Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 55 . dezembro 2015 . índice


MARIA AZENHA

 

“Tempos líquidos”

de

   Samuel Prado





Maria Azenha (Portugal). Poeta, ensaísta. Foi professora universitária. Tem mais de duas dezenas de livros publicados.    
 

UMA BREVE EXPLICAÇÃO

 

 

“No fim do Outono de 2010, numa tarde em que escrevi “o poema é uma metáfora da memória , dei conta que estava a nascer Samuel Prado.

Uma nova personagem?

 

Interroguei-me.

Duvidei-me.

Assombrei-me.

Afinal quem sou?

 

Lembrei-me então de Hubbell :

 

“Não sou uma pessoa.

Sou uma sucessão de pessoas

Reunidas pela memória.

Quando o cordão se rompe,

as contas espalham-se.”

 

Regresso assim ao momento do parto.

Ao instante da Inocência.

Quando o cordão se rompe.

 

Ou como disse Bobin (2) :

 

«Vivemos em cidades, em ofícios, em famílias.

Mas o lugar onde vivemos em verdade não é um lugar.

(…)

É aquele onde esperamos - sem conhecer o que esperamos -,

aquele onde cantamos - sem compreender o que nos faz cantar.»

-

(*)O poema é uma metáfora da memória

 

 

O poema é um transplante da memória para o coração

Aí hiberna. Acorda.

Dá a volta ao mundo.

Coloca um violino de incêndio nas mãos. O poema organiza o universo em três ou quatro versos. Atinge o clímax no crepúsculo das ínsulas. De alvura e fogo nas artérias explode.

Outras, morre.

Vem ter à boca. Por vezes acende uma chama de lodo.

Clama gritos de neve e lama. Quando o sangue ascende à cabeça há um revólver. Não sabemos o que escreve nas planícies do sangue.

O que derrama na língua. Vive dentro da névoa.

Expira a cada instante.

Visita o túmulo das mãos.

Abre uma chaga no céu. “

 

Maria Azenha

In “A sombra da romã, Apenas Livros, 2011

 

 

Foi assim que  cresceu a voz-personagem de Samuel Prado ao lado de  Maria Azenha.

 

 

“Tempos líquidos” 

    Samuel Prado, 2015

 

 

Aqui não há alquimia: a terra é a terra

e a palavra não é pedra filosofal

nem nos levará a nenhum  êxtase,

senão  a um centro.

 

 

 

 

Nove  poemas para o  século

          

 

1

Em cidades estranhas
os objetos tornam-se estrangeiros.
Há no entanto outras violências:
quase sempre a minha mão

alongando-se  na sombra.

 

2 

 

despiram-lhes as roupas
cortaram-lhes a língua
levaram os cães para longe

 

deixaram crescer a erva dos séculos
dentro da noite

 

com uma mancha
de sangue

escreveram nas paredes da casa

um nome

arrancado às entranhas

 

tentava subir uma escada

um homem sem mãos

com uma faca na boca 

 

 

 

3 

 

Observo a mulher de rosto jovem
dentro de um prédio.
Vejo-a através dos óculos
iluminando-me com os seus belos olhos.

Como uma espécie de recompensa
dou-lhe o meu silêncio atento
desfazendo-o de seguida com breves anotações.

Satisfeito?
Não!

Há lugares que nos conduzem a sensações
que nunca imaginamos.

Por ora não quero ir mais longe.

  

4 

 

O conhecimento é árduo.

Um pequeno exame de consciência

pode carregar toda a obscuridade do mundo.

Confúcio disse: quando te sentires em trevas

acende pelo menos uma vela.

 

 

 

5

 

Perguntou
por um abrigo na noite
Virou os olhos

para uma estrada ao longe

Estranho.
Ainda há pouco era outono.  

 

 

6 

 

Alguns papéis escritos e uma fotografia antiga.
Algum pó desfeito nas paredes da casa
Uma aliança que segura entre os dedos.

 

 

 

7 

 

Do outro lado da rua
uma casa.
Dentro dessa casa
uma janela.
Dentro da janela
a cortina levantada.
Encostado ao vidro da janela
o rosto de um homem
(parece que pensa)

Um cão ladra.

Vou caminhando entre os dois.

 

 

 

8 

 

O seu elitismo foi ao extremo.
Tornou-se monge.

 

 

 

9 

 

Um monge na sua caverna negra:
um silêncio de cera.
Bresson dizia: um bom caçador
não pode ser cozinheiro.

Estão a ver onde quero chegar?

 

 

 

 

 

 

 

Samuel Prado, 2015, Lisboa 

 

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Maria Estela Guedes
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