Digo-te, caro
Malaquias, que, por vezes, insuportável é o
formigueiro provindo desses ávidos vermes que me
corroem as carnes; e que fausto festim é o
deles, dos vermes, desde que toparam com o
insepulto corpo deste teu amigo, finado para os
perecíveis padrões da morte das gentes mas ainda
cônscio do que à sua beira se passa e, pior do
que tudo, atento e desperto para as
transmutações operadas em seu próprio âmago, no
macabro historiar das ominosas forças da
corrupção que nos mastigam por dentro quando se
instalam, ladinas, senhoras do mundo, mormente
se o sangue, já não fluído, deixa de insuflar
vida fresca nos vivos tecidos, se esverdeia a
tez e os transbrilhantes glóbulos
oculares se embaçam de morte.
Contudo, morto como
esteja, sem veleidades respirantes, preservo
sempre a rotina e, assim, me correspondo aos
dilectos, no rigor do fluxo das missivas, certo
pelos dias, por muito que minha penosa
caligrafia se torne rígida de garatuja pois,
como decerto compreenderás, músculos e tendões
são tecido gasto a desurdir e o alvor dos ossos
desponta pelos pedaços de ausência, outrora
recoberta por matéria pulsante; mesmo as ideias,
de resto, me parecem se esvair pelo exacto lugar
onde a polpa encefálica se liquefez em nada ou
em apetitoso alimento para as larvas.
Persisto nas rotinas de
sempre porque outra coisa não sei. Ainda se
soubesse não veria por isso vantagem em
modificar o exacto rito das minhas horas, as
missivas, sempre constantes, o hábito da
escrita. Assim me habituei, assim permaneço.
Ademais sou a atribuir a estranha sobrevivência
ao sortilégio dos textos. O corpo não foi
avisado de que teria de aguentar enquanto eu não
terminasse a
minha obra e teve a desconsideração de
morrer; máquina que bombeava o sangue, que me
fazia mexer com outra desenvoltura, decidiu
terminar de maneira abrupta o seu labor;
recusando-se a funcionar nem por isso eu, que
sou mais teimoso, desisti; por vezes, querido
irmão, devo confessar que é penoso continuar a
resistir, a escrever, a escrever apenas pela
necessidade de o fazer; era bom o descanso,
adentrar nessa inconsciente vacuidade dos já
decessos, doce e negra, sem sonhos mas sem
cuidados; não medir o verbo porque partir para o
radical esquecimento é olvidar toda a angústia
identitária que é a vera cifra do penar autoral;
ser uno com o nada que nos espera a todos no
final do nosso tempo só pode constituir um bem
para quem já muito penou e sofreu, para quem
deixa sem mágoa os bens terrenos em prol de uma
possível glória nos mundos invisíveis; só longe
deste plano terrestre que reserva tanto
sofrimento para quem nele habita se pode dizer
que o tempo da obra começou; e sempre, para mim,
muito mais importante foi a sorte ou infortúnio
do meu registo escrito, cujo fito é nada menos
do que sondar o indizível todo do cosmo; é
justamente a gravidade da minha tarefa que
sempre me pesou, que me fez percorrer a vida -
enquanto a tive - recurvado sob o jugo do seu
peso. Mas como lograr essa libertação, eu que
dediquei os meus anos, as minhas preocupações
constantes à tarefa magna de saber o que de mais
profundo se acoita e esconde nos contrafortes da
existência?
O lar do sentido, o
sucesso de tão peculiar certeza: não sou.
Deví quase imaterial por decesso, abdiquei,
por força, de meus domínios, expurgado de
fazenda e de corpo, mesmo de voz e de rosto.
