Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . índice



Rogério Paulo da Silva (1962, Lisboa). Artista visual e designer gráfico, licenciado em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. O seu trabalho artístico incide na exploração dos conceitos Memória e Tempo inscritos em diálogos visuais e transversais a vários media: o desenho, vídeo e fotografia. Tem realizado e participado em exposições nacionais e internacionais e em congressos e workshops de arte sonora e arte multimédia. Recentemente participou com o projecto de vídeo Postais, integrado na exposição A Linha e o Espaço no MAEDS, Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal; proferiu uma palestra na exposição Em qualquer tempo a memória na Biblioteca da Escola  Secundária de Silves no âmbito da V Bienal de Poesia de Silves; e participou com o vídeo Memento (2015) no Congresso da Cidadania, Ruptura e Utopia, Fundação Calouste Gulbenkian e na ProxyACT International Short Film Festival em Londres.
Site:
   http://www.rogeriosilvastudio.com

ROGÉRIO PAULO DA SILVA

ECRÃ - extensão do corpo e do pensamento

Introdução

 

Este ensaio permite reflectir acerca das exigências por parte das sociedades, em transformar e reconstruir as massas segundo moldes de envolvimento económico e sob influência do constante desenvolvimento de novas matrizes tecnológicas. Neste contexto convocam-se questões ligadas ao passado histórico e às necessidades abrangentes da criação de dispositivos reprodutores de imagens, com vista a possibilitar formas de comunicar com o olhar e o pensamento colectivo. Nessa perspectiva globalizante, caracterizada pela aproximação da visualidade colectiva ao mundo em tempo real através de dispositivos tecnológicos, abrem-se perspectivas actuais de novas formas de olhar o mundo. Nessa condicionante, os indivíduos têm vindo a apropriar-se cada vez mais da sua própria individualidade, alienando-se exponencialmente da aura natural da sua condição humana e da relação com o mundo à sua volta. Ao olhar para um ecrã, para se ligar visualmente ao mundo, o homem actual acede à possibilidade de partilha da sua própria realidade de forma imediata e efémera. Essa conexão induz à ilusão de que o individuo tem o poder de assumir o controlo do mundo virtual que deseja criar para si. Paradoxalmente, essa ilusão aponta para o facto de experimentar a sensação de se encontrar acompanhado nessas conexões, quando na verdade está isolado do mundo, na sua própria individualidade.

1. A visualidade colectiva das massas

 

As exigências de transformação e adequação das massas às sociedades, sempre foram exercidas em função de uma reintegração, compreendida ao evoluir da história e a par com o inevitável envolvimento dos dispositivos tecnológicos de comunicação e de informação. De acordo com a necessidade abrangente em se comunicar para grupos distintos de indivíduos surgiu a criação de mecanismos de reprodução de imagens e de matrizes tecnológicas, com vista a possibilitar ao olho humano uma aproximação ao mundo, em tempo real, com todos os seus paradigmas associados a cada época. Desta globalização, claramente inevitável a um pensamento individual e unidireccional das massas como representantes da super-estrutura, derivou uma forma actual de olhar o mundo, distanciando-se da maneira “inocente” como se olhava o passado, cujas possibilidades de representação não estariam suficientemente desenvolvidas na sua reprodutibilidade.

Em 1895, a primeira exibição do Cinematógrafo dos irmãos Lumière (fig.1), foi das primeiras manifestações tecnológicas que democraticamente surgiu para proporcionar a um colectivo de olhares, a representação do mundo em movimento.

 

Fig. 1 A primeira metragem do Cinematógrafo Lumière, trabalhadores saindo da fábrica Lumière (1895)

 
 

Dentro do paradigma da reprodutibilidade da imagem, - incluindo-se os processos de impressão gráfica e também a fotografia - “o seu agente mais poderoso é o filme. O seu significado social também é inimaginável” (Benjamin, 1992, p. 79) tanto como gerador de informação comunicacional, como para redimensionar o pensamento das massas.

Os ecrãs, que passaram a educar a visualidade colectiva para uma nova dimensão da representação, accionaram o pensamento humano a pensar-se dentro de uma dimensão exterior ao próprio corpo, alienado da sua condição humana. O olhar do individuo, que no passado era determinado por imagens vivenciadas no dia a dia e por experiências reais, passou a confrontar-se diante de dispositivos tecnológicos que lhe apresentavam imagens semelhantes e análogas à sua vida, passando a questionar-se sobre a forma em que poderia co-habitar com a cópia instantânea da realidade; e de que maneira ele poderia dialogar com a velocidade e o tempo da informação recebida no ecrã de um pequeno dispositivo, com a gestualidade do seu corpo.

2. Aproximar o ecrã e afastar a aura do mundo

 

Olhar para um ecrã, algo é permitido ao homem actual. Ele entra na intimidade do mundo sem ser visto. Isolado na sua individualidade, tem na sua mão um dispositivo que lhe dá acesso rápido à informação, à representação da vida e também à partilha da sua própria realidade de forma imediata e efémera.

