Sendo minha
a casa de outrem, o corpo de outrem, a alma
de outrem sou a sentir que mais não tenho
que este ofício de estar vivo. Como se a
sobrevivência fosse tudo quanto há, pois não
é de minha condição acalentar qualquer
orgulho, o mais leve escrúpulo ou réstia de
dignidade. Apenas sou e esse grave peso, de
tão-só continuar, consome todas as minhas
forças que, aliás, não são minhas mas
aquelas que consigo furtar. Esse é o meu
talento, o primeiro mandamento, a única fé,
e muito tenho feito por isso. Pobre é aquele
que sugo pois mais pobre fica. Tem de prover
a si e a este vosso amigo e quando se vê
esgotado, sem qualquer agradecimento de
minha parte, é abandonado, já às portas da
morte que alguém como eu só desiste e anda
para a frente quando o seu natural
hospedeiro está, em extremo, depauperado.
Deixo-o morrer em paz e procuro outro mais
são e viçoso. Esse que irá fenecer por mor
de meu labor ainda o não sabe mas, a prazo,
será aniquilado para que eu prospere e nem
sei quais desgracei, apenas que foram
muitos. Outrora ladinos, despreocupados e
felizes são hoje sombras umbradas, cascas a
quem até a luz de seus olhos s’extinguiu,
arrastando a oca carcaça enquanto o miolo é
roído pela persistente e tenaz voz que me
diz «continua, é preciso que sejas ainda,
talvez pela ordem do mundo, pelo equilíbrio
da injustiça com o bem, para que a
humanidade perceba que nem só de bonançosos
amanhãs se faz o tempo, que há quem deprede
a sã saúde, que prospere na derrota, negra
raiz da miséria»; «alto lá, haja atenção ao
mais mesquinho dos seres, ínfimo e em
aparência sereno mas que explora todas as
fraquezas que vê, todas as brechas na
couraça d’alegria e esperança que anima as
gentes e lhes dá errónea sensação de
segurança». Nesse fervor acredito vindicar
minha malsã existência.
Por vezes
hesito, tento recuar; talvez haja hipótese
de subsistir por mim, autónomo e construindo
alicerces para uma dádiva. Logo, porém, a
fome aperta. Constato que só por mim nada
sou, que dependo de quem me dá as vitualhas
e no instante seguinte sou a exercer a minha
arte e ofício, na qual sou um mestre,
incontestado senhor de mil ardis, para
extrair dos outros, desavergonhado ladrão, o
conjunto pleno de suas mais estimadas
qualidades.
Maldigo o
meu destino. Mas porquê? Todo o ser quer
prosperar, ser constantemente aquilo que é.
Eu, naturalmente, sendo aquilo que sou, por
muito imoral que pareça, limito-me a
cumprir-me. Necessito que me emprestem o seu
ser e assim sou conforme a vítima. Vivo à
sua sombra, sofro com seus dissabores e
alegro-me com as suas vitórias não só por
saber que sua fortuna me favorece mas
sobretudo porque minha profissão me torna
íntimo e solidário, pelo menos enquanto
durar a relação simbiótica que, a
contragosto, estabeleço. Uno de corpo,
diverso de espírito mas ainda e sempre
próximo da inefável coerência da morte, não
poucas vezes sou a lamentar o precipício a
que conduzo minhas vítimas: o que se faz
presente na minha aziaga actuação tem algo
de sinistro e é a única conduta que me está
disponível; não o benefício, não o cuidado,
não a saúde; sou a emprestar sintomas; como
uma maleita estabeleço a vertigem de um fim
funesto e torpe que ofereço a quem antes
vivia liberto do mal. Se vos tentasse
descrever como me vêem aqueles que depredo
teria duas ordens de dificuldades: a
primeira, porque estes, em rigor, me não
vêem, pois apenas têm uma percepção parcial
e difusa de minha presença; a segunda,
porque habituado a um total egoísmo, não
posso entender o que poderá consistir isto
de ser-se tão completamente explorado por
outro, um estranho que com perfídia se
infiltrasse na minha vida com o fito de me
sonegar o alento vital. Talvez possa dizer
que a minha acção equivale a uma peculiar
patologia, assintomática em larga medida mas
não sem os seus caracteres distintivos. Uma
melancolia que se não explica, um estar
ausente, uma afecção de negra catadura e de
atro humor. É o louco quem, amiúde,
demonstra tais sinais, em especial aquele
que padece de uma misteriosa doença de que
se não lobriga a causa, que parecendo num
momento estar bem, no seguinte se fecha,
expulsando tudo o que pudesse desenhar uma
ordem racional e íntegra. Quantas vezes não
é um de nós que exerce seu incessante
trabalho de minar a existência de um pobre
infeliz, e porque ninguém se apercebe da
infecta acção, presumem que são as garras da
demência, ínsitas à humana espécie, que
levaram mais um para o caminho do qual não
há retorno. É deste modo que encerram os
débeis num lugar fora da comunidade, tanto
no plano geográfico como no simbólico, pois
todos os outros têm um medo quase
supersticioso de caírem vítimas desse mesmo
mal. Felizmente para nós, nem muros altos
nem uma firme higiene mental nos conseguem
impedir de exercer o capricho de nossa
vontade, de possuirmos quem nos apraz e
nisso demonstramos a ínvia justiça de não
discriminar raça, religião ou sexo.
