Adelto Gonçalves é
doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor
de
Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981;
Taubaté, Letra Selvagem, 2015),
Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002),
Bocage – o perfil perdido (Lisboa,
Caminho, 2003),
Tomás Antônio Gonzaga (Academia
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2012), e
Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na
São Paulo Colonial (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2015), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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ADELTO GONÇALVES
As fronteiras
entre literatura e religião
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Teografias.
Metamorfoses da Santidade.
Departamento de Línguas e Cultura da
Universidade de Aveiro, Portugal: 388 págs.,
2013. E-mail:
antonio@ua.pt
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I |
A
Universidade de Aveiro lançou o terceiro e
último volume de
Teografias
– Literatura e Religião, projeto de
investigação financiado pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia (FCT) do Ministério da
Educação e Ciência de Portugal. Sob a direção do
professor António Manuel Ferreira, o projeto
procurou estudar alguns temas religiosos no
discurso literário, principalmente nas
literaturas em língua portuguesa.
O
primeiro volume da série,
Sentimento Religioso e Cosmovisão Literária, saiu em 2011, seguido
por
Gramáticas da Criação: Adão, Eva e outros mitos
(2012). O terceiro,
Metamorfoses da Santidade (2013), traz 27
ensaios de estudiosos portugueses e brasileiros
que, geralmente, tomaram como objeto de estudo
autores de seus países, com a exceção do próprio
coordenador do projeto, António Manuel Ferreira,
que analisou a novela
Homo
Viator, do moçambicano João Paulo Borges
Coelho (1955). É de se lembrar, porém, que
Borges Coelho, filho de pai trasmontano e mãe
moçambicana, nasceu no Porto, mas cedo foi viver
em Moçambique, adquirindo a nacionalidade deste
país.
Autor
que estreou em 2003 com o romance
As Duas
Sombras do Rio, Borges Coelho já conquistou
o seu espaço na literatura moçambicana em língua
portuguesa pós-colonialismo, ao lado de Mia
Couto, Paulina Quiziane, Ungulani Ba Ka Khosa,
Nelson Saúte e Luís Carlos Patraquim, depois da
publicação do romance
As visitas do dr. Valdez (2004), dos volumes do díptico
Índicos
Indícios: Setentrião (2005) e
Meridião
(2005), chamados pelo autor de “estórias”, mas
que podem ser vistos como contos ou novelas, dos
romances
Crônica da Rua 513.2 (2006) e
Campo de
Tránsito (2007), da novela burlesca
Hinyambaan
(2008), do romance
O Olho de
Hertzog (2010), vencedor do Prêmio Leya em
2009, e da narrativa futurista
Cidade dos Espelhos (2011).
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II |
Em
seu estudo “Homo
Viator sentado: uma novela de João Paulo
Borges Coelho”, porém, o professor Ferreira se
concentra na novela “O pano encantado”, que faz
parte de
Setentrião., primeiro volume de
Índicos
Indícios, que reúne “estórias” situadas no
Norte de Moçambique, cujo personagem é Jamal, um
jovem alfaiate, natural da Ilha de Moçambique
onde o Islaminismo dos baneanes se misturou com
o Cristianismo dos portugueses e a religião dos
macuas, que é um misto de monoteísmo e animismo.
“O
pano encantado” é uma narrativa que transcorre
naquela ilha, lugar idílico por onde passaram
poetas como Luís de Camões (1524-1580), Bocage
(1765-1805) e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810),
que lá viveu o seu exílio, entre os mais
antigos, e Jorge de Sena (1919-1978), Miguel
Torga (1907-1959), Rui Knopfli (1932-1997) e
Alberto de Lacerda (1928-2007), que lá nasceu,
entre os mais recentes.
Para
Ferreira, Jamal representa uma atualização bem
engenhosa do tema do
Homo
Viator, que recupera a tradição do
peregrino. No caso de Jamal, porém, que passa
todo o dia sentado à máquina de costura, as
viagens que faz são na imaginação ao redor de
sua sala, já que, por razões econômicas, nunca
poderá ir a Meca. Empregado do senhor Rashid,
outro muçulmano, dono da Alfaiataria 2000,
Jamal, ao contrário do patrão, não se deixou
influenciar pelo hibridismo religioso da Ilha,
mantendo-se fiel a Maomé, como integrante de uma
confraria que se considera impoluta e inabalável
na defesa da fé islâmica.
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III |
A
narrativa, em resumo, mostra a peregrinação que
Jamal faz em espírito a Meca ao bordar um pano,
tarefa a que se dedica não só em seu local de
trabalho como em sua casa, no bairro pobre de
Macaripe. Enquanto borda, Jamal faz a sua oração
particular, preso às atividades do espírito,
maneira de se libertar das obrigações da
sobrevivência. O incidente nuclear da novela,
como diz Ferreira, é a atitude do patrão de
Jamal, Rashid, que, apegado aos negócios, não
hesita em vender o bordado de Jamal a uma
turista italiana que ficara encantada com o
trabalho.
Para
Jamal, aquele é um ato sacrílego, pois não fazia
aquilo com intenção de ganhar dinheiro. É essa
discrepância entre os comportamentos das duas
personagens que Ferreira destaca, ao lembrar
que, ao contrário do que é costume, aqui é ao
mais jovem que cabe a função de preservar a
pureza das tradições, observando ainda que a
sabedoria nem sempre está naqueles que exibem
cabelos grisalhos ou brancos, como se pode ver
em exemplos de santos do catolicismo ou em
figuras igualmente sagradas de outras culturas.
Para Ferreira, enfim, a obra de Borges Coelho “é
sintoma evidente da madurez estética da
literatura moçambicana contemporânea”.
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IV |
Outro
ensaio que se destaca é “Literatura e Religião”,
em que professor Francisco Maciel Silveira, da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo
(USP), procura delimitar as fronteiras entre
essas duas áreas do pensamento. De início, o
autor analisa a Literatura servindo-se da
Religião como tema ou recurso retórico, para
depois examinar a Religião servindo-se de
recursos literários retórico-persuasivos para
veicular seus ensinamentos.
Por
fim, procura demarcar as fronteiras em que
Literatura e Religião confundem-se e se
distanciam de suas características intrínsecas.
Como exemplo, Maciel Silveira lembra que não é
por acaso que o padre Manuel Bernardes
(1644-1710), num de seus sermões, considera
Cristo a corporificação da metonímia, dizendo
“que a humanidade de Cristo Senhor nosso é
livro” que “se abriu na estante da Cruz para
poder ser lido publicamente”. E acrescenta:
“Cristo é livro aberto na cruz porque sua vida
compendia e encarna a doutrina”.
Maciel Silveira observa que, se a Religião
encontra sua razão de ser e cumprir-se numa
figura literária – a metonímia –, a Literatura,
tendo a possibilidade de ser metonímia, não
deseja, contudo, sê-lo. “Na Literatura, o Verbo
pode ser carne – isto é, objetivar-se,
realizar-se e corporificar-se no mundo
fenomênico –, mas, ao contrário, da Religião,
não tem a finalidade precípua de ser discurso
transliterado em carne”, diz. E acrescenta:
“Aquela advertência que geralmente lemos ao fim
de um filme – toda e qualquer semelhança com
pessoas vivas ou mortas ou fatos realmente
acontecidos terá sido mera coincidência –
aplica-se perfeitamente à Literatura, pois
encerra sua essência ficcional e finalidade”.
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