1 As raízes do
“Bureau Surrealista” remontam ao período do teu
serviço militar na Guiné, entre 1968 e 1970. Que
aconteceu nesse período?
Resposta NS – Creio que fará sentido ir a uns
breves meses antes, para se ter uma noção clara
de tudo: uma certa noite, na caserna do quartel
de Leiria onde então estacionava na primeira
especialidade, conheci Carlos Martins em
circunstâncias especiosas: estando já deitado,
um grupo de outros militares entrara para se
recolher ao leito e um deles, ao subir para o
beliche, caiu dele para baixo…Os outros
desataram a rir. Eu, algo preocupado e num
impulso, dirigi-me ao tombado, perguntei-lhe se
se magoara e ajudei-o a levantar. (Teria
procedido a libações?...) Repare-se que isto se
passou na penumbra…No dia seguinte, pela altura
do almoço, alguém se me dirigiu e identificou-se
como o caído, agradeceu-me o gesto e referiu-me
que já reparara em mim por eu andar geralmente
com um livro na mão…
Ficámos amigos desde então, frequentámos a
seguir, na Trafaria, a mesma especialidade
(serviços cripto, material e segurança) e,
depois de mobilizados, fomos com dois meses e
picos de intervalo, ele antes de mim, para o
quartel-general em Bissau.
O nosso contacto e identificação com a
surrealidade em particular e as artes & letras
em geral, intensificou-se. Todos os bocados
livres que tínhamos usávamo-los para ler e dar
grandes passeatas por Bissau, estabelecermos
convívio com outros militares interessados e
gente da população, em suma: visando
preenchermos da melhor forma aquele tempo de
exílio...E foi um tempo de descobertas,
encantamentos e, simultaneamente, de
preocupações (o nosso trabalho militar a isso
levava).
Comprámos materiais simples (canetas de feltro,
guaches, etc) pintávamos e fazíamos colagens
(ele principalmente, na colagem era um mestre)
e, arriscando o couro se assim me exprimo,
compusemos mesmo um livrito na tipografia da
Secção da “secreta” a que estávamos adstritos.
Eu dei-lhe como qualificação, com a sua
aquiescência, “Edição do bureau surrealista
Alentejo/Lisboa”. (Não sei se ele terá
conservado algum exemplar, eu tenho apenas
fragmentos dessa poemaria).
Ao vir passar as férias intercalares que
proverbialmente estavam concedidas aos
expedicionários a meio da comissão de serviço,
quando regressou levou-me como oferta o livro de
Cesariny “A Intervenção Surrealista”.
Congeminámos então que quando voltássemos
entraríamos em contacto com os surrealistas que
conseguíssemos achar (não tínhamos bem a noção
de quem eram exactamente nem onde se
encontravam).
2 O teu regresso
a Portugal deu-se em 1970, aos vinte e quatro
anos, e logo procuraste, com Carlos Martins,
contactar em Lisboa com o grupo dos
surrealistas, que acabara de publicar a
importante colectânea
Grifo. Qual o papel de
António José Forte, que estivera em Portalegre
na primeira metade da década de 60 e com o qual
mantinhas um mínimo de proximidade, nesse
primeiro contacto?
NS – O Forte deixara na cidade confrades com
quem se continuava a corresponder:
principalmente um João Silva, militante
comunista com quem eu me passei a dar em largas
conversas nas nossas horas nocturnas, entretidas
no estabelecimento de electrodomésticos dum seu
irmão e onde ele ajudava na contabilidade; e o
seu ex-colega funcionário das carrinhas
Gulbenkian Donato Faria, pessoa de cordialíssimo
trato e firmes interesses culturais que me
emprestava todos os livros disponíveis do acervo
em armazém e, dessarte, me permitiu cimentar
certos ritmos interiores. Por intermédio deste
escrevemos ao Forte, que levou a carta aos
outros confrades e, em resposta, marcaram-nos
encontro para num determinado dia, a contento,
nos encontrarmos todos no Café Monte Carlo, onde
então tinham estabelecido uma tertúlia, digamos,
ou pelo menos onde costumavam juntar-se
habitualmente.