Também aqueles que a
vox populi comummente dizia estarem
possuídos por demoníaco influxo se
assemelham, na forma e no fundo, ao estado
por nós induzido. Reafirmo: somos
tal-qualmente íncubos, sem a mística
natureza mas capazes de provocar
esquizofrénica dissociação na personalidade
de quem escolhemos habitar. D'igual modo,
por muito conviver com os sintomas da
loucura, fui de perfilhar o meu pessoal
delírio, inventando a teratológica zoologia
que perversamente, nas horas de tédio, me
entretém. O que esperavam? Eu que aniquilei
legiões, distorcendo em cada qual o sentido
da realidade que era o seu mais firme esteio
de saúde, nunca poderia divisar outra
verdade do que uma de pesadelo, doloroso
reflexo do que fiz e fui.
Só somos
percebidos na fugacidade do entresonho, no
êxtase da batalha antes da estocada fatal ou
quando aquele que nos tem e suporta
demonstra propensão para a alucinação ou
envida por uma particular paixão religiosa.
Nenhuma dessas situações nos denuncia por
aquilo que somos e fazemos porque se
atribuem outras causas para os mesmos
efeitos. Seremos, até nisto, profissionais
da falsidade e engano, manipuladores
extraordinários, sombras semi-invisíveis na
contraluz de um plúmbeo céu. Por isso,
prosperamos com uma liberdade única entre os
seres terrenos e supraterrenos já que os
demónios integram a coorte do Demo e os
albialados anjos respondem ao comando de uma
qualquer abscôndita divindade.
A
princípio, nem se dá por minha presença.
Começo devagar a entrelaçar os meus caminhos
com os do pobre desgraçado que cai em minhas
garras. Depois, dessensibilizando a vítima,
aumento o grau de esforço a que a submeto,
filtrando cada vez mais recursos até que a
deixarei exangue. Coisa banal, doutrina por
muitos seguida. Tantos seremos que o mundo
me parece estar, em bom rigor, dividido
entre os da minha laia e os outros, esses
que nem parecem compreender que têm
necessariamente de perecer para que nós
sobrevivamos, fortes, gord’& ladinos,
enquanto os demais fenecem à míngua. Eis o
exército dos que não têm mas sabem tirar;
sorver com fúria e furor aquilo de que
carecem, sem medo e pudor, essa a verdade
essencial, fluido profundo, rio subterrâneo
ou o alicerce que sustém tudo o que vedes à
superfície. Isso que parece solar, bom, que
aquece nos serões frios não passa de um
revestimento muito fino, uma pele elástica
que recobre essa polida ossatura do mundo
que somos nós. Sim, atrevo-me a dizer que
somos o sustentáculo das mais belas ilusões
da humanidade. Como o tempo: roemos as
carnes, destruímos os fortes e os audazes,
aniquilamos toda a vaidade porque de nós
ninguém consegue escapar. Provemos à
bonançosa renovação da sociedade. Quem se
poderá dizer imune à nossa acção? E, se uns
soçobram, logo outros tomarão o seu lugar só
para que, no alto de sua majestade, caiam
como próximas vítimas, e assim
sucessivamente. Um ciclo interminável, onde
uns se precipitam para o abismo, outros se
levantam. Um vento que varre todos os
estratos, que toca todas as habitações, de
ricos, pobres, jovens e velhos, haverá lugar
para todos em nossa voragem. Esta grande
equalização, igualdade à força da nossa
predatória tenção é o serviço que prestamos,
a contrapartida que talvez vindique tão
trist’existência. É óbvio que não penso
nisto sempre que exerço esta ocupação; só de
espaço, quando há o vagar da barriga cheia,
me ponho a pensar, a inventar razões para me
justificar à luz da minha consciência ou até
além. Explico. Imaginemos que se dá o caso
de quando eu próprio finar me ver
confrontado com divina potestade que, como é
seu consabido atributo, me irá julgar e cuja
sentença de danação eternamente será
cumprida. Ora, então, quererei estar munido
de forte argumentário que me defenda, que
coloque em boa luz a minha vida terrena, que
garanta alguma defesa até pelos actos
atrozes que, quotidianamente, vou cometendo
e por mais tempo que um qualquer vulgar
mortal ousou sobreviver. Não digo que sejam
de s’abrir as portas do paraíso, ao menos
que não seja a penar no mais escuro dos
infernos. Julgais que este temor é apenas
superstição. Não sabeis a que recessos de
maldade fui capaz de descer para cometer os
meus actos vis, o mal que fiz a tanta gente
e que ninguém é capaz de contar pois são de
perder a conta. Por isso, comecei a temer a
justa retribuição de meus crimes. É certo
que foram, na íntegra, cometidos em prol de
minha sobrevivência. É tal a acção funesta
que não seria d’estranhar que, uma vez
partindo para a outra vida, houvesse portão
e juiz e castigo e que esse seria duríssimo.
