Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 55 . dezembro 2015 . índice


 

Luís Costa
escreve poesia e mais algumas coisas. Nasceu numa Sexta - Feira Santa.
 Já teve o prazer de participar em várias revistas digitais e também (com 4 poemas) no primeiro número da Revista Objeto Surrealista DEBOUT SUR L'OEUF. mas até agora continua inédito em livro. Para além disso pouco há a dizer. Ah!Diz que a biografia do poeta é a sua poesia, pois, a seu ver, fora do poema o poeta não existe. Ama a poesia, mas também a odeia. Sim, poetar é para ele uma questão de ódio e amor. Uma violência amorosa. Talvez mesmo o ( des ) contínuo assassinato do eu para que o poeta se faça. 
LUÍS COSTA

Lanhos
 

Pont Mirabeau 

Von der Brücken- / quader, von der / er ins Leben hinüber- 
/ prallte, flügge / von Wunden, - vom / Pont Mirabeau. 

( Paul Celan )

 

Trazias as mãos atadas. as asas cortadas. 

um lanho no ombro esquerdo. 

a meio da ponte paraste. a água. olhavas. 

ah a água... pois tudo flui. tudo flui!

 

em ti fazia-se a fome das estrelas. 

caídas. a fome. das estrelas. a raiva. 

o desejo de fluíres. entrares na água. 

seres parte da água. até à matriz.

 

uma estrela desfeita. na imensidão.

da água. renovada. desfeita. na água.

 

e depois: andares dentro da água 

como outrora os profetas... andares. 

             como ein kommendes Wort. 

 

 

Nota: ein kommendes Wort, uma palavra ( que vem ) vindo, ou: uma palavra a caminho.

era o que Celan esperava de Heidegger durante um encontro que aconteceu em julho de 1967,

na cabana de Heiddegger, em Todtnauberg, entre o filósofo e o poeta.

 

 

A quarta defenestração de Praga

 

in memoriam Bohumil Hrabal 

Abrias a janela do teu quarto de hospital, em Praga, e as pombas vinham comer-te às mãos.

então, um dia, tu que nunca tinhas voado, decidiste, já octogenário, aprender a voar com as pombas. 

e saltaste da janela; e, como uma jovem pomba, com um riso cheio de dentes muito antigos,

voaste, voaste e voaste. 

 

do outro lado, os mortos, vestidos festivamente, com grandes flores nas orelhas,

disseram: ai vem ele, vede como nunca é tarde demais para se aprender a voar.

* * *

 

Alguns dias depois, uma quarta-feira de cinzas, foste cremado no crematório Strašnice, em Praga.

uma multidão de amigos, admiradores e companheiros de bebedeiras veio despedir-se de ti.

também lá estavam os mortos que brindavam contigo, riam muito alto, e admiravam as tuas asas.

 
 

Unkenruf

 

Moro aos pés dos homens
dos corpos que se misturam na sombra
e ponho-lhes o poema como uma rã na mão

uma rã que coaxa contra os homens.
(Ezra Pound)

Expiras no rodapé da página vazia, na treva, 

sob a ira dos homens e o uivo dos seus mastins. 

expiras como as rosas secretas de Toulet 

que os malsins pisam diante das estátuas.

 

e uma menina vem de longe, das áreas inauditas. 

o ventre acutilado, as mãos carbonizadas, 

pega nas rosas secretas de Toulet. 

beija-as e amortalha-as.

 

agora: atravessando o sangue do poeta,

terríficos, os sapos sobem à página

               e relincham contra os homens.

 
Günter Grass
 

Maria Magdalena segundo Caravaggio

 

O teu corpo. ferido e exangue.

o suor. o sangue.

o mijo e as fezes.

 

ah, quanta beleza na tua dor!

estremeço.

 

sou um animal
delirante 
nas florestas da noite abissal.

Caravaggio

Do livro: LANHO

 
- Com o Onkel Max e a sua jeropiga miraculosa -
 
 

Hoje: os pássaros cantam de outra maneira

que não ontem.

a adega aberta para o horto:

as laranjeiras ardem.

 
*
 

dentro ( na adega ): o Onkel Max

e eu

sentados a uma mesa

de vidro com pé de galo.

comemos amêndoas

( das suas amendoeiras )

e bebemos jeropiga

( de vinho tinto

feita pelo seu genro )

 

*

 

o sangue corre - nos nos pés

que são guelras muito antigas.

os nossos cérebros ardem como as laranjas

e a lua brilha;

por alguns instantes,

brilha entre o sol e as laranjeiras.

a lua que é uma túmida laranja.

