Estávamos em 1982. Fôramos apresentados por
Francisco Lyon de Castro anos antes. Lyon de
Castro, editor do Professor Sacarrão na
Europa-América, era administrador da Salvat em
Lisboa, pois quando a empresa se constituiu em
1971, a lei exigia a participação maioritária de
capital nacional. Eram muito diferentes –
Sacarrão, alegre, franco, malicioso, generoso;
Lyon de Castro, pese embora uma inegável
perspicácia e uma invulgar audácia como homem da
edição, tinha o que se costuma chamar um «mau
feitio». Eram amigos, apesar disso. Quando
Sacarrão ia a Mem Martins, jogavam animadas
partidas de pingue-pongue que, perante o
desespero de Castro, Sacarrão quase sempre
vencia - «tiveste sorte», era o comentário
invariável do editor.
A amizade foi instantânea. O tema de uma das
nossas primeiras conversas no restaurante «O
Polícia» foi a circunstância de sermos indígenas
da mesma aldeia – eu nascera na rua dos
Douradores e ele em Santa Quitéria, mas cedo
mudou para a rua dos Fanqueiros. «Ruas feias»
disse. Concordei e contra-ataquei - «Mas,
Professor, que ruas ou avenidas têm uma história
como a da nossa aldeia? A rua dos Douradores ou
do Desassossego, tem vizinhos como Bernardo
Soares que disse: «Se eu tivesse o mundo na mão,
trocava-o, estou certo, por um bilhete para a
Rua dos Douradores»; ou como Antero de Quental
que ali viveu num quarto andar do nº 135; noutro
quarto andar, mas do número 20, Alfredo Costa,
um dos regicidas tinha o escritório; Aquilino
Ribeiro por ali andou e João de Deus também –
não consegui apurar em que números e andares –
antes de todos eles, ali viveu o Senhor Manuel
Joaquim Botelho Castelo Branco, pai de um tal
Camilo Castelo Branco que nasceria para os lados
do Carmo. Na rua dos Douradores, situou Eça o
escritório de Godofredo da Conceição Alves, o
traído e conformado protagonista de Alves &
Cª. O carbonário
António Maria da Silva, líder de executivos da I
República, quase fora surpreendido pela
polícia presidindo à cerimónia de catorze
iniciações maçónicas no seu
escritório junto à esquina com a Rua de Santa
Justa. No escadório da Igreja de São
Nicolau, situa Gervásio Lobato a hilariante cena
do casamento da sua Lisboa em Camisa. No
cruzamento da Rua dos Fanqueiros com a de São
Nicolau, a poucos metros da esquina com a Rua
dos Douradores, ficava o posto do Vale do Rio
onde certo correspondente comercial de um
escritório da Rua dos Fanqueiros foi apanhado em
flagrante delitro…Não recordo os termos
exactos em que defendi os pergaminhos dos locais
que com vinte e poucos anos de diferença foram o
nosso universo, mas o sentido foi este. Ele
disse não ter ideia de que ruas tão feias
tivessem tanta história.…
Recordar nomes e locais foi tema da nossa
primeira conversa.
Num dia de 1982, estávamos, o Professor e eu,
nas instalações em Lisboa da empresa catalã cujo
sector editorial eu coordenava e trabalhávamos
na versão portuguesa de uma enciclopédia
didáctica. Feita a tradução e introduzidos
textos que procuravam adequar os conteúdos ao
nosso sistema de Ensino, por aqueles anos com
modificações frequentes – o Professor corrigia
erros do original ou da tradução. Tinha uma
opinião desfavorável sobre a utilidade da obra.
Mas diga-se que foi um êxito de vendas.
Reuníamos uma manhã por semana. Naquele dia,
como era hábito, terminado o trabalho, fomos
almoçar ao «Polícia». O Professor notara durante
a manhã que eu estava preocupado e insistiu em
que lhe confiasse o motivo. Muito instado,
contei. Após Abril
de 74, era “reacionário” pagar impostos. Agora,
fora ameaçado com penhora de bens – a dívida ao
Fisco rondava os dez contos, mas com a coima
ultrapassava a centena – muito dinheiro na
altura. À tarde telefonou-me: - «Carlos,
resolvo-lhe o problema - talvez não possa
emprestar tudo …». Emocionado, quase não
consegui responder.
