhas, por efeito do calor interno, e a sua posterior erosão. Hutton mostrou, ainda, que os materiais resultantes desta erosão eram acumulados em sucessivas camadas sedimentares e aí consolidavam, originando rochas como conglomerados, arenitos, argilitos, calcários, entre outras. Ao dizer que “as camadas de rochas sedimentares foram antigos sedimentos que se transformaram em rochas, “este fundador da moderna geologia dava ênfase à petrificação ou litificação dos sedimentos, habitualmente referida por diagénese.

 
 
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