Persisto, contudo, em puro verbo de me dizer
assim perdido. Ainda há consciência e isso,
pesadelo cartesiano pois ainda não alcancei o
meu próprio olvido, vastidão do negrume que é de
um descanso e tão dulcíssimo, faz arrastar o
tempo por não sei quantas eternidades só
percebidas no caleidoscópio de tanta mudança
vista e não vivida porquanto não passível de uma
intervenção directa e corpórea, já que, como te
digo, a carne se desfaz a olhos vistos. Puro
observador e mesmo atento de tudo quanto há no
século, tão demente e carecido de justa medida
mas por tal excesso que serei todo nostalgia de
não ser vivente e actuante nele. Que fazer? É
sina do meu destino, penar em alma e corpo gasto
por este mundo. Por vezes, tanto atroz cortejo
de horrores fará dar graças ao que me exime de
colaborar nessa desdita; por outro lado, o
prazer dos prazeres do que é vida, encontra em
mim tanta saudade: o olor perfumado da manhã
d’Estio, o entardecer plácido quando a
comunidade antevê o repasto, e a festa que se
estende por vasta noite, variegada de luzes como
espéculo das estrelas. Não estar, que é um
correlato de não-ser, dói e magoa, assim
ainda o grito que se estanca de impossível, não
havendo sequer já cordas vocais que pudesse
tanger… Fui de quase suicidário desdém pela
vida, então os dias, hoje memória, eram densos
de opressiva errância (agora peno por ser de
quase etéreo corpo). Desperdiçada e fútil
sobrevivência, talvez, como é todo o existir
desatento de si, das ocupações quotidianas que,
sem horizonte, se esgotam a cada momento. Não
fui rico nem pobre nem tive o doce ósculo da
Fortuna; da fria crueldade dos homens sofri,
contudo, abundante contacto, assim como das
dificuldades próprias de quanto vivente que de
sensível e bondosa catadura se condói da maldade
que livre e irrepresa grassa ligeira e alada…
Por desatinada ventura foi tal que te não
espante o ânimo suicidário com que vivi os meus
derradeiros dias. De angústia e tormento foram
seguramente e, ao fim, dei graças à precária
matéria que nos constitui, emergente mortalidade
acessível a todos. Certamente, devo confessar
que, a princípio, nem sequer percebi o meu
decesso, apenas a diferença marcante de um
acentuado diminuir da ansiedade que afinal é
conatural ao estar vivo: passando para o outro
lado, não teremos já nada a perder… Nem sequer a
notícia chegou a quem comigo privava. Já seriam
os mortos os meu conhecidos, uma comunidade
feita de óbitos, fantásticos fantasmas ou,
então, tal a força de um hábito que dissolvia o
limite; os mesmos lugares lúgubres de
não-esperança, as mesmas conversas de
circunstância, a rotina imensa do não-ser, do
esquecimento de ser, com próprio alor e força, a
pujança de um primevo hausto. Assim também
atribuo o facto da indistinção do meu
perecimento com a antiga vida. Tudo se equivale
e desse modo nem morrer é partir. Só a
circunstância etérea diverge. Uma
incorporização acentuada, um já não tocar
das coisas, mesmo que tal não acontecesse antes
por alienação da própria vontade e desejo.
Houve um tempo em que
nada era assim. Sucedeu-se uma biografia tão
cheia e plena como outra qualquer e isso
emprestava o lastro suficiente para me prender à
realidade. Não sei quando isso deixou de
ocorrer. Não houve um facto que marcasse a
fronteira ou, como verás, houve vários momentos
em que, passando o limiar, já não me encontrava
entre os vivos. Tão-só o progressivo diluir do
sentimento em coisa nenhuma, a conformação com
as potências do mesmo que, à espreita da sua
oportunidade, souberam imiscuir-se e depois
dominar a minha sina… E, como era bom sentir-me
uno com o real, pertença do mundo e da
sociedade, movido pelas coisas que movem as
gentes, ainda que banais e chãs. Não, eu ainda
não sou em completa dissolução. Por certo, uma
voz ainda que inaudível, uma consciência ainda
que evanescente, talvez que se vá sumindo até à
vera morte, talvez que não haja estágio final
permanecendo geometricamente em anulação
progressiva sem jamais chegar ao nada do próprio
olvido.
Adivinho já a tua cara
de espanto: Então, após o teu decesso não só
não me disseste que eras morto como continuaste
a corresponder-te comigo como se nada fosse?
Compreendo a tua incredulidade mas, em bom
rigor, tantas coisas tinha para te dizer que me
esqueci de mencionar esse facto que, apesar de
tudo, sei capital na minha biografia.
Como faleci? Pois, acho
que foi porque me mataram. Era um dia estranho
cujo negro céu, úbere de chuva e da promessa de
tempestade, foi testemunha indiferente da minha
alegria e terror.
Pela alba, recebi a
notícia de que o meu
editor tinha, finalmente, concordado em
publicar o meu estudo que tantos anos e
cansaços, preocupação e suor me custaram até o
concluir.