Não custa nada desfiar para mim próprio o
libelo acusatório e o articulado de minha
defesa, representando como juiz e carrasco e
réu e defensor, na imaginada teia, esse
final teatro. Ou será que, existindo um deus
vingativo e austero, poderoso como ele só,
não será por isso mesmo o supremo candidato
ao exercício de minha manha, afinal, a mais
imponente carcaça, ainda que toda feita de
luz, a ser furtada de sua majestática
energia, que por se julgar tão superior é,
na verdade, a mais frágil das criaturas? Ah,
suprema impiedade, arrogância delirante de
quem como eu sabe deter o verdadeiro poder,
a cifra esconsa, jamais dita e aceite, do
real: que o mais forte é aquele que melhor
sabe tirar, aquele que tem o dom de sonegar
e não aquele que se arroga de construir e
criar; que as forças da corrupção fazem o
verdadeiro labor de moldar o universo e que
só quando o fogo celeste do derradeiro astro
s’apagar se dará por concluída a afanosa,
incessante e laboriosa tarefa que desde o
início dos tempos calhou em sorte aos
melhores da minha espécie.
Em todo o vasto e
largo mundo não há luz que não seja alimento
e que não empalideça perante alguém como eu.
Rápido, intuitivo e tenaz sei como
aproveitar a mínima falha da insuspeita
vítima, a desatenção vital que me dá a
entrada e são múltiplas as técnicas e as
manhas de meu mester: em primeiro lugar, há
que saber escolher o candidato que não
convém seja doente ou enfermiço mas
apresente todos os sinais da sã saúde;
podeis objectar que, assim, mais dificultoso
é o processo de simbiótica captura, pois
resistirá com outro vigor. Tal será, amiúde,
verdade. Porém, a riqueza do prémio suplanta
esses óbices e como é bom aceder à força
essencial de um indivíduo no pleno de sua
energia, ágil como o gato, promessa de
viagem e gozo. Todo esse alimento será meu,
por muito que custe depredar tão saboroso
troféu. Mas, que fazer? Quando ainda era
jovem e inexperiente, sofri as consequências
do doloroso engano deixando-me,
ingenuamente, fascinar pela superficial
imagem. Só um olhar subtil e
convenientemente treinado permite distinguir
um bom de um mau candidato. Sabeis que as
aparências enganam na exacta medida que um
colosso pode padecer de vícios inconfessados
que infernizam a vida deste vosso avisado
parasita e, ao invés, um quase anão, dez
reis de gente, que a maioria tenderia a
menosprezar, revela-se uma insuspeita fonte
manante de bom sustento. Ora, sucumbir ao
engano arrasta em si um amargoso dilema:
dever-se-á abandonar o hospedeiro ao
primeiro sinal de sarilhos ou tentar
aproveitar todo o investimento em tempo e
esforço? Ninguém tem o dom de facilmente
admitir o logro, e muito natural é que se
insista no erro ainda que tudo nos leve a
julgar que bem melhor seria envidar por
outro rumo. A resposta impõe-se: só os mais
suculentos merecem tal atenção. De outro
modo, é pírrico destino pois quanto mais
débil é a presa maior vertigem haverá de a
consumir, o que a enfraquece em geométrica e
trágica proporção, pondo em risco até a
pessoal sobrevivência, único requisito que,
nunca por nunca, convém menosprezar. O que
me leva à segunda regra de ouro: só a lenta
paciência é de lógica prudente. Talvez, tudo
o que seja irreversível tenha aquele timbre
da demora, talvez seja apenas por meu uso e
feitio. O cerco que ergo ao insuspeito é
subtil e eficaz, dando a doce ilusão de que
não existo nem sou. A pouco e pouco, logro
conquistar a confiança e vou só retirando
aquilo não faz falta ou o não parece fazer.
