O recente falecimento de
Ana Hatherly (Lisboa, 5-Ag-2015), com 86 anos,
compeliu-me a pegar por fim num conjunto de
papéis desde 1993 em meu poder. Considerei-os
desde logo significativos e valiosos mas deixei
o seu teor, em boa avaliação, sempre para mais
tarde. Provinham da «pintora da palavra» (assim
Ana apareceu rotulada na imprensa), e
chegaram-me às mãos integrados no espólio geral
de António de Cértima de que fui e ainda vou
sendo, agora parcialmente, fiel depositário.
Notoriamente, Cértima
guardou aqueles papéis assim como os primeiros
livros que Ana começou a publicar em 1958. Na
colecção falta, porém,
A Dama e o
Cavaleiro, de 1960, desaparecido talvez
devido a algum empréstimo sem retorno. Com igual
cuidado, Cértima juntou os papéis que refiro:
poemas (dactilografados e manuscritos) e outros
originais literários entre algumas cartas que
Ana lhe dirigiu e… surpresa!, também composições
infantis de autoria da filha de Ana, Catherine.
O facto de os papéis se
encontrarem reunidos parece provir de um acto de
selecção operado por Cértima, pessoa cuidadosa
com a sua imagem; se foi conveniente, acaso
poderia ter descartado do conjunto o que nele
destoasse?
Creio que as relações
estabelecidas pelos dois escritores constituem
um interessante caso de estudo capaz de lançar
luz especialmente sobre o período juvenil de
Ana, pessoa de poucas amizades e feitio bastante
reservado. Na verdade, o que se conhece da
autora, prestigiada figura pública, é sumário.
Evoca somente os pontos principais do seu
percurso: a música, a licenciatura, o
doutoramento em Berkeley, E. U., a investigação
do barroco, enfim, o perfil académico, a poesia
experimental, a pintura, o cinema, a literatura
e pouco mais. Realmente, não é fácil abarcar a
multifacetada vida e obra que realizou.
Ana [Maria] Hatherly
nasceu no Porto em 8-05-1929 e António de
Cértima em 27-07-1894, portanto, uns 35 anos
antes. Natural de Oliveira do Bairro (Giesta,
Oiã), Cértima frequentou o ambiente intelectual
do Porto, onde teria parentes, porventura os
futuros pais de Ana. Certo é que, para Ana, ele
era o «tio».
Depois de participar
na guerra 1914-18 em Moçambique, de se mudar
para Lisboa em 1922, publicar
Epopeia
Maldita e de ingressar na carreira
diplomática apoiando Gomes da Costa, Salazar e
Franco, Cértima largou o «seu» consulado em
Sevilha após o fim da segunda grande guerra e em
1948, com cerca de 54 anos de idade (tinha Ana
19 anos), regressou a Lisboa para se casar e
poder dedicar-se finalmente à criação literária.
O início dos
contactos de Ana com o tio, escritor notado,
terá coincidido com a decisão de optar pela
literatura abandonando os estudos de música em
Lisboa, Paris e Hagen, Alemanha, por motivos de
saúde. Desistiu do canto lírico e encetou o
percurso literário no «Movimento 57», jornal
(com elementos ligados ao grupo da «filosofia
portuguesa») dirigido por António Quadros. Os
seus primeiros livros de poemas –
Um Ritmo Perdido, de 1958, e os seguintes – estavam na biblioteca de
Cértima com autógrafos da autora. É provável que
o tio tenha encorajado e apoiado a publicação do
livrinho antológico
Caminhos
da Moderna Poesia Portuguesa, saído na
colecção Educativa da Direcção-Geral do Ensino
Primário (abre com citação de Salazar; a autora
expurgou-o da sua bibliografia). Na oferta,
escreveu: «Para o António e para a Minda, este
inocente livrinho cheio de amor pela Poesia e
pelo nosso Povo. Ana Hatherly, Dez. 1960.»
De facto, Cértima
casou-se em Lisboa com Maria Arminda, da família
Lacerda, lisboeta com raízes no Caramulo, onde
por sinal Cértima acabou por morrer, com 89
anos, em 20-10-1983, deixando inéditos vários
livros.
Nas suas estantes
encontrei também
O Mestre
(col. Autores Portugueses, Arcádia, Julho,
1963), ficção de Ana com muito simbolismo onde
uma Discípula questiona o seu Mestre a detectar
incoerências. Todavia, este exemplar aparece
limpo de autógrafo, o que sugere que a autora,
desta vez, não lho ofereceu e que o tio,
querendo-o apreciar, o comprou.
Aparentemente, Ana terá
iniciado a carreira literária em ligação com o
tio, com ele partilhando poesia, catolicismo e
alguma aceitação do regime da ditadura. Um
retrato de Catherine, feito em Lisboa, tem no
reverso uma nota de sua mãe: «Catherine aos 9
anos». Em que data terá nascido? De qualquer
modo, a menina desenvolvia um talento digno da
progenitora: rabiscava contos, peças de teatro e
cartas que o tio guardou, a exemplo de folha com
texto sobre Camões, datada (28-07-1960) e
anotada pelo tio: «Noite do jantar de homenagem
ao contista João de Araújo Correia».