Recusei, e agradeci com palavras de
circunstância.
Recordo o rigor com que abordava as questões
científicas. Irritava-o as metáforas que
atribuíam qualidades ou defeitos humanos aos
animais. Uma vez, lembrei-lhe a reflexão de
Fernando Pessoa de quem eramos devotos leitores,
segundo a qual o homem tem de aprender tudo,
enquanto os animais «sabem o que precisam
saber». Tomou nota. Costumava dizer: «As
galinhas não são estúpidas; têm a inteligência
de que necessitam para sobreviver». Como diz
Maria Estela Guedes numa excelente biografia,
preocupava-se com o facto de o discurso
biológico transportar conceitos da esfera
zoológica para a antropológica e vice-versa.
Abusivo e acientífico, na sua opinião.
Sacarrão não perdia nunca a oportunidade de
temperar o discurso com uma nota de ironia. Com
as suas reflexões, poder-se-ia escrever um
«ensaio sobre a surdez».
Sou um pouco surdo. Recomendou-me: «Não compre o
maldito aparelho! Nunca tive problemas por ser
surdo – todos os meus problemas, tive-os por
ouvir bem demais». Morava em Campo de Ourique.
No café «A Tentadora», na Ferreira Borges, uma
manhã encontrou dois surdos famosos: António
José Saraiva, um morador, e Óscar Lopes, na
altura, presidente da Associação Portuguesa de
Escritores que, quando vinha a Lisboa, ficava em
casa do amigo. Saraiva abandonara o PCP em 1962,
enquanto Óscar Lopes, naquela altura membro do
comité central, foi militante até morrer. As
amistosas discussões de natureza ideológica eram
prolongadas e ricas em finos argumentos vindos
de ambos os lados, mas nunca chegando a acordo –
Sacarrão que os escutava, comentava -
«literalmente um diálogo de surdos». Contava
também como por vezes ao chegar a casa o ruído
se lhe tornava doloroso – D. Maria Manuela, a
esposa, escutando música na sala, a criada a
contas com a telenovela na cozinha, o neto com o
seu heavy metal no quarto… - o
inferno! Tirava o aparelho e entrava numa ilha
de silêncio cercada pelo oceano das suas
cogitações. O paraíso, sintetizava. Adorava o
neto – dizia: «Os netos são o melhor que nos
acontece. O meu neto ensina-me imenso e ajuda-me
a compreender o que vai acontecendo – obriga-me
a fazer uma reciclagem».
O seu ateísmo convicto criticava sobretudo o
carácter conformista e castrador do catolicismo.
Não sei se o axioma «tudo o que é agradável ou é
imoral ou faz mal à saúde» que muitas vezes lhe
ouvi, era criação sua. O elogio da
autorrepressão e da pobreza irritavam-no.
Explicava a riqueza dos norte-americanos e a
pobreza dos centro e sul-americanos, pelas
matrizes coloniais de uns e outros. No Norte,
onde prevalecera a Reforma, a religião impunha
que era condenável um homem não prover as
necessidades da sua família. No Sul, colonizado
por católicos, a pobreza constituía virtude -
«dos pobres será o reino dos céus».
Não sendo de militâncias partidárias e evitando
envolvimentos políticos, tinha convicções
profundas. Um dia, absorto ante um quadro, numa
exposição de pintura na Galeria 111, do Campo
Grande, ouviu um tropel de passos e um rumor de
sussurros que se aproximava. Uma voz conhecida
disse: - «Olha, o meu querido professor!»
Voltou-se. Diante dele,
estava o presidente da República, Mário Soares.
Na verdade, Germano Sacarrão fora professor de
Mário Soares no Colégio Moderno. Por questões
políticas, quando veio da Suíça, onde, após a
licenciatura e com bolsas do Instituto de Alta
Cultura, estagiou entre 1938 e 1943, não lhe foi
dada colocação no ensino oficial – nem na
Universidade, nem sequer no Secundário.
