Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . índice








João Pereira de Matos
(Lisboa, 1973).
Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.
JOÃO PEREIRA DE MATOS

O Parasita
 
  Desenho de João Pereira de Matos

Sendo minha a casa de outrem, o corpo de outrem, a alma de outrem sou a sentir que mais não tenho que este ofício de estar vivo. Como se a sobrevivência fosse tudo quanto há, pois não é de minha condição acalentar qualquer orgulho, o mais leve escrúpulo ou réstia de dignidade. Apenas sou e esse grave peso, de tão-só continuar, consome todas as minhas forças que, aliás, não são minhas mas aquelas que consigo furtar. Esse é o meu talento, o primeiro mandamento, a única fé, e muito tenho feito por isso. Pobre é aquele que sugo pois mais pobre fica. Tem de prover a si e a este vosso amigo e quando se vê esgotado, sem qualquer agradecimento de minha parte, é abandonado, já às portas da morte que alguém como eu só desiste e anda para a frente quando o seu natural hospedeiro está, em extremo, depauperado. Deixo-o morrer em paz e procuro outro mais são e viçoso. Esse que irá fenecer por mor de meu labor ainda o não sabe mas, a prazo, será aniquilado para que eu prospere e nem sei quais desgracei, apenas que foram muitos. Outrora ladinos, despreocupados e felizes são hoje sombras umbradas, cascas a quem até a luz de seus olhos s’extinguiu, arrastando a oca carcaça enquanto o miolo é roído pela persistente e tenaz voz que me diz «continua, é preciso que sejas ainda, talvez pela ordem do mundo, pelo equilíbrio da injustiça com o bem, para que a humanidade perceba que nem só de bonançosos amanhãs se faz o tempo, que há quem deprede a sã saúde, que prospere na derrota, negra raiz da miséria»; «alto lá, haja atenção ao mais mesquinho dos seres, ínfimo e em aparência sereno mas que explora todas as fraquezas que vê, todas as brechas na couraça d’alegria e esperança que anima as gentes e lhes dá errónea sensação de segurança». Nesse fervor acredito vindicar minha malsã existência.

Por vezes hesito, tento recuar; talvez haja hipótese de subsistir por mim, autónomo e construindo alicerces para uma dádiva. Logo, porém, a fome aperta. Constato que só por mim nada sou, que dependo de quem me dá as vitualhas e no instante seguinte sou a exercer a minha arte e ofício, na qual sou um mestre, incontestado senhor de mil ardis, para extrair dos outros, desavergonhado ladrão, o conjunto pleno de suas mais estimadas qualidades.

Maldigo o meu destino. Mas porquê? Todo o ser quer prosperar, ser constantemente aquilo que é. Eu, naturalmente, sendo aquilo que sou, por muito imoral que pareça, limito-me a cumprir-me. Necessito que me emprestem o seu ser e assim sou conforme a vítima. Vivo à sua sombra, sofro com seus dissabores e alegro-me com as suas vitórias não só por saber que sua fortuna me favorece mas sobretudo porque minha profissão me torna íntimo e solidário, pelo menos enquanto durar a relação simbiótica que, a contragosto, estabeleço. Uno de corpo, diverso de espírito mas ainda e sempre próximo da inefável coerência da morte, não poucas vezes sou a lamentar o precipício a que conduzo minhas vítimas: o que se faz presente na minha aziaga actuação tem algo de sinistro e é a única conduta que me está disponível; não o benefício, não o cuidado, não a saúde; sou a emprestar sintomas; como uma maleita estabeleço a vertigem de um fim funesto e torpe que ofereço a quem antes vivia liberto do mal. Se vos tentasse descrever como me vêem aqueles que depredo teria duas ordens de dificuldades: a primeira, porque estes, em rigor, me não vêem, pois apenas têm uma percepção parcial e difusa de minha presença; a segunda, porque habituado a um total egoísmo, não posso entender o que poderá consistir isto de ser-se tão completamente explorado por outro, um estranho que com perfídia se infiltrasse na minha vida com o fito de me sonegar o alento vital. Talvez possa dizer que a minha acção equivale a uma peculiar patologia, assintomática em larga medida mas não sem os seus caracteres distintivos. Uma melancolia que se não explica, um estar ausente, uma afecção de negra catadura e de atro humor. É o louco quem, amiúde, demonstra tais sinais, em especial aquele que padece de uma misteriosa doença de que se não lobriga a causa, que parecendo num momento estar bem, no seguinte se fecha, expulsando tudo o que pudesse desenhar uma ordem racional e íntegra. Quantas vezes não é um de nós que exerce seu incessante trabalho de minar a existência de um pobre infeliz, e porque ninguém se apercebe da infecta acção, presumem que são as garras da demência, ínsitas à humana espécie, que levaram mais um para o caminho do qual não há retorno. É deste modo que encerram os débeis num lugar fora da comunidade, tanto no plano geográfico como no simbólico, pois todos os outros têm um medo quase supersticioso de caírem vítimas desse mesmo mal. Felizmente para nós, nem muros altos nem uma firme higiene mental nos conseguem impedir de exercer o capricho de nossa vontade, de possuirmos quem nos apraz e nisso demonstramos a ínvia justiça de não discriminar raça, religião ou sexo.