A tendência incontornavelmente individualista que as sociedades actuais têm permitido adoptar no que diz respeito a cada cidadão, resume-se à crescente alienação da aura natural e envolvente da realidade exterior e sensitiva que compõe o individuo, o qual se vai entregando em massa ao “brilho” fugaz dos dispositivos tecnológicos, com um menor esforço para consegui-lo. Essa perca de identidade, semelhante à “aura” de que Walter Benjamin se refere ao falar das manifestações sensoriais com a natureza, cujo sentimento se distância cada vez mais do homem por consequência do “condicionalismo social da actual decadência da aura” (Benjamin, 1992, p. 81), é agora transversal à actualidade - à forma massificada como as imagens alimentam cada vez mais a nossa visualidade e ao anseio em nos ligarmos e aproximarmos aos acontecimentos do mundo de forma instantânea.

“Aproximar as coisas espacial e humanamente é actualmente um desejo das massas tão apaixonado como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer realidade, através do registo da sua reprodução” (Benjamin, 1992, p. 81).

Actualmente, cada vez que nos ligamos aos nossos pequenos ecrãs - telemóveis ou computadores - para nos “conectarmos” com o mundo, não nos apercebemos que, mesmo sem eles, a realidade do mundo mantém-se ligada ao nosso ser em estado permanente. Ao vivermos em constante dependência com esses pequenos dispositivos, assumimos em massa que ganhámos mais um novo órgão para o nosso corpo e que não conseguimos psicologicamente viver sem ele. Tornou-se uma extensão da nossa existência, da nossa individualidade, do nosso braço (Fig.2).

 

Fig. 2. O telemóvel, novo órgão do corpo, extensão do braço.

 
 

Sherry Turkle, na conferência Connected, but alone? afirma, referindo-se aos telemóveis, que esses pequenos aparelhos que estão tão próximos de nós, no nosso bolso, são tão psicologicamente potentes, que não só alteram o que fazemos como também alteram quem nós somos (1). Estarmos conectados na net faz-nos parecer ilusoriamente que assumimos o controlo das nossas vidas e que temos o conhecimento de tudo o que se passa no mundo. Este processo, na verdade, é um paradoxo como indica o título da conferência de Turkle. Poderemos de facto ter essa sensação ilusória de estarmos acompanhados e ligados à infinita rede de informação mas, na realidade, encontramo-nos num processo hipnótico de isolamento (Fig.3). Tentamos quebrar a solidão ligando-nos ao mundo através do ecrã de um dispositivo. Ao mesmo tempo, receando o isolamento, perdemos toda a noção do tempo real da nossa vida, ficando por fim ligados a essa solidão.  

 

Fig. 3 Texting together. Alone together? Credits Sherryl Turkle

 
 

As imposições sociais da actualidade e a democratização da imagem mostradas através dos media tendem a provocar, cada vez mais, sensações de insegurança do próprio eu. O sentimento de decepção muitas vezes experienciado pelo individuo, relativo à sua imagem perante a sociedade, faz com que haja um desejo inconsciente de assumir uma nova individualidade. Nos nossos dias essa forma de metamorfose virtual tornou-se espontaneamente inteligível porque “a vida no ecrã faz com que mais facilmente um individuo se apresente como outra pessoa do que na vida real” (Turkle, 1995, p.371). 

Estamos agarrados ao nosso novo “órgão/tecnológico”, com a dependência psicológica que isso significa, como um tipo de escravatura que “opera por detrás de uma certa invisibilidade” (Mirzoeff, 2009, p. 68) e, neste sentido, todo o individuo funciona como uma peça fundamental, alienada de si,  para que o sistema económico das sociedades gire como um circulo que não tem principio nem fim – “a sensação de que a escravidão acabou ou se deve esquecer, deixa de fora a ideia do seu papel formativo na formação da modernidade” (Ibidem, p.68).

Referências

Benjamin, Walter (1992) Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio D’Água.

Mirzoeff, Nicholas (1999). An Introduction to Visual Culture. Londres e Nova York: Routledge.

Turkle, Sherry (1995) Life on the Screen, Identity in the Age of the Internet. New York: Simon & Schuster Paperbacks.

[Consult. 2015-05-19] Disponível em <URL: http://www.theparisreview.org/blog/2014/03/19/the-first-footage-from-the-cinematograph/>

[Consult. 2015-05-19] Disponível em <URL: http://pplware.sapo.pt/informacao/10-coisas-estupidas-que-fazemos-com-smartphones/>

[Consult. 2015-05-19] Disponível em <URL: http://cooperatie-wow.nl/2013/09/16/the-innovation-of-lonelyness/#!prettyPhoto>

(1) (Cf. em: http://www.ted.com/talks/sherry_turkle_alone_together/transcript?language=en)
 
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