Quando aperto as malhas é tão insensível e
gradual essa angústia que natural e
docemente é o desgraçado que parece ofertar
suas mais íntimas forças. «Não», digo-lhe,
«não quero nada», «mas aceite», responde, e
após alguma ficta hesitação, lá aceito,
«obrigado», murmuro com diabólica
solicitude, «e, já agora, que vossa mercê
está, com denodo, fazendo a graça de tã
grande generosidade, isso aí que vos não faz
falta e por vos não querer ofender, também
aceito». É em delicado diálogo que conquisto
o que de mais precioso haverá,
assenhorando-me disso com o mais amoroso e
dulcíssimo amplexo que imaginar se possa.
Compreendam, nada se obtém com a agreste
violência, tudo se consegue com o melífluo
verbo, quando se tem por certo que o segredo
está em agradar e seduzir e saber preservar
a fonte do pão. Nunca matá-la à primeira
abordagem, querendo abocanhar o conjunto à
inaugural dentada, destruindo-o, porquanto
tão largo dano assim causado corresponderá a
igual padecimento em seu causador. Como já
estais adivinhando, logo daqui decorre a
terceira lei dourada que adorna minha vida:
preservai o alimento, com bons conselhos, e
usando da força se preciso for. Serei anjo
da guarda, bastião de virtudes, douto
amigo... enquanto me convier. Porque tudo o
que tem e é, a prazo, será meu e quando
promovo a sua defesa estou, no fundo, a
proteger-me. Ah, e são tantos os perigos.
Guerras e peste, ladrões de todo o género e
também outros distintos representantes de
minha estirpe. Esses são os piores. Como eu,
também sabem perscrutar as delícias que meu
alvo reserva a quem as souber aproveitar. Se
sabem que lhe dedico tanta atenção e
cuidado, logo se estabelece como verdadeiro,
na súcia onde pontifica meu exemplo, o
acerto dessa escolha pois minha fama entre
os pares é constante fonte de dissabores.
Logo que me vêem rondar o eleito, aguçam o
dente e, salivando, tentam chegar primeiro
ao prémio. Gulosos, desprezando a lege
artis deste ofício, antecipam-se, quando
podem, e não se importam de destruir a
vítima desde que me consigam afastar da
contenda. São criaturas viciosas, sem amor à
nossa arte nem respeito pelos seus maiores.
Roubam e não furtam, pilham e destroem sem o
deleite de suavemente entretecer e cultivar
a delicada e frágil trama de que vos falei.
São párias entre os párias, desprezados até
pelas mais vis almas que são todas as que
exercem meu mester. Mas, se somos como
íncubos nem por isso devemos rejeitar o
prazer que todo o bom artista retira de sua
obra. É meu destino e condição ser o que sou
mas nem por isso deixo de ter o meu brio.
Quis atingir a excelência naquilo que faço,
aperfeiçoar-me continuamente, humilde e
disposto a aprender com os erros. Mais não
posso querer.
Sei que
muitos espíritos nobres povoam o orbe.
Também compreendo que nem todas as criaturas
o bom Deus apadrinha ou, porventura, o torpe
Satã decidiu, por mor do equilíbrio das
coisas, num tempo de que já não há memória,
inventar uma categoria de seres que tem por
única função atenuar o pecado do orgulho que
tenta todos os que são grandes. É,
dess'arte, que a nossa insignificância se
torna a secreta força. Se lançássemos larga
sombra não poderíamos ter o condão de
passarmos despercebidos, de nos misturarmos
na multidão, assumindo todas as fisionomias,
dúcteis como a forma de Proteu; anónimos,
nunca pareceremos ameaça embora não consiga
imaginar pior destino do que aquele ao qual
condeno meus adorados benfeitores.
Haverá solo
mais firme, terra mais fértil do que um
suculento papalvo, delicada iguaria que não
sabe que o é? Contudo, saber furtar não
basta, saber acautelar a fonte da qual se
furta ainda não é suficiente. Há que pensar
no futuro, colocar os olhos no horizonte e
saber entender os sinais, planear d'avanço
os que serão a tombar ante esta insaciada
fome.
