Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 55 . dezembro 2015


Arsénio Mota. Jornalista e escritor. Nasceu em 1930 (abril) em Oliveira do Bairro e vive no Porto, Portugal, desde 1963. Começou a publicar em 1955 (poemas sob pseudónimo); sua bibliografia, já extensa, inclui volumes de crónicas, ficções e estudos diversos, além de traduções, organização de antologias, etc. É também autor, desde 1985, de contos para crianças. Em 2005 saiu "50 anos de escrita", livro de autores vários organizado por Serafim Ferreira. Mantem desde 2008 o blogue que tem o seu nome. Email: arseniomota@gmail.com
 

ARSÉNIO MOTA

De relance

Ana Hatherly e o «tio»

 
 

O recente falecimento de Ana Hatherly (Lisboa, 5-Ag-2015), com 86 anos, compeliu-me a pegar por fim num conjunto de papéis desde 1993 em meu poder. Considerei-os desde logo significativos e valiosos mas deixei o seu teor, em boa avaliação, sempre para mais tarde. Provinham da «pintora da palavra» (assim Ana apareceu rotulada na imprensa), e chegaram-me às mãos integrados no espólio geral de António de Cértima de que fui e ainda vou sendo, agora parcialmente, fiel depositário.

Notoriamente, Cértima guardou aqueles papéis assim como os primeiros livros que Ana começou a publicar em 1958. Na colecção falta, porém, A Dama e o Cavaleiro, de 1960, desaparecido talvez devido a algum empréstimo sem retorno. Com igual cuidado, Cértima juntou os papéis que refiro: poemas (dactilografados e manuscritos) e outros originais literários entre algumas cartas que Ana lhe dirigiu e… surpresa!, também composições infantis de autoria da filha de Ana, Catherine.

O facto de os papéis se encontrarem reunidos parece provir de um acto de selecção operado por Cértima, pessoa cuidadosa com a sua imagem; se foi conveniente, acaso poderia ter descartado do conjunto o que nele destoasse?

Creio que as relações estabelecidas pelos dois escritores constituem um interessante caso de estudo capaz de lançar luz especialmente sobre o período juvenil de Ana, pessoa de poucas amizades e feitio bastante reservado. Na verdade, o que se conhece da autora, prestigiada figura pública, é sumário. Evoca somente os pontos principais do seu percurso: a música, a licenciatura, o doutoramento em Berkeley, E. U., a investigação do barroco, enfim, o perfil académico, a poesia experimental, a pintura, o cinema, a literatura e pouco mais. Realmente, não é fácil abarcar a multifacetada vida e obra que realizou.

Ana [Maria] Hatherly nasceu no Porto em 8-05-1929 e António de Cértima em 27-07-1894, portanto, uns 35 anos antes. Natural de Oliveira do Bairro (Giesta, Oiã), Cértima frequentou o ambiente intelectual do Porto, onde teria parentes, porventura os futuros pais de Ana. Certo é que, para Ana, ele era o «tio».

Depois de participar na guerra 1914-18 em Moçambique, de se mudar para Lisboa em 1922, publicar Epopeia Maldita e de ingressar na carreira diplomática apoiando Gomes da Costa, Salazar e Franco, Cértima largou o «seu» consulado em Sevilha após o fim da segunda grande guerra e em 1948, com cerca de 54 anos de idade (tinha Ana 19 anos), regressou a Lisboa para se casar e poder dedicar-se finalmente à criação literária.

O início dos contactos de Ana com o tio, escritor notado, terá coincidido com a decisão de optar pela literatura abandonando os estudos de música em Lisboa, Paris e Hagen, Alemanha, por motivos de saúde. Desistiu do canto lírico e encetou o percurso literário no «Movimento 57», jornal (com elementos ligados ao grupo da «filosofia portuguesa») dirigido por António Quadros. Os seus primeiros livros de poemas – Um Ritmo Perdido, de 1958, e os seguintes – estavam na biblioteca de Cértima com autógrafos da autora. É provável que o tio tenha encorajado e apoiado a publicação do livrinho antológico Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa, saído na colecção Educativa da Direcção-Geral do Ensino Primário (abre com citação de Salazar; a autora expurgou-o da sua bibliografia). Na oferta, escreveu: «Para o António e para a Minda, este inocente livrinho cheio de amor pela Poesia e pelo nosso Povo. Ana Hatherly, Dez. 1960.»

De facto, Cértima casou-se em Lisboa com Maria Arminda, da família Lacerda, lisboeta com raízes no Caramulo, onde por sinal Cértima acabou por morrer, com 89 anos, em 20-10-1983, deixando inéditos vários livros.

Nas suas estantes encontrei também O Mestre (col. Autores Portugueses, Arcádia, Julho, 1963), ficção de Ana com muito simbolismo onde uma Discípula questiona o seu Mestre a detectar incoerências. Todavia, este exemplar aparece limpo de autógrafo, o que sugere que a autora, desta vez, não lho ofereceu e que o tio, querendo-o apreciar, o comprou.