Lá fomos no dia aprazado e encontrámos à nossa
espera o Virgilio Martinho, o Ricarte-Dácio, o
Ernesto Sampaio, o Forte. Recordo-me que o Pedro
Oom chegou mais tarde bem como o Herberto Helder
e, se bem me lembro, a Fernanda Alves, o Miguel
Erlich e a mulher…
Tínhamos-lhes enviado poemas meus e colagens do
Carlos, à guisa de “cartão de apresentação” e
tanto quanto me lembro eles ficaram logo a
contar connosco para a “Grifo” número 2…que
jamais saíu por impedimento da Pide ou da
Censura.
3 Qual foi a tua
impressão do grupo que se reunia no café Monte
Carlo e como individualizas nele Pedro Oom, que
viria a morrer pouco depois, em Abril de 1974, e
que tinha mais vinte anos do que tu e vinha do
primeiro período, que seria possível classificar
de heróico, da afirmação surrealista em
Portugal?
NS – A primeira impressão - e por mim falo - foi
de que tínhamos encontrado pessoas com quem nos
podíamos fazer entender…que nos entendiam.
Sentímos
neles, de imediato, uma forte corrente de
inteligência e de imaginação se assim me é dado
exprimir. Ficámos logo à vontade…
Pedro Oom era um poeta que pertencia um pouco à
nossa iconologia pessoal e foi com certa emoção
que nos vímos a conversar com ele de forma
interessada e amena, pois ele apesar de agudo e
brilhante era cordial e cordato. Não detectei em
qualquer deles, aliás, sinais de pedantice ou a
mínima sobranceria, antes um interesse afável
pelos “moços” que de repente lhes chegavam
trazendo algumas coisitas, o que no dizer lhano
de Ricarte-Dácio não lhes costumava suceder
vulgarmente.
Os outros tinham pelo Pedro uma visível
aceitação, as conversas de uns para os outros
iam e vinham nas mais variadas direcções,
esfuziavam por vezes com senso de humor ou com
críticas e análises certeiras – o que se nos
comprazia a valer não nos surpreendeu
excessivamente: era isso que já esperávamos
encontrar…ou sonháramos encontrar. Novos como
éramos, apaixonados pela poesia e a arte, saímos
dali rejubilando tanto mais que nos tinham
aberto a porta para futuros encontros com
extrema franqueza, sem marcações prévias…(Digo
sem acinte, mas com frontalidade: na Paris de
1999 ao encontrar-me, aliás com cordialidade
fornecida por Michel Lowy e outra conviva, com o
Grupo surrealista que se reunia num café da Rua
do Rivoli quase em frente da Tour Saint Jacques
de iniciática memória e presença – fiquei
admirado ao saber que, em determinados dias, as
reuniões eram só para quem fosse mesmo membro do
grupo. Formalismo muito gaulês? Talvez…).
4 Com o
teu regresso a Portalegre dá-se a criação do
“Bureau Surrealista do Alentejo”. Quais foram as
acções e os membros deste grupo?
NS – “Bureau Surrealista Alentejano” mais
simples e humildemente, se me permites a leve
correcção…Para marcarmos que não nos atrevíamos
a dizer que era de toda a província transtagana,
faço-me entender? De 70 e pelos anos
posteriores, o núcleo duro, ao qual por vezes se
chegavam confrades curiosos ou artistas nas
proximidades (lembro por exemplo o António
Ventura - que com o pseudónimo de André Gameiro
dedicou dois belos poemas a Manuel de Castro num
periódico local - depois ido para os meios da
docência universitária e da historiografia
regionalista) era informalmente formado por mim,
pelo Carlos Martins (que algum tempo depois se
mudou de Lisboa para Santa Marta-Alcoutim,
abrindo aí uma pequena galeria/atelier de
cerâmica com sua mulher Ana dos Santos) pelo
A.J.Silverberg, pelo Palácios da Silva, pelo
Margarido Neves (falecido muito novo, a quem
dediquei o meu poema “Defunto” de “Os objectos
inquietantes” e que também alinhava comigo, como
libertário, nos tratos políticos de Abril), como
“alentejano itinerante” como ele dizia com
humor, o Lud (Ludgero Viegas Pinto) e, mais
tarde, o João Garção.