Generosamente, João Soares deu-lhe guarida no
seu Colégio Moderno. Sacarrão nunca esqueceu
esse gesto solidário. Agora, a comitiva do
presidente ali estava, respeitosa e sorridente,
esperando a sua reacção. Soares abraçou-o e
repetiu: - O meu querido professor! – Então,
Sacarrão, voltando-se para a comitiva,
esclareceu: - «De Física! Professor de Física!»
– E, perante os sorrisos, correspondeu ao abraço
do seu antigo aluno: - «Muito esperto e
inteligente, mas um cábula», dizia Sacarrão, que
mantinha uma grande estima por Soares, embora
não apreciasse a sua prática política.
Em Outubro de 1992, o Professor telefonou
propondo um almoço. Mas eu estava de saída para
Barcelona de onde seguiria para Paris e fiquei
de lhe ligar quando voltasse. Fez um comentário
- «Pois é, o Carlos agora anda pelas galáxias…».
– aludia à aquisição da Salvat pelo tentacular
grupo de Jean-Luc
Lagardère o empresário francês, fundador de um
dos maiores conglomerados empresariais europeus,
com intervenção em áreas como a aviação –
Airbus, caças Mirage, tecnologia aeroespacial e
equipamentos de defesa, a Matra (famosa pela
Fórmula 1), até à área editorial, a Hachette
entre outras. Em 1988 a Hachette absorvera a
Salvat e em 1992 houve grandes transformações –
articulando a editora catalã com a TV Guide
Francesa, a Elle, o canal Tele 7 Jours…
Todo o sector dos media passava a estar
coordenado em conjunto e eu e o meu colega Luís
Rocha, o homem responsável pelo sector
administrativo em Portugal, íamos ser
inteirados dessas transformações. E
quando regressei dias depois, deram-me a
notícia. O Professor morrera. Não descrevo a
tristeza que me tomou. É indizível. Sem as suas
frases de uma ironia inteligente, os seus
axiomas, o mundo nunca mais seria o mesmo. Nunca
esquecerei a sua generosa oferta de me emprestar
dinheiro para regularizar a situação fiscal e
que transformou a grande admiração e respeito
numa grande amizade.
Quando lhe contei, como quando o papa veio a
Portugal em 1982, fiz um requerimento e fui
amnistiado – só pagando os impostos em dívida.
Comentou - «ora aí está um milagre».
Quando na mais elevada magistratura da Nação o
desprezo pela cultura é exibido com arrogante
orgulho, percebe-se que pessoas como o Professor
Sacarrão apenas sejam conhecidos pela comunidade
científica. Não só atingiu uma incomum dimensão
intelectual, como criou um escol de discípulos
brilhantes que honram a Universidade, alguns dos
quais tive o privilégio de conhecer, tais como
os Professores Doutores Carlos Almaça, com o
qual preparei «A Fauna», de Félix Rodriguez de
la Fuente, com Luís Saldanha, que fez a revisão
científica de uma obra de Jacques-Yves Cousteau,
Vítor Almada, meu vizinho num bairro da Parede…
a minha grande amiga Clara Queiroz, pessoas
desta casa, Professores cuja elevada craveira
científica constitui a implícita confirmação de
que Germano Sacarrão atingiu uma dimensão que
justificaria alguma gratidão por parte dos seus
compatriotas. Nada tenho contra o facto de
Amália e Eusébio estarem no Panteão Nacional.
Não defendo sequer a ideia de Germano Sacarrão
lhes ir fazer companhia (o que ele se riria de
tal hipótese). Mas é chocante que um homem como
ele esteja votado ao esquecimento. Um homem de
cuja estatura científica outros certamente aqui
se terão ocupado Eu só quis lembrar o universo
fraterno que existia naquele coração que
subitamente parou numa rua de Campo de Ourique
na manhã de 22 de Outubro de 1992.
O grande coração do meu amigo Germano Sacarrão.
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