Aparentemente, Ana terá iniciado a carreira literária em ligação com o tio, com ele partilhando poesia, catolicismo e alguma aceitação do regime da ditadura. Um retrato de Catherine, feito em Lisboa, tem no reverso uma nota de sua mãe: «Catherine aos 9 anos». Em que data terá nascido? De qualquer modo, a menina desenvolvia um talento digno da progenitora: rabiscava contos, peças de teatro e cartas que o tio guardou, a exemplo de folha com texto sobre Camões, datada (28-07-1960) e anotada pelo tio: «Noite do jantar de homenagem ao contista João de Araújo Correia». Possivelmente, a filha de Ana convivia também com a filha do casal Cértima.

Devo acrescentar que em 1993 visitei algumas vezes a viúva de Cértima em sua casa, preparando a doação que, a meu pedido, ela fez de quase toda a livraria do marido à então futura biblioteca pública municipal de Oliveira do Bairro e também a entrega em minhas mãos dos documentos essenciais do seu espólio com vista à elaboração do meu livro António de Cértima – Vida, Obra, Inéditos (Porto, 1993, ed. Figueirinhas) e da comemoração do centenário do seu nascimento, em 1994. Do que ouvi nessas visitas ficou-me a ideia de que os dois escritores, tio e sobrinha, haviam sido bastante afeiçoados. Todavia, quando telefonei a Ana Hatherly para lhe expor o projecto da comemoração e a convidei a participar no ciclo de conferências em organização, a «pintora da palavra» recusou-se de imediato, secamente. Pensei: o espólio do tio me conduziu à sobrinha; talvez os papéis de Ana que ele guardava possam explicar tão rotunda recusa!

Curiosamente, Anagramático, livro de 1970, quando Ana já se afirmava no campo da poesia concreta e experimental (a sua primeira exposição de artes plásticas, na Galeria Quadrante, data de 1969), foi o primeiro dos vários que Ana publicou em seguida e que Cértima parece ter desistido de ver na estante. Em suma, nem ela lhos ofereceu nem ele os adquiriu. Dir-se-ia que ambos, tio e sobrinha, seguiram depois caminhos sem óbvia afinidade ideológica ou relacional aparente, pois Cértima ia reaparecendo, nas montras do Chiado, com os romances Escandalosamente Pura, 1966, e Não Quero Ser Herói, 1970, e a plaquete poética Soldado, Volta!, 1970 (deste ano é ainda uma outra plaquete, que encerrou a sua bibliografia).

Nos títulos de 1966 e 1970, o autor, com 75 anos feitos, parecia querer ressurgir renovado, como que pretendendo atingir e repetir o sucesso editorial que alcançara em 1924-25 com Epopeia Maldita (e, ao mesmo tempo, lançando no ar o esboço, ou a promessa, de um seu afastamento do regime da ditadura), enquanto Ana, acompanhada pela filha, estudava cinema na Inglaterra. Todavia, no dia 25 de Abril de 1974, a caminho de Itália, Ana parou em Lisboa e a viagem terminou ali: o golpe de Estado e a revolução democrática seguinte prenderam-na ao solo pátrio, envolvendo-a nas crepitações do entusiasmo colectivo.

Já havia perdido sua filha. Cértima guardou o retrato de Catherine no conjunto dos papéis de Ana, metido em capa separada que guardava, além do retrato, uma folha A4 em que Cértima registou: «Faleceu em 15-2 [emendado: 1?]-1970 <desastre de auto na estrada de Oxford-Londres>». Da menina, também ali guardadas, encontrei cartas para «tio António tia Minda e Fáti»[ma, a filha do casal Cértima], composições e ficções infantis e mesmo um «romance, Amor Falso de Catherine d’Elche» com capa e texto esboçados a lápis. Seria este o apelido do inglês com quem Ana se casou (cf. informação por mim recebida de um seu amigo e colega de Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da U.N.L.).

Uma investigação cuidadosa e competente virá estabelecer a cronologia dos passos da biografia completa de Ana Hatherly (que tinha o hábito de datar o que escrevia com uma simples barra e o algarismo final do ano, a unidade), trazendo para a luz o que hoje carece de esclarecimento e que é, valha a verdade, quase tudo. Tal investigação analisaria a massa dos documentos principais reunidos e, naturalmente, avaliaria as relações havidas entre tio e sobrinha no seu quadro temporal. O investigador até poderia esquecer a diferença das respectivas idades e experimentar pôr lado a lado as duas linhas de vida para ensaiar, em estudo comparado, quanto uma linha, em última análise, terá tido algo afim da outra.

Por ora, perante documentos e aspectos fragmentários da vida e obra de Ana, apenas conjecturas são possíveis. Por outro lado, o valor documental de cada núcleo ou contributo, agora incerto, será aferível quando for possível estruturar uma visão de conjunto da massa documental existente.