Também aqueles que a vox populi comummente dizia estarem possuídos por demoníaco influxo se assemelham, na forma e no fundo, ao estado por nós induzido. Reafirmo: somos tal-qualmente íncubos, sem a mística natureza mas capazes de provocar esquizofrénica dissociação na personalidade de quem escolhemos habitar. D'igual modo, por muito conviver com os sintomas da loucura, fui de perfilhar o meu pessoal delírio, inventando a teratológica zoologia que perversamente, nas horas de tédio, me entretém. O que esperavam? Eu que aniquilei legiões, distorcendo em cada qual o sentido da realidade que era o seu mais firme esteio de saúde, nunca poderia divisar outra verdade do que uma de pesadelo, doloroso reflexo do que fiz e fui.

Só somos percebidos na fugacidade do entresonho, no êxtase da batalha antes da estocada fatal ou quando aquele que nos tem e suporta demonstra propensão para a alucinação ou envida por uma particular paixão religiosa. Nenhuma dessas situações nos denuncia por aquilo que somos e fazemos porque se atribuem outras causas para os mesmos efeitos. Seremos, até nisto, profissionais da falsidade e engano, manipuladores extraordinários, sombras semi-invisíveis na contraluz de um plúmbeo céu. Por isso, prosperamos com uma liberdade única entre os seres terrenos e supraterrenos já que os demónios integram a coorte do Demo e os albialados anjos respondem ao comando de uma qualquer abscôndita divindade.