As acções levadas a efeito, conforme se podia ou
nos era facultado, foram constituídas por
exposições em locais diversos (Galeria Municipal
portalegrense, Clube de Futebol do Alentejo,
Biblioteca de Portalegre…), emissão de textos
deste ou daquele talhe, pinturas e poemas
inseridos aqui e acolá (“Distrito de
Portalegre”, “A Rabeca”, “Diário de Lisboa”,
“República”…), presenças em emissoras de rádio
locais (Rádio Portalegre, Rádio S.Mamede…),
participações em momentos de poesia e em
publicações várias…edições reduzidas de livros
copiografados…
5 Com a tua
aproximação ao Mário Cesariny, que estava à
margem do grupo que se reunia no Monte Carlo, o
“Bureau Surrealista do Alentejo” transforma-se
em “Bureau Surrealista Lisboa/Portalegre”. Como
e quando conheceste Mário Cesariny e quais as
principais acções do novo “Bureau” e até quando
duraram?
NS – Conforme já o evoquei em texto dado a lume
até nesta revista, conheci-o em Lisboa nos
princípios de 79. Combinámos de imediato levar a
efeito acções em conjunto. Através dos tempos,
de início com maior frequência depois mais
intermitentemente, emitímos textos, participámos
em mostras por vezes estimuladas por nós (na
Biblioteca de Portalegre, no Teatro Ibérico e na
SNBA…) demos a lume poemas e prosas em
publicações diversas, estivemos presentes em
sessões (no cineclube de Portalegre que eu então
assessorava, num salão de bombeiros em Alcântara
através do grupo de teatro Mandrágora…),
mantivemos relações com confrades estrangeiros,
etc.
6
Assumindo-te como libertário, estabeleceste
relações com o movimento libertário em Portugal
depois do 25 de Abril de 1974 e chegaste a
encarar uma colaboração estreita do “Bureau” com
o jornal fundado por Francisco Quintal,
Voz Anarquista. Conta-nos o
que foi este projecto.
NS – Em certo dia, depois de colaborar com
alguns textos diversos nesse periódico e também
no “A Batalha”, como eu colaborava com poemas e
prosas no “A Rabeca” (de que fora
chefe-de-redacção em anterior gerência até ser
“saneado à esquerda”, como então se dizia) e no
“O Distrito de Portalegre”, sugeri a Francisco
Quintal a publicação dum suplemento, numa folha
e sobres, em que eu e o Mário daríamos a lume
coisas de índole surrealista com incursões de
outros autores que achássemos valiosos, numa
prática abrangente.
Ele concordou em levar a outros membros do
jornal a nossa proposta, que em princípio
aceitou. E nós juntámos material…No entanto,
algum tempo mais tarde comunicou-me que o
projecto talvez não se pudesse levar a cabo,
pois o jornal era pequeno e o espaço fazia falta
para artigos difundindo as ideias anarquistas
por extenso. Claro que compreendêmos a sua deles
opção e…não insistímos.
7 Outra
colaboração que o “Bureau” chegou a encarar no
após 25 de Abril com a imprensa libertária foi
com o jornal
A
Batalha. Como conheceste
Emídio Santana e que tipo de colaboração se
estabeleceu entre vocês?
NS – Conheci Emídio Santana no decorrer, no
final, duma sessão que já não recordo bem qual
foi. Sei que o Margarido Neves, um jovem
dinâmico e portalegrense como eu, me
acompanhava, pois também vogava nas concepções
libertárias e surreais. Ficámos a dormir em casa
do Santana, que me pareceu ser um homem bom e
cordial e cuja figura, ainda por cima, me
surpreendeu por ser fisicamente muito parecido
com o Breton…
Publiquei em consequência no seu jornal alguns
textos, mas nunca houve ensejo de lhe propormos
a cedência de uma ou duas páginas para um
suplemento. A anterior sugestão aos da “Voz” não
surtira efeito…talvez por isso nada dissemos ao
Santana. Ainda que o Mário, que encarava os
confrades tanto da Voz como da Batalha como um
todo, digamos – eram os confrades anarquistas e
ele tinha globalmente apreço por eles, sem
distinguir excessivamente que uns eram dum
periódico e outros doutro – tenha arrolado
material e pensado em juntar mais, doutros
autores, para o darmos ali a lume por meu envio,
como se fizera com outros textos.