Como te disse, foi sob
uma atmosfera opressiva que tão cedo parti em
direcção à editora. Queria ouvir de viva voz a
grande nova assim como, desde logo, acertar
certos aspectos práticos da publicação. Não
estranhes a minha ansiedade. Trabalhei com todo
o afinco, mesmo sabendo que poucas hipóteses
teria de ver impresso o resultado das minhas
investigações. Quem quereria ler o relato, quase
policiário, dos meus estudos angelográficos?
Tu, que acompanhaste
pari passu o meu projecto, bem sabes que
afinal há um interesse quase encantatório no meu
escrito.
Partindo de uma
hermenêutica bastante tradicional – os quatro
sentidos possíveis de análise de um texto
esotérico – e pacientemente cotejando quer os
tomos canónicos quer aqueles mais obscuros que,
aliás, muitos dizem ou insinuam serem apócrifos,
encontrei, a pouco e pouco, certas e poderosas
evidências de que os anjos, esses misteriosos
mensageiros da Palavra, há muito que se
encontravam entre nós – vivendo vidas vulgares
para melhor se movimentarem na sombra da nossa
comum percepção. Tinham por missão reportar à
Divina Potestade as angústias e atribulações das
humildes gentes, ao mesmo tempo que, com a
subtileza que lhes é própria, iam aferindo da
qualidade e força da fé pois – outra dedução
surpreendente – é facto que sem criatura não há
Criador e se os homens deixassem de prestar o
devido culto ao Demiurgo, o que seria Dele?
Recairia, decerto, na indistinta e nebulosa
penumbra de um motor imoto, um mero princípio
teórico, obscuro e arcaico iniciador das coisas
sem a elas, em rigor, pertencer, eximido da
série causal e histórica da humanidade,
entretida em tomar em mãos a condução do seu
próprio destino!
Eis, portanto, a
questão: nada há neste vasto mundo que se não
encontre interligado em dependência mútua e numa
hierarquia que não é linear. Ora, os anjos,
estando como que a meio termo entre Deus e os
homens são, porventura, a chave, a cifra secreta
que permitirá desfiar o novelo de uma verdade
possível que, desde sempre, iludiu os mais
argutos investigadores. Com a minha consabida
humildade sou a confessar-te que talvez eu
estivesse a aproximar-me dessa evidência e
pergunto-me se não terá sido por isso que me
mataram... Mas, estou a adiantar-me à história.
Pois bem, nessa lúgubre manhã parti, em alvoroço
em direcção à editora que, desafortunadamente,
se localizava na outra ponta desta minha cidade.
Facto bizarro: encontrei muito poucas pessoas na
rua o que não é comum pois, além de ser
Quinta-Feira, tal como uma vasta e populosa
colmeia, em todas as horas, zumbe de frenética,
incansável, actividade. Por outro lado, debaixo
daquele céu, não achei surpreendente assim com,
devido ao desassossego mental que a notícia me
causara, considerei ser quase natural não
reconhecer as ruas por onde avançava. Esclareço:
conhecendo bem a topografia desta grande urbe
devia, em retrospectiva, ter suspeitado de algo
pois a geografia a que estava habituado tinha-se
emaranhado e confundido. Certos monumentos não
estavam onde deviam estar e algumas estátuas
pareciam olhar-me com um sorriso perverso e
jocoso, como testemunhas de pedra mas sencientes
de um drama que se iria representar em minha
honra e onde eu seria o protagonista e, em vez
de detective, a vítima. Enfim, o que te quero
dizer, era que todo o ambiente aparentava aquela
sensação angustiante dos pesadelos onde o menos
usual, por virtude da incrível transformação
onírica, nos parece comum e evidente.
Pergunto-me se nesse dia já estaria morto e se
os acontecimentos funestos dessa manhã não
seriam um eco do meu verdadeiro decesso, uma
circunstância cujo propósito fosse, tão-só,
lembrar-me de que eu já não era. Não o sei, a
suspeita permanece e adiante explicar-te-ei o
porquê desta dúvida. Por agora, caríssimo, basta
dizer-te que avancei pela névoa desse sonho,
determinado a chegar aonde queria. De qualquer
modo, quando se experimenta uma grande emoção é
conhecido o fenómeno que determina que por
virtude do nosso ânimo as coisas se
metamorfoseiem. Apesar de tudo, o meu livro ia
ser publicado!