Possivelmente, a filha de Ana convivia também
com a filha do casal Cértima.
Devo acrescentar que
em 1993 visitei algumas vezes a viúva de Cértima
em sua casa, preparando a doação que, a meu
pedido, ela fez de quase toda a livraria do
marido à então futura biblioteca pública
municipal de Oliveira do Bairro e também a
entrega em minhas mãos dos documentos essenciais
do seu espólio com vista à elaboração do meu
livro
António de Cértima – Vida, Obra, Inéditos
(Porto, 1993, ed. Figueirinhas) e da comemoração
do centenário do seu nascimento, em 1994. Do que
ouvi nessas visitas ficou-me a ideia de que os
dois escritores, tio e sobrinha, haviam sido
bastante afeiçoados. Todavia, quando telefonei a
Ana Hatherly para lhe expor o projecto da
comemoração e a convidei a participar no ciclo
de conferências em organização, a «pintora da
palavra» recusou-se de imediato, secamente.
Pensei: o espólio do tio me conduziu à sobrinha;
talvez os papéis de Ana que ele guardava possam
explicar tão rotunda recusa!
Curiosamente,
Anagramático, livro de 1970, quando Ana já
se afirmava no campo da poesia concreta e
experimental (a sua primeira exposição de artes
plásticas, na Galeria Quadrante, data de 1969),
foi o primeiro dos vários que Ana publicou em
seguida e que Cértima parece ter desistido de
ver na estante. Em suma, nem ela lhos ofereceu
nem ele os adquiriu. Dir-se-ia que ambos, tio e
sobrinha, seguiram depois caminhos sem óbvia
afinidade ideológica ou relacional aparente,
pois Cértima ia reaparecendo, nas montras do
Chiado, com os romances
Escandalosamente Pura, 1966, e
Não Quero
Ser Herói, 1970, e a plaquete poética
Soldado,
Volta!, 1970 (deste ano é ainda uma outra
plaquete, que encerrou a sua bibliografia).
Nos títulos de 1966 e
1970, o autor, com 75 anos feitos, parecia
querer ressurgir renovado, como que pretendendo
atingir e repetir o sucesso editorial que
alcançara em 1924-25 com
Epopeia
Maldita (e, ao mesmo tempo, lançando no ar o
esboço, ou a promessa, de um seu afastamento do
regime da ditadura), enquanto Ana, acompanhada
pela filha, estudava cinema na Inglaterra.
Todavia, no dia 25 de Abril de 1974, a caminho
de Itália, Ana parou em Lisboa e a viagem
terminou ali: o golpe de Estado e a revolução
democrática seguinte prenderam-na ao solo
pátrio, envolvendo-a nas crepitações do
entusiasmo colectivo.
Já havia perdido sua
filha. Cértima guardou o retrato de Catherine no
conjunto dos papéis de Ana, metido em capa
separada que guardava, além do retrato, uma
folha A4 em que Cértima registou: «Faleceu em
15-2 [emendado: 1?]-1970
<desastre
de auto na estrada de Oxford-Londres>». Da
menina, também ali guardadas, encontrei cartas
para «tio António tia Minda e Fáti»[ma, a filha
do casal Cértima], composições e ficções
infantis e mesmo um «romance, Amor Falso de
Catherine d’Elche» com capa e texto esboçados a
lápis. Seria este o apelido do inglês com quem
Ana se casou (cf. informação por mim recebida de
um seu amigo e colega de Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da U.N.L.).
Uma investigação
cuidadosa e competente virá estabelecer a
cronologia dos passos da biografia completa de
Ana Hatherly (que tinha o hábito de datar o que
escrevia com uma simples barra e o algarismo
final do ano, a unidade), trazendo para a luz o
que hoje carece de esclarecimento e que é, valha
a verdade, quase
tudo.
Tal investigação analisaria a massa dos
documentos principais reunidos e, naturalmente,
avaliaria as relações havidas entre tio e
sobrinha no seu quadro temporal. O investigador
até poderia esquecer a diferença das respectivas
idades e experimentar pôr lado a lado as duas
linhas de vida para ensaiar, em estudo
comparado, quanto uma linha, em última análise,
terá tido algo afim da outra.
Por ora, perante
documentos e aspectos fragmentários da vida e
obra de Ana, apenas conjecturas são possíveis.
Por outro lado, o valor documental de cada
núcleo ou contributo, agora incerto, será
aferível quando for possível estruturar uma
visão de conjunto da massa documental existente.