8 Colaboraste
ainda na revista
A
Ideia em 1981 com um texto
que foi o primeiro que se publicou na revista
sobre o movimento surrealista. Como se deu a tua
aproximação à revista?
NS – Já não tenho bem presente que tipo de
contactos, especificamente, foram efectivados…Só
me lembro que num belo dia, recolhido algum
material, enviei à revista esse acervo de coisas
a que o Mário deu o seu aval com todo o gosto.
9 Houve
colaborações entre o “Bureau” e outra imprensa
libertária, que não estas três (Voz
Anarquista,
A
Batalha e
A
Ideia)?
NS – Tanto quanto sei só eu publiquei, dentro de
portas, num curioso mas efémero jornalzinho
artístico libertário, “O Pasquim”, um par de
textos e poemitas…Fora de portas, o Carlos
Martins teve algumas ligações com periódicos
espanhóis e do universo anglo-saxão, mas só pela
rama as conheci. Quanto ao Mário, entretinha
relacionamento com órgãos estrangeiros, mas não
sei bem se, sendo surrealistas, tinham também
uma orientação libertária ou mesmo francamente
anarquista.
10 Como
via Mário Cesariny as relações do surrealismo
com a imprensa libertária?
NS – Do que me apercebi, com naturalidade
cordial e interessada. Posso recordar-me que,
quando lhe sugeri levarmos a proposta a Quintal
- e o mesmo se passou com “A Ideia”- a sua
reacção foi no estilo “com os anarcas, tudo”.
Creio que é significativo e na verdade detectei
nele o sentimento de que os anarquistas seriam
os que veriam (pelo menos esperava-se ver neles
confrades certos) os surrealistas como
companheiros de jornada ainda que noutra
dimensão, digamos.
11 André
Breton publicou em 11 de Janeiro de 1952 no
jornal
Le Libertaire, no quadro da
colaboração do grupo surrealista de Paris com a
Federação Anarquista, um texto poético em prosa,
“La Claire Tour”, mais tarde integrado no livro
La Clé des Champs
(1952), em que afirma que o surrealismo se viu
pela primeira vez, de forma consciente, no
espelho negro do anarquismo. Como vês a
cooperação entre os dois movimentos?
NS – Vejo-a como criadora de imensas
virtualidades. Os libertários, a meu ver, são os
irmãos colaços dos surrealistas, em última
análise os libertários/anarquistas e os
surrealistas SÃO O ROSTO LUMINOSO DO FUTURO. No
passado os surrealistas pensaram que os
marxianos (pois uma intensa e hábil propaganda,
a agit-prop dos partidões, forjava esse cenário)
eram seus co-irmãos, companheiros de jornada com
os quais poderiam ajudar a descoisificar o
mundo. Falaz ingenuidade! Os tempos e a História
mostraram que os “amanhãs que cantavam” eram não
mais, afinal, que o ulular que subia do fundo
dos cárceres para assombrar as gentes e
aterrorizar as consciências livres.
Hoje, que já se sabe tudo e o fascismo vermelho
não mais pode erguer, senão com as fauces
destapadas, o seu vulto equívoco e sinistro,
compreende-se que nenhum autoritarismo, seja
laico ou fideísta, pode agregar o surrealismo
sequer como mero contrapeso, quanto mais como
acompanhante…
Breton concluiu-o, diria com estima, à sua
custa. Nós, que tivemos a sorte de existir num
mundo se não mais feliz e adequado pelo menos
mais esclarecido, pois as décadas transcorreram,
decerto não perderemos de vista essa lição!
24 de Outubro de 2014
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