Enquanto assim pensava,
notei que estava a ser seguido. Não conseguia
ver os perseguidores, apenas ouvia um rumor em
surdina, por vezes, o murmúrio de vozes atrás de
mim, não muito perto, só o suficiente para
perceber que algo de grave e perigoso se estava
a passar naquelas ruas desertas. Comecei a ficar
assustado, estugando o passo, virando de repente
numa esquina ou parando de súbito para melhor
poder escutar. Quando parecia a salvo e podia
respirar fundo e seguir o meu caminho eis que
recomeçava a caça e eu, como acuada lebre,
tornava ao meu percurso cada vez mais errático.
Corria até ficar sem fôlego, desviava por vielas
escuras ou andava pelo meio das avenidas na
esperança de encontrar algum conhecido que me
salvasse. Todas as tentativas foram inúteis. O
pior é que no meu pânico fui adentrando numa
parte da cidade que mesmo em circunstâncias
normais é um dédalo de que só os verdadeiros
conhecedores dos seus meandros sabem como sair.
Assim, juntei à
transfiguração da ansiedade a transfiguração do
medo, depois a vertigem do terror e depois,
ainda e por fim, sobreveio a fria calma do
desespero, a absoluta serenidade de quem sabe
que tudo está perdido. De que adiantava
inconformar-me com o ancestral destino da presa
na caçada? Quanto mais acelerava em minha doida
corrida mais pareciam aproximar-se, predadores
implacáveis a um tempo rumorejantes e
silenciosos, cortando as rotas de fuga com a
sistemática exactidão da fera que aguça o dente,
escancara as fauces e sente já o cálido sangue
da pobre vítima. Seriam Legião a corja dos meus
perseguidores, aprazados algozes que jamais me
deixariam escapar.
Apesar de, como te
disse, pouca importância dar à própria vida tive
a fatal consciência de que não veria publicada a
minha obra, o que me encheu de um pesar tão
fundo e pungente que o rio das lágrimas correu
abundante queimando como ácido o meu rosto,
queimando como ácido a minha alma.
Então é assim, quando
finalmente estou tão próximo do culminar de toda
a minha vida vou perecer nestas ruas sujas, às
mãos de assassinos sem face e sem nome, tão
anónimos quanto eu? Porque é tão cruel o
Destino? Não lhe chegam as catástrofes,
sofrimentos e dissabores que continuamente,
desde o princípio do tempo, fustigaram sem
cessar esta cansada humanidade?
Não obtive, como
calculas, qualquer resposta.
Somente se apertava o
cerco. Estava eminente o meu fim.
Ao entrar num beco
particularmente feio, degradado, em ambos os
lados emoldurado por casebres em ruínas cujas
janelas pareciam as órbitas vazias de um ricto
cadavérico, vi aquelas figuras pardas que me
esperavam para consumarem a minha morte. Estavam
à minha frente mas alguns tinham coberto a
retaguarda prendendo-me na tenaz hipnótica do
desespero. Com uma lentidão ritual avançavam de
modo imperceptível, vultos de sombra na penumbra
o que lhes multiplicava o número e aumentava o
carácter tão prosaico quanto fantástico do seu
homicida comportamento. Tentei interpelá-los.
Disse-lhes que nada tinha para roubar se tal
fosse o seu intento. Pedi que me poupassem a
vida, roguei-lhes pragas e vis promessas de
servidão. Perguntei-lhes porquê? Só obtive o seu
obstinado silêncio ou, talvez, risos? Não sei,
na confusão dos últimos momentos tudo se
confunde enquanto uma aguda lucidez nos faz
recordar todos os momentos mais importantes da
vida que, em jeito de despedida, nos parece mais
doce e nostálgica. O tempo dilata-se mergulhando
o morituro num sonho desperto onde cabe
toda uma vida, os mais ínfimos pormenores que
juntos compõem a singularidade de uma biografia.
Depois senti frio. Seriam as lâminas que
penetravam na carne? Seria que me bateram até à
morte, ou um único e solitário tiro foi
suficiente para me liquidar? Jamais saberei.