Encaro, assim, como um
dever a cumprir a presente divulgação da
existência destes papéis que as circunstâncias
me deram a conhecer e que em boa parte
digitalizei, atendendo ao valor documental que
podem exibir. São papéis de recorte literário
ainda que impliquem aspectos de outra ordem, na
esfera de um relacionamento privado. Mas aqui
pretendo dar somente, da sua existência, singela
notícia, pois tenciono encaminhar este acervo
documental para depósito na Biblioteca Nacional
que decerto o agregará ao acervo doado pela
própria Ana Hatherly.
No entanto, porque devo
também proporcionar ao leitor destes papéis uma
visão mínima capaz de orientar o interesse do
investigador da cronologia completa de vida e
obra de Ana quanto ao seu real valor, transcrevo
em amostragem alguns textos, cingindo-me ao seu
teor.
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Improviso:
«Ai como a distância gela!
/ As próprias estrelas não são frias? //
Recordar… / Esquecer… // Como se o amor fosse
obra de memória! // Anna // 11 de Julho de 1957
// Em casa de Antonio de Cértima»
Cartas:
«Antonio de Cértima /
Escrevo-lhe com emoção, escrevo-lhe com agitação
e o tremor do jovem que é apresentado pela
primeira vez no templo, do jovem que vai ser
iniciado nos transcendentes mistérios dos
Deuses. / Aproximo-me de si quase receosamente:
vejo-o envolvido em nuvens, iluminado por chamas
alterosas, tão alto e intangível, que só com
grande esforço do meu humano olhar consigo
localizá-lo no infinito. / É tão irreal a sua
realidade, é tão um sonho, que eu, alma
angustiada que se procura, pomba da paz que não
encontra sua oliveira, fico deslumbrada e
vencida na contemplação do seu esplendor. / Você
é o contrário de Prometeu: o seu fogo não o
roubou aos Deuses, o seu fogo foi-lhe dado pelos
Deuses, com ele foi criado. / E quando penso que
me cumula da sua bondade [e] me pede a mim uma
opinião da sua obra! Como posso eu? / Envolvida
em sombras, em guerra permanente comigo própria,
olho a sua claridade e fico cega e muda. / Não
sei pois o que dizer. Nem honrá-lo nem
descrevê-lo; o máximo da minha expressão é o
silêncio. // Anna // Dezembro /3»
«Antonio de Certima
«Não julgue que me
esqueci da prometida carta a propósito do seu
ultimo livro. Não encontro melhor forma de me
exprimir do que reproduzir um dos meus últimos
poemas: / Como um diamante coberto de terra / Se
esconde o amor de quem não sabe / Que mesmo a
luz, que mesmo a verdade, / Precisam ser
achados, descobertos / E que se todos sabem /
Distinguir da terra o sal / E do dia a noite de
luar / Todos deviam saber / Naturalmente / Amar.
/ Mas isso não pode assim acontecer / Porque o
amor se esconde de quem pensa; / Só o encontra
quem o não procura / E só o pode ver quem nada
veja // E quem se lembraria de exigir / À
humanidade inteira / Que arrancasse da
consciência os muitos [?]olhares / E cedesse
assim a uma total cegueira?» / Ana Hatherly /
Hagen, 2 de Março»
«Antonio de Cértima. //
A si, poeta da sensibilidade e do espírito,
dedico este pequeno poema, um grito conturbado
de alma angustiada. // Novembro /2. // Admirada,
/ Contemplo as mãos vazias de sonho. // Nada
ficou desse brilho esplendoroso / Simples
reflexo da minha / esperança, / Nada ficou, /
Nem a lembrança. // Só paz – só calma. /
O que se passou em ti
minha alma? // Anna Hatherly»
Poemas
- poema [só
o final:] «E então fechei os olhos / E
chorei, / Porque a minha dor é minha e é de
todos, / E a natureza, as coisas belas, / Me
magoam / Porque estão em mim / E fóra de mim me
ferem. /O que eu quizer ter e amar / Ao me
deixar / Se perde.» // «Janeiro de 1959» [man.
sem ass.]
- «O sonho é a ponte /
que vai do infinito ao infinito / é a medida sem
comparação / é a presença do que se imagina //
Sonhar talvez só seja / reconhecer o que já nem
a alma sinta / nem o próprio pensamento seja.»
// Ana Hatherly
- «Despede o desejo /
como quem acende uma luz / Ou de súbito a apaga
numa casa: / Escura era / E ficou.» // Ana //
1964»
Peça
- La danse de l’oubli,
por Anna Hatherly [dáctilo.
2 pp papel bíblia com autógrafo:] «A Antonio
de Certima para que leia e pense» // Ana
Hatherly / «19 Dezembro 1956»
Catherine
- «Romance O Amor Falso,
de Catherine d’Elche, 1960», fls escritas a
lápis, caligrafia infantil, numa capa simples
(contendo no interior:)
- retrato de menina (anotação de sua mãe no
reverso): «Catherine aos 9 anos / Maio de 1959»
- apontamento man. de A.
Cértima em fl A4: «Faleceu em 15-2 [ou 1?]-1970 <desastre de auto na estrada de Oxford-Londres>»
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