“Tempos líquidos”
Samuel Prado, 2015
Aqui não há alquimia: a terra é a terra
e a palavra não é pedra filosofal
nem nos levará a nenhum
êxtase,
senão
a um centro.
Nove
poemas para o século
1
Em cidades estranhas
os objetos tornam-se estrangeiros.
Há no entanto outras violências:
quase sempre a minha mão
alongando-se
na sombra.
2
despiram-lhes as roupas
cortaram-lhes a língua
levaram os cães para longe
deixaram crescer a erva
dos séculos
dentro da noite
com uma mancha
de sangue
escreveram nas paredes
da casa
um nome
arrancado às entranhas
tentava subir uma escada
um homem sem mãos
com uma faca na boca
3
Observo a mulher de rosto jovem
dentro de um prédio.
Vejo-a através dos óculos
iluminando-me com os seus belos olhos.
Como uma espécie de recompensa
dou-lhe o meu silêncio atento
desfazendo-o de seguida com breves anotações.
Satisfeito?
Não!
Há lugares que nos conduzem a sensações
que nunca imaginamos.
Por ora não quero ir mais longe.
4
O conhecimento é árduo.
Um pequeno exame de
consciência
pode carregar toda a
obscuridade do mundo.
Confúcio disse:
quando te
sentires em trevas
acende
pelo menos uma vela.
5
Perguntou
por um abrigo na noite
Virou os olhos
para uma estrada ao
longe
Estranho.
Ainda há pouco era outono.
6
Alguns papéis escritos e uma fotografia antiga.
Algum pó desfeito nas paredes da casa
Uma aliança que segura entre os dedos.
7
Do outro lado da rua
uma casa.
Dentro dessa casa
uma janela.
Dentro da janela
a cortina levantada.
Encostado ao vidro da janela
o rosto de um homem
(parece
que pensa)
Um cão ladra.
Vou caminhando entre os dois.
8
O seu elitismo foi ao
extremo.
Tornou-se monge.
9
Um monge na sua caverna negra:
um silêncio de cera.
Bresson dizia:
um bom
caçador
não pode ser cozinheiro.
Estão a ver onde quero chegar?
Samuel Prado, 2015, Lisboa
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