Senti um torpor muito maior do que o induzido
pelo soporífero mais potente, um abandono que
transcendeu qualquer sono químico. De tal modo
que também desconheço qual o lapso que fiquei
sem saber de mim. Acordei com o fantasma de uma
dor aguda no abdómen mas em aparência incólume
na minha própria cama! Percebi, no entanto, que
algo estava errado, que qualquer coisa de
irreversível e capital tinha acontecido.
Borges, inspirando-se em
Swedenborg, insinua que cada homem constrói o
seu céu e o seu inferno. Eu, inspirando-me em
Borges, pergunto-me se o não fiz. Talvez nesse
dia fatídico já estivesse morto e como não me
lembro das circunstâncias exactas do meu decesso
continuei a imaginar um quotidiano de sereno
pesadelo, assim como o sonhador pensa que
permanece na vigília e por isso aceita toda a
sorte de fantásticas, impossíveis, situações com
uma normalidade só encontrada no plano onírico.
É que para além da
horrível perseguição lembro-me também de uma luz
muito intensa que eram faróis de um automóvel em
célere-assassina urgência em minha direcção. Não
sei como conseguiu travar mas, no último
momento, estancou e milímetros do meu corpo.
Será, no entanto, que conseguiu parar a tempo?
Será que a minha memória é fiel? Por vezes sinto
uma dor intensa no sítio que julgo me atingiria,
como se tivesse fatalmente embatido. É uma dor
bastante diáfana, a bem-dizer, uma dor quase
imaginária em tudo semelhante à dor de um
amputado que assim comemora o seu membro
perdido. Ou melhor, visto noutra, perspectiva
uma dor que um fantasma poderia sentir.
Uns dias (ou anos?) após
este incidente cruzei-me com uma mulher muito
alta que, ao longe, parecia bela. O rosto,
afinal, era medonho, sem idade ou ternura. Um
sorriso cúmplice e perverso, um olhar... Não,
nem me quero lembrar do olhar. Andei, apressado,
uns passos mas quando me virei já lá não estava.
Onde poderia ter entrado? Era uma rua deserta e
ampla a desoras da noite, todas as portas
estavam cerradas.
De qualquer modo, quer
tenha sucumbido ao veículo desgovernado, à turba
demoníaca ou me tenha cruzado com essa Senhora
da Gadanha que tem o psicopômpico
propósito de nos levar para o outro mundo, senti
nos ossos que algo não estava certo. O
quotidiano parecia cada vez mais sujo, como se o
próprio cosmo, insensivelmente, se degradasse.
As gentes mais boçais, e tristes. A urbe mais
escura, e melancólica. Estes livros que tão bem
conheço amareleceram quando os julgava ainda
novos. Mais grave: quando os folheio não raro é
estarem incompletos, cheios de gralhas, alguns
até desafiam o sentido quando sei que os seus
autores primam pela claridade da sua escrita.
Uma atmosfera
opressiva... E depois, quem vejo na rua, de
semblante ausente, com bizarros atavios, não
deste tempo (não saberia dizer de qual, no
entanto), roupas tão cinzentas quanto a tez. Não
reconheço ninguém. Não são, por outro lado,
totalmente estranhos, há algo de familiar ainda
que como tudo o mais nesta realidade crepuscular
não consiga situar e dizer tu és fulano,
encontrei-te há dois anos... ou brinquei
contigo na escola, o que foi feito de ti?
Nenhum transeunte fala, mesmo que em grupo,
olham para o chão. Quem levanta a cabeça e me
encara é com olhos de inenarrável perfídia ou
loucura ou, ainda, varando-me no
para-além-de-minha-presença.
E gatos, muitos.
Esquálidos. Ágeis e furtivos.
Ah, e esta letargia
também me não parece natural. É claro que se não
parece com os vulgares estados de alma que
comummente afligem os depressivos. É um langor
suave, uma vontade de permanecer e parece que,
de cada vez, se passam muitas horas ou dias (ou
anos?) antes que levante um dedo. Não, não tenho
fome, nem sede, nem sequer vontade de querer
comer ou de me dessedentar, apenas a nostalgia
de quando queria. Não sinto tristeza mas uma
imensa e doce e suave melancolia. Vejo os rostos
que não envelhecem passarem por mim sem me
verem. Pressinto essa figura alta. Essa que olha
para mim e eu a não vejo. Aí está, talvez, o seu
reflexo na dobra de um tomo, no papel que se
rasga ou se transforma em pó ao mais leve toque.
