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MANUEL NETO
DOS SANTOS
Sobre o oásis
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Manuel Neto dos Santos (Portugal, 1959. Frequência superior
em filosofia.
Autor de vastíssima e multifacetada obra poética,
grande parte dela ainda inédita. |
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Das poucas coisas absolutamente necessárias, eis
a ternura quando há tanto por dizer e tão breve
a vida. Amemos pois, num país vocacionado para o
suicídio, como um sol sumarento, como se ele
mesmo fosse o cardo coalhando um imenso mar de
luz, nas serras a poente. Das poucas coisas
absolutamente necessárias, eis o o gostos pelos
espaços soberanos nos meus versos, numa
cumplicidade estelar como se a bússola fosse eu
mesmo e ainda não soubesse para que irrompe a
luz através da escrita, co mo um espanto
desnorteando a nostalgia, habitado que estou
pela graça das palavras… Das poucas coisas
absolutamente necessárias, eis a escuta do
coração da terra, par que não me distraia com o
ruído do mundo; lembrando-me a brancura
acidulada no regresso sobre os eirados seguindo,
com o olhar, o rápido e estridente voo dos gaios
e a leveza do pó pelo andar apressado dos
rebanhos. Das poucas coisas absolutamente
necessárias, eis a memória de ti, do teu corpo
desnudado, sobre o feno quando toda a natureza
falava das noites de prazer enquanto, ao longe,
o mar nos copiava os movimentos de vai- vem,
também do nosso sangue terroso de vermelho a
dizer, nos lábios, que éramos nós, então, o
centro do mundo. Das poucas coisas absolutamente
necessárias, eis o suco, que por vezes à tarde,
me obriga a sonhar contigo ainda acordado que,
ao contrário do amor, a minha poesia não ensina
o que quer que seja para além da minha busca
linear, breve, luminosa, como é luminosa a
claridade que adormece nos sulcos rasgados na
terra. Das poucas coisas absolutamente
necessárias, eis o sentir- se bem como um gato
ao sol, com essa necessidade que se irmana do
pão e do amor, como um fascínio pela palavra
justa, bárbara e fascinante, como são bárbaras e
fascinantes as palavras com que trazemos a
soalheiro a vida inteira. E outras há… outras
coisas absolutamente necessárias, das quais ora
não me lembro, talvez quando morrer…que seja
esse vocábulo, pois, o mais necessário e
derradeiro.
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Ad retro; o peito, gasto, a referver de amores
como se a vasta fronte albergasse um mar de
ideias celebrando as canções e os brios numa
lírica escolta entre tojos e carrasqueiras…
Tal como nos tempos idos, de mármores e de
alabastros, cinzelo os versos feitos de modéstia
e de talento…
Ad retro, falsa realidade diurna pois, em meu
coração, trago um viajante pela noite imensa que
redescubro e ainda invento.
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Nascem da luz e do barro as ávidas neblinas
procurando as tuas mãos; os dedos têm a dureza
das pedras e as carícias o aveludado do musgo
tenro, no recolhimento das alfombras… Tudo
sombrio, sob o recorte dos verdes, para que eu
viagem pela planície da infância e me reencontre
na seiva dos sonhos.
Nascem da luz e do barro as horas fugidias, e
fogem os dias. Ao largo das varandas de cal, ao
longe, o cântico das areias para que as ideias
se componham como azulejo andalusino… O cálido
perfume da brisa, sobre a tua pele, como se
rasgam as veredas na aridez dos campos, pelo
caminho tantas vezes repetido.
Nascem da luz e do barro os barcos que
regressam, no som da tua voz, par que as mãos
desenhem, nas sombras das nuvens sobre as velas
dos outeiros, desatadas, as formas do teu rosto.
Aperto, tal como apertava, os aromas como perfis
gravados ao sol e ao vento, transfigurados nos
requebros dos goivos e das rosas…
Nascem da luz e do barro os cardos esquecidos e
autóctones, como são naturais os meus braços ao
relento, esperando o teu regresso. Oscilo, como
um pássaro no alto de uma espiga ou uma libélula
na folha esguia da tabua…
Nascem da luz e do barro os meus poemas quando,
detrás dos escafelos negridos do céu, reaparece,
no palco da abóbada celeste, tímida e insegura,
a claridade da lua.
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Para o amigo Beto
Kalulu |
Ainda não foi
hoje que resolvi todos os problemas do mundo;
que o mundo está latejando de trémulas
balbúrdias nos espaços sem limite e eu apenas
estou por aqui para tentar saber do limite do
tempo, tal como se aprende os declives dos
sulcos das montanhas africanas.Ainda
não foi hoje que resolvi todos os sonhos de
músico como poeta, que os sonhos de poeta e
músico me enrolam pulseiras de versos e os sons,
como lanças, vêm rasgar golpes na essência para
que vos façam (extra) vazar a seiva do espanto e
o sangue nada mais seja que o aroma a iodo, como
labaredas, incendiando o capim de bruma e
maresia.Ainda não foi hoje que
consegui descrever o rumor dos tambores
acordando a terra escaldante da savana; os sons
iniciais na ponta dos dedos, como carícia sobre
a epiderme das manhãs; depois a palma do meio
dia, num crescendo galopante, e s aves retomam o
voo, riscando o céu flamejante espelhando, sobre
a majestade do Nilo e a timidez do Arade, o seu
serpentear feito de penas… e o dedos ganham a
agilidade das gazelas e o sonho a altura
sobranceira da visão das girafas.Ainda
não foi hoje que resolvi todos os problemas do
mundo mas, por onde quer que vá, gentes de todas
as raças, crenças e idades sentem, no pulsar do
sangue, a Arte Maior e tribal de destronar o
silêncio, com a ponta dos dedos… e todos os
problemas do mundo se resolvem…que o diga o
sorriso à flor dos vossos lábios.
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Para Josefa Lima |
Há duas margens, para o deslumbramento das
cidades. Atravesso o rio, sem lhe tocar,
atravesso-o e sou gente numa moldura de barcos e
de azáfama, de casas e de carros levando gente
e, dentro dela, vidas, sonhos, mortes e
desesperos. Para o rio sou, eu mesmo, a ponte
por querer estar do outro lado.
Do outro lado, de lá, aqui há também pastores e
músicos e poetas, essa gente que tudo sabe sem
nunca ter aprendido e vive de distâncias que
trazem, para mais perto de nós, as etéreas
divindades de existir. O poema é a travessia e a
travessura que infligimos ao corpo, e os
sentidos pagam-nos da mesma moeda por
amealharmos os silêncios como séquito real de
esmolas.
Há duas margens par o deslumbramento das serras
e das estepes perfurando o céu para que a luz
escorra, numa profusão de claridade; como gente
emoldurada por arbustos, regatos, canto dos
pássaros invisíveis, no labiríntico espaço por
onde a aragem se recorta e ganha todas as
formas.
Para a serra sou, eu mesmo, obstáculo
redesenhando o fluir do vento, por me encontrar
cá deste lado; tudo existe entre duas margens…
apenas eu, nesta insatisfação constante ando, de
mim, desencontrado.
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Excertos do LIVRO
DO CORAÇÃO E DAS NUVENS
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