 

*

 

a neta do Onkel Max aparece

uma jovem alta ( 18 anos ) e esguia

como o calor e o sossego desta terra.

o seu sorriso

é

maravilhoso.

 

*

 

e diz:

avô, porque bebes tanto?

e o onkel Max piscando-me o olho

responde:

 

minha neta

esta jeropiga é miraculosa.

repara: acabo de fazer 75 anos,

mas sinto-me como se tivesse 40.

 

e a neta ri

e o mundo é todo o seu sorriso.

e eu e o Onkel Max rimos

igualmente

dentro da luz daquele sorriso.

moreno.

com belos dentes brancos.

 

*

 

encontramo-nos no império da jeropiga.

ardemos como aves.

o sangue cobre-nos os pés

com um pudor que a morte nunca atinge.

 

*

 

mais logo, voaremos por sobre as vinhas

os pomares e os olivais,

grandes morcegos

miraculosamente enjeropigados.

 
 
***
 
 

- O tio Quintas –

 

Visita ao tio Quintas (alcunha): há dez anos, um homem varonil, alto e atlético, rude

como a terra que cultivava, sábio como Alberto Caeiro, de uma alegria contagiante que

lembrava o borbulhar do vinho verde nas tigelas.

agora, dez anos depois, encontra-se paralisado na cama de um lar. só é capaz de balbuciar

algumas palavras, dão-lhe a comida na boca... um Minotauro acorrentado.

ao ver-me: olha-me e reconhece-me.

descubro nos seus olhos (azuis) um brilho de alegria ( por um momento a chama dionisíaca

de outrora, acende-se), mas também um brilho de dor e obscuridade: a noite. a miséria.

enfim, a grande miséria.

com as poucas sílabas que lhe restam, diz: isto é uma porra, isto é uma porra!

sinto uma vontade tremenda de berrar. e interrogo-me:

não nos poderá ser dado o direito de escolhermos o momento da nossa morte? afinal para quê

viver, quando viver é simplesmente um não - viver?

 

 

***

 

 

-Despertar nas caxinas -

 

Despertar: a ira da luz. a boca como uma pedra

-ainda negra-

à espera que as sementes da esterilidade

brotem e floresçam.

 

*

 

lá fora: os latidos dos cães encerrados na maresia.

as rebarbadoras dando flor.

 

 

***

 

 

- When the music's over -

 

Estendemo-nos no chão. lado a lado. dois cães rafeiros.

no gira - discos: os Doors ( Remastered From The Original Master Tapes - acabado de comprar- ), 

When The Music's Over:

 

When the music's over

When the music's over, yeah

When the music's over

Turn out the lights

Turn out the lights

Turn out the lights, yeah

 

olhamo-nos.

sentimos como a música se afunda em nós, nos percorre as veias, incha, penetra até às vísceras,

penetra. a fúria da transgressão, acesa, nas jugulares.

o mundo somos nós, nós, um nó terrivelmente sagrado. um nó. nós.

quem nos poderá cortar? quem poderá sorver este sangue ácido e quente que nos conturba?

 

We want the world and we want it...

We want the world and we want it...

Now

       Now?

              Now!

 

o mundo: somos nós. nós, dois animais rudes e farejantes. duas candeias acesas nas mãos

do carrasco, que, amorosamente, degola a sua vítima.

 

olhamo-nos, furiosos, olhamo-nos. e sorrimos. sorrimos.

as mãos metidas nas calças. entre as pernas. as mãos, masturbantes.

entre as pernas. e a música... ah, a música!

a carne, ardendo, um inferno. a carne.

o INFERNO!

 

olhas-me e sussurras, olhas-me e sussurras:

 

o mundo somos nós. nós!

 

uma vagem gotejante: o teu sexo. uma vara túmida: o meu sexo.

e o céu e o inferno e tudo quanto existe arde-nos nas vísceras. arde até que o deus se erga,

em nós,

morto, se erga, em nós

e caminhe por entre os mortos, caminhe por sobre as águas... por entre os mortos

caminhe e caminhe,  até às cinzas.

 

o deus, a música, os gritos, o deus, a morte, a noite... a noite... e, de repente:

 

O GRITO! A PEQUENA MORTE!

 

Julho 2015, Caxinas

 
 
 
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Maria Estela Guedes
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