O pó. O pó parece que poisa sobre tudo. Nas
vestes, no chão, sobre os móveis que, aos
poucos, vão parecendo mais frágeis, toscos e
grosseiros. Sempre me orgulhei do meu gosto.
Nunca fui rico e por isso adquiri pouca mobília.
Contudo, preferi os objectos sóbrios e
elegantes. Como pude apenas deter estas ruínas?
Eu que sempre cuidei do que é meu, como deixei
acumular tanto pó? Será que é isto, estar morto?
Conviver com um purulento destino para, no fim,
me afogar num mar de pó. Até o meu corpo se foi
transformando em ritmo acelerado. Mais seco de
carnes, com as articulações mais rígidas. É
assim que me decomponho e assisto à desagregação
de mim próprio, sem dor, é certo, a não ser pelo
sofrimento de experimentar tanta indiferença
pela decadência, a própria e a de tudo o que me
rodeia. Como se as cores fossem mais baças, o
brilho do Sol menos ofuscante, neblina perene,
humidade omnipresente e pura, máquina infinita
de bolores e mofos e verdetes e de toda a
recomposição da matéria numa forma decaída,
degradada de si mesma, oh, como inferno assaz
platónico onde é a própria ideia que fenece.
Tudo isto são indícios
que me levam a especular... a imaginar se
estando morto não fui eu que divisei este limbo.
Como um sonho. Criei a minha própria expiação,
fechei-me no Érebo daquilo que mais abominava
porque não cumpri o objectivo final da minha
vida ou porque o cumpri demasiado. Explico:
vivendo na intensidade do espírito o meu medo
sempre foi que se embaciasse a claridade hialina
do pensamento. Toda esta degradação vital que
sobre mim se abateu corresponde a um adensar
daquilo que aterroriza qualquer intelectual
desde que o mundo é mundo. A saber, que essa
ordem que com afinco se procura não passa de uma
arbitrária configuração, sem uma razão universal
que a sustente. É o que eu chamo de Inferno
cartesiano, o único em que eu poderia habitar,
pois se existo porque penso o meu próprio
pensamento escapa ao redil da vontade e cria mil
angústias como um arquitecto enlouquecido que
desenha um labirinto irracional ao sabor de um
capricho inconsciente onde vai, depois, habitar
e perder-se até ao fim da eternidade.
Quanto tempo mais sem
ter resposta?
Foi com grande espanto
então que esta terrível monotonia de ser
perecido assim como o horror de me ver
lentamente tragado pelos vermes se quebrou
quando recebi a tua carta.
Foi o sinal de que um
mundo exterior a mim e ao meu delírio continuava
a existir e ao qual eu podia ter acesso. E
ressurgiu a esperança que através da nossa troca
epistolar pudesse, enfim, acabar a missão que me
foi destinada, a saber, levar a bom-porto a
minha obra e com isso conquistar a minha paz e
depois, sereno, partir para esse Além da
insciência e do olvido.
Nem tudo é mau, contudo.
Sinto uma singular libertação. Em meio à névoa,
sei que posso ser eu como nunca antes tinha
sido. Como nunca antes tive a coragem de ser.
Compreende: a liberdade, neste limbo, é uma
coisa nova. Antes (enquanto era vivo?) tinha
medo de tantas coisas, um pudor opressivo
dominava a acção, limitava o voo da imaginação,
era um tecto baixo para a minha ambição. No
adumbramento perene que é, hoje, um horizonte
quotidiano nada tenho, nada sinto que me limite
ou embarace. Vejamos: nada esperar permite o
risco pleno. Nada querer permite a
experimentação, mesmo, a transgressão. Quando se
não evita já o perigo pode-se incorrer até na
impiedade que é tentar aquelas coisas que a
prudência aconselha a evitar. Assim, sinto uma
força no meu espírito que é uma novidade salutar
ainda que não tenha, ainda, produzido
resultados. Entenda-se, isto apenas é uma
sensação fugaz, e tudo o que produzo é de
natureza ficta. Fico sentado à soleira da minha
porta (o que é também um pouco incoerente pois
julgava viver num alto e moderno edifício;
afinal encontro-me numa casa baixa, já bastante
degradada...) e construo uma obra imaginada.
Rica, luxuriante, complexa. É evidente que ainda
a não cumpri. Imaginar parece ser ocupação
suficiente, realiza-me e é o que basta.
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