Vivo e sobrevivo,
por certo. Como, no entanto, poderei
saber-me feliz se sou eu que destruo a
delicada flor? Quem ergue e constrói
acrescenta uma determinada coisa ao vasto
cosmo e eu apenas subtraio, num deve & haver
deveras diabólico, malsão. Um dia, também eu
queria construir algo, saber-me pai de uma
prole liberta do constante farejar da comida
na alma alheia. Filhos plenos de
possibilidade, voltados em direcção a outra
luz que não conheci, que provavelmente não
virei a conhecer, mas com a qual sonho. É
facto que as minhas vítimas, embora de modo
não consciente, ou não fora uma relação da
mais pura e perfeita simbiose, me tiram e me
dão mais do que aquilo que sei e posso roer.
Tiram-me esse contentamento larvar da
saciedade com o seu exemplo de virtude;
ofertam um vivo desejo de aprumo moral,
ensinam-me a querer mais do que um mero e
quase vegetativo sobreviver. Despertam em
mim o impulso para uma ascese que sempre
julguei impossível de atingir mas que cada
vez mais me obceca. Narcótico como nunca vi
é essa vontade de ser diferente do que sou,
capaz de me reinventar e renascer como
doador universal de esperança, vindicando
toda a maldade que tão bem soube libertar. É
impulso de tal modo forte para atingir um
horizonte de hialina beleza que deixei,
nesse devaneio, que mais do que uma vítima
escapasse. Apiedando-me de certas pessoas
que julgue particularmente bondosas faço
perigar minha própria existência podendo vir
a cair na vertigem da inanição. Embotado o
instinto pelo escrúpulo ver-me-ia sem forças
e seria fácil deixar o torpor que antecede a
morte aproximar-se mansamente e com doçura.
Assim, o que me atormenta no plano ético,
salva-me no plano material. Sou um habitante
da penumbra pois essa é a imagem exacta de
alguém que se aproxima da luz em espírito
nunca se lhe seguindo o corpo, que se
contorce e rejubila no chiaroscuro
das suas acções. Comandado pelas entranhas,
pela chã necessidade que impõem, fui
conduzido por elas a ver muitas coisas que
me fizeram considerar que há mais na vida do
que ceifar almas em busca de sustento. Não
foi um caminho recto que me conduziu a esta
epifania. Pensei que se conseguisse
aperfeiçoar a ciência que professo, sabendo
em consequência poupar a vítima de escusado
sofrimento, demonstraria que de um mal
nasceria alguma virtude. Enganei-me. Mesmo
que saiba como dar algum prazer e consolo
enquanto sonego o hausto vital a quem a
minhas mãos padece, tal não constitui
vantagem alguma porque, ao fim e ao cabo,
sorvo a sua carcaça até restar exangue. A
minha fome de bem é radical e diametralmente
oposta à minha fome de pão. Ora, saber-me
dividido, tornou-me mais atento e, é com
pesar que vos tenho de confessar, um mais
eficaz predador. Compreender as subtilezas
de certos princípios ajudou-me a farejar
aquele que, por ser justo e probo, concentra
em si um número extraordinário de energias,
essas que por tão mais subtis, mais
deliciosas e cobiçadas serão por um vero
conhecedor. O destino, é consabido, tem uma
ironia muito própria: querer ser melhor
franqueou-me os portões para adentrar na
mais elevada maldade, aquela de aprender a
consumir aqueles que menos merecem perecer.
Como um vício a que se não consegue resistir
especializei-me na depredação dos mais
santos homens e querendo agradar-lhes,
perverto-os. Quando lhes segredo, «és bom»,
faço-os incorrer no pecado da vaidade e
aproveitando a confusão interior que isso
lhes causa vou apertando o amplexo pois
debato com eles os meandros da convicção ao
ponto de já não saberem prescindir do meu
conselho. Vêm ao meu encontro, rogam-me que
me mantenha por perto e pedem-me que entre
em seus mais íntimos recessos mentais, sem
se saberem perdidos. A que extremos de
impiedade cheguei nem quero recordar e por
isso vos não conto. Apenas seja suficiente
confessar que outrora doutos e sábios homens
terminaram farrapos de gente, ocas criaturas
sem cor que agradeceram a chegada do momento
final de libertação porque, confusamente,
ainda possuíam memória do seu antigo
esplendor. Fiquei eu, sobrevivido em minha
pessoal tragédia de sobreviver, procurando
de imediato substituto condigno para
reiniciar o doloroso processo de sedução,
perversão e mágoa. Pois, caríssimos, eis
último e final mandamento: não vos deixais
seduzir pela beleza interna daqueles que
sugais, pelo contágio malsão da sua bondade,
conspurcando a pureza do vil trabalho com o
rol das qualidades da boa cepa de quem é o
reservatório vivo e respirante das vossas
refeições.