Encaro, assim, como um dever a cumprir a presente divulgação da existência destes papéis que as circunstâncias me deram a conhecer e que em boa parte digitalizei, atendendo ao valor documental que podem exibir. São papéis de recorte literário ainda que impliquem aspectos de outra ordem, na esfera de um relacionamento privado. Mas aqui pretendo dar somente, da sua existência, singela notícia, pois tenciono encaminhar este acervo documental para depósito na Biblioteca Nacional que decerto o agregará ao acervo doado pela própria Ana Hatherly.

No entanto, porque devo também proporcionar ao leitor destes papéis uma visão mínima capaz de orientar o interesse do investigador da cronologia completa de vida e obra de Ana quanto ao seu real valor, transcrevo em amostragem alguns textos, cingindo-me ao seu teor.

 
Catherine, filha de Ana Hatherly,
com 9 anos
Ana Hatherly fotografada
por Maria Antónia Palla
 
Ana Hatherly, contracapa de O mestre,
1960
Capa da antologia organizada por Ana Hatherly, Caminhos da moderna poesia portuguesa.
 

Improviso:

«Ai como a distância gela! / As próprias estrelas não são frias? // Recordar… / Esquecer… // Como se o amor fosse obra de memória! // Anna // 11 de Julho de 1957 // Em casa de Antonio de Cértima»

Cartas:

«Antonio de Cértima / Escrevo-lhe com emoção, escrevo-lhe com agitação e o tremor do jovem que é apresentado pela primeira vez no templo, do jovem que vai ser iniciado nos transcendentes mistérios dos Deuses. / Aproximo-me de si quase receosamente: vejo-o envolvido em nuvens, iluminado por chamas alterosas, tão alto e intangível, que só com grande esforço do meu humano olhar consigo localizá-lo no infinito. / É tão irreal a sua realidade, é tão um sonho, que eu, alma angustiada que se procura, pomba da paz que não encontra sua oliveira, fico deslumbrada e vencida na contemplação do seu esplendor. / Você é o contrário de Prometeu: o seu fogo não o roubou aos Deuses, o seu fogo foi-lhe dado pelos Deuses, com ele foi criado. / E quando penso que me cumula da sua bondade [e] me pede a mim uma opinião da sua obra! Como posso eu? / Envolvida em sombras, em guerra permanente comigo própria, olho a sua claridade e fico cega e muda. / Não sei pois o que dizer. Nem honrá-lo nem descrevê-lo; o máximo da minha expressão é o silêncio. // Anna // Dezembro /3» 

«Antonio de Certima

«Não julgue que me esqueci da prometida carta a propósito do seu ultimo livro. Não encontro melhor forma de me exprimir do que reproduzir um dos meus últimos poemas: / Como um diamante coberto de terra / Se esconde o amor de quem não sabe / Que mesmo a luz, que mesmo a verdade, / Precisam ser achados, descobertos / E que se todos sabem / Distinguir da terra o sal / E do dia a noite de luar / Todos deviam saber / Naturalmente / Amar. / Mas isso não pode assim acontecer / Porque o amor se esconde de quem pensa; / Só o encontra quem o não procura / E só o pode ver quem nada veja // E quem se lembraria de exigir / À humanidade inteira / Que arrancasse da consciência os muitos [?]olhares / E cedesse assim a uma total cegueira?» / Ana Hatherly / Hagen, 2 de Março» 

«Antonio de Cértima. // A si, poeta da sensibilidade e do espírito, dedico este pequeno poema, um grito conturbado de alma angustiada. // Novembro /2. // Admirada, / Contemplo as mãos vazias de sonho. // Nada ficou desse brilho esplendoroso / Simples reflexo da minha / esperança, / Nada ficou, / Nem a lembrança. // Só paz – só calma. /

O que se passou em ti minha alma? // Anna Hatherly» 

Poemas

- poema [só o final:] «E então fechei os olhos / E chorei, / Porque a minha dor é minha e é de todos, / E a natureza, as coisas belas, / Me magoam / Porque estão em mim / E fóra de mim me ferem. /O que eu quizer ter e amar / Ao me deixar / Se perde.» // «Janeiro de 1959» [man. sem ass.] 

- «O sonho é a ponte / que vai do infinito ao infinito / é a medida sem comparação / é a presença do que se imagina // Sonhar talvez só seja / reconhecer o que já nem a alma sinta / nem o próprio pensamento seja.» // Ana Hatherly 

- «Despede o desejo / como quem acende uma luz / Ou de súbito a apaga numa casa: / Escura era / E ficou.» // Ana // 1964» 

Peça

- La danse de l’oubli, por Anna Hatherly [dáctilo. 2 pp papel bíblia com autógrafo:] «A Antonio de Certima para que leia e pense» // Ana Hatherly / «19 Dezembro 1956» 

Catherine

- «Romance O Amor Falso, de Catherine d’Elche, 1960», fls escritas a lápis, caligrafia infantil, numa capa simples (contendo no interior:) 

- retrato de menina (anotação de sua mãe no reverso): «Catherine aos 9 anos / Maio de 1959» 

- apontamento man. de A. Cértima em fl A4: «Faleceu em 15-2 [ou 1?]-1970 <desastre de auto na estrada de Oxford-Londres>»



 
 
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