A
minha pessoal perdição começou quando
transigi no relaxe dessa norma crucial e
entrei na viscosa duplicidade da
consciência, única coisa que sabia estar
interdita e que por causa disso ganhou o
contorno de irresistível desejo. Considero
que esse é o destino de aprazada queda que
estava geneticamente inscrito na matriz
mesma de meu ser. Explico melhor: quem
parasita o próximo habitua-se, como uma
segunda natureza, a quebrar todos os limites
que um escrúpulo são impõe; nada nos detém
porque nada nos pode deter. Com o tempo,
somos levados a procurar, com crescente
insistência, o limite último das nossas
forças, aquela barreira que nasce do perigo
máximo e que uma vez ultrapassada nos dará
aquele ganho existencial de estar para além
de toda a transcendência. É por esse
mecanismo que logramos obter a total
sincronia com a vítima, tornando-nos o
parasita ideal, aquele que por ser
indiscernível do parasitado lhe ocupa, em
todos os sentidos do possível, o lugar. Como
tudo o que atinge o zénite terá de decair,
quando se obtém esse graal de perfeição na
desdita não se poderá evitar o contágio que
tão íntima conexão implica. Tomamos de outro
a força, mas também as preocupações e
temores, também a esperança, os pensamentos
e desejos secretos e com isso a bondade e a
minúcia, o que equivale ao mais fatal
veneno. Começa-se a pensar no atroz mal que
causamos, a não querer apenas oferecer
desolação e miséria e, como um algoz que
maldiga a sua vocação de carrasco, a ter
pena de quem nos unimos. É então que começa
o inferno de resistir à necessidade por mor
de uma impossível ideia de ascese. Não
resta, por fim, senão um caminho: a morte em
prol de libertar este mundo de nossa
presença malsã. Quando disso nos apercebemos
instala-se certo pânico, um quantum
de angústia suicidária, porque uma parte de
nós ainda quer viver. Sossega-se quando
finalmente se percebe que a razão de ser de
tal impulso tem a sua origem naquele
processo de obsolescência que é a morte,
próprio de todos os que labutam debaixo do
Sol. Para que se renovem as gerações é
necessário que os velhos dêem lugar aos
novos. Isso não seria possível para a
estirpe de seres a que pertenço.
Virtualmente eternos porque é a força vital
o nosso vero alimento se não tivéssemos
inscrita essa tanatológica pulsão
existiríamos sempre e o orbe se povoaria de
nossa espécie. O que traria a derradeira
catástrofe: em breve não restariam vítimas
e, com elas desaparecidas, apenas ficaríamos
nós consumidos pela nossa imensa gula,
obrigados a parasitarmo-nos mutuamente,
hecatombe canibal que antecederia uma última
e desesperada autofágica fase antes do fim.
De tudo isso se fez este cansaço. Não
querendo já continuar, busco redenção.
Oferecer o relato da minha impiedade é
apenas o início do derradeiro caminhar em
direcção à tão amada luz. Compreendo que não
tenho nem terei jamais força para ser outra
coisa do que sou. Não saberia como existir
de outro modo e tão férreo é o instinto
parasitário que, se tentasse, tão só
lograria reproduzir o mesmo comportamento em
outro contexto. Imutável e venal não terei
outro destino que o da voluntária
dissolução.
Encontrarei, no final, uma paz que
desconheço, deixar-me-ei desvanecer com o
último parasitado de minha infeliz
biografia, solidário com ele, em amoroso e
derradeiro abraço. Ambos seremos pasto para
essoutros afins de necrófaga missão, os
vermes da terra, que tomarão por doce o
nosso corpo ressequido e comum. Quem sabe
seja também ironia última que o único acto
de desinteresse altruísta, o meu suicídio,
possa trazer uma vantagem não egoísta a
alguma criatura e que sejam essas que limpam
a carne dos ossos, tão parecidas com a minha
própria família pois também elas são a
lucrar com o infortúnio dos outros, as
grandes beneficiárias da minha desesperada
expiação?