 A princípio, nem se dá por minha presença. Começo devagar a entrelaçar os meus caminhos com os do pobre desgraçado que cai em minhas garras. Depois, dessensibilizando a vítima, aumento o grau de esforço a que a submeto, filtrando cada vez mais recursos até que a deixarei exangue. Coisa banal, doutrina por muitos seguida. Tantos seremos que o mundo me parece estar, em bom rigor, dividido entre os da minha laia e os outros, esses que nem parecem compreender que têm necessariamente de perecer para que nós sobrevivamos, fortes, gord’& ladinos, enquanto os demais fenecem à míngua. Eis o exército dos que não têm mas sabem tirar; sorver com fúria e furor aquilo de que carecem, sem medo e pudor, essa a verdade essencial, fluido profundo, rio subterrâneo ou o alicerce que sustém tudo o que vedes à superfície. Isso que parece solar, bom, que aquece nos serões frios não passa de um revestimento muito fino, uma pele elástica que recobre essa polida ossatura do mundo que somos nós. Sim, atrevo-me a dizer que somos o sustentáculo das mais belas ilusões da humanidade. Como o tempo: roemos as carnes, destruímos os fortes e os audazes, aniquilamos toda a vaidade porque de nós ninguém consegue escapar. Provemos à bonançosa renovação da sociedade. Quem se poderá dizer imune à nossa acção? E, se uns soçobram, logo outros tomarão o seu lugar só para que, no alto de sua majestade, caiam como próximas vítimas, e assim sucessivamente. Um ciclo interminável, onde uns se precipitam para o abismo, outros se levantam. Um vento que varre todos os estratos, que toca todas as habitações, de ricos, pobres, jovens e velhos, haverá lugar para todos em nossa voragem. Esta grande equalização, igualdade à força da nossa predatória tenção é o serviço que prestamos, a contrapartida que talvez vindique tão trist’existência. É óbvio que não penso nisto sempre que exerço esta ocupação; só de espaço, quando há o vagar da barriga cheia, me ponho a pensar, a inventar razões para me justificar à luz da minha consciência ou até além. Explico. Imaginemos que se dá o caso de quando eu próprio finar me ver confrontado com divina potestade que, como é seu consabido atributo, me irá julgar e cuja sentença de danação eternamente será cumprida. Ora, então, quererei estar munido de forte argumentário que me defenda, que coloque em boa luz a minha vida terrena, que garanta alguma defesa até pelos actos atrozes que, quotidianamente, vou cometendo e por mais tempo que um qualquer vulgar mortal ousou sobreviver. Não digo que sejam de s’abrir as portas do paraíso, ao menos que não seja a penar no mais escuro dos infernos. Julgais que este temor é apenas superstição. Não sabeis a que recessos de maldade fui capaz de descer para cometer os meus actos vis, o mal que fiz a tanta gente e que ninguém é capaz de contar pois são de perder a conta. Por isso, comecei a temer a justa retribuição de meus crimes. É certo que foram, na íntegra, cometidos em prol de minha sobrevivência. É tal a acção funesta que não seria d’estranhar que, uma vez partindo para a outra vida, houvesse portão e juiz e castigo e que esse seria duríssimo. Não custa nada desfiar para mim próprio o libelo acusatório e o articulado de minha defesa, representando como juiz e carrasco e réu e defensor, na imaginada teia, esse final teatro. Ou será que, existindo um deus vingativo e austero, poderoso como ele só, não será por isso mesmo o supremo candidato ao exercício de minha manha, afinal, a mais imponente carcaça, ainda que toda feita de luz, a ser furtada de sua majestática energia, que por se julgar tão superior é, na verdade, a mais frágil das criaturas? Ah, suprema impiedade, arrogância delirante de quem como eu sabe deter o verdadeiro poder, a cifra esconsa, jamais dita e aceite, do real: que o mais forte é aquele que melhor sabe tirar, aquele que tem o dom de sonegar e não aquele que se arroga de construir e criar; que as forças da corrupção fazem o verdadeiro labor de moldar o universo e que só quando o fogo celeste do derradeiro astro s’apagar se dará por concluída a afanosa, incessante e laboriosa tarefa que desde o início dos tempos calhou em sorte aos melhores da minha espécie.

Em todo o vasto e largo mundo não há luz que não seja alimento e que não empalideça perante alguém como eu. Rápido, intuitivo e tenaz sei como aproveitar a mínima falha da insuspeita vítima, a desatenção vital que me dá a entrada e são múltiplas as técnicas e as manhas de meu mester: em primeiro lugar, há que saber escolher o candidato que não convém seja doente ou enfermiço mas apresente todos os sinais da sã saúde; podeis objectar que, assim, mais dificultoso é o processo de simbiótica captura, pois resistirá com outro vigor. Tal será, amiúde, verdade. Porém, a riqueza do prémio suplanta esses óbices e como é bom aceder à força essencial de um indivíduo no pleno de sua energia, ágil como o gato, promessa de viagem e gozo. Todo esse alimento será meu, por muito que custe depredar tão saboroso troféu. Mas, que fazer? Quando ainda era jovem e inexperiente, sofri as consequências do doloroso engano deixando-me, ingenuamente, fascinar pela superficial imagem. Só um olhar subtil e convenientemente treinado permite distinguir um bom de um mau candidato. Sabeis que as aparências enganam na exacta medida que um colosso pode padecer de vícios inconfessados que infernizam a vida deste vosso avisado parasita e, ao invés, um quase anão, dez reis de gente, que a maioria tenderia a menosprezar, revela-se uma insuspeita fonte manante de bom sustento. Ora, sucumbir ao engano arrasta em si um amargoso dilema: dever-se-á abandonar o hospedeiro ao primeiro sinal de sarilhos ou tentar aproveitar todo o investimento em tempo e esforço? Ninguém tem o dom de facilmente admitir o logro, e muito natural é que se insista no erro ainda que tudo nos leve a julgar que bem melhor seria envidar por outro rumo. A resposta impõe-se: só os mais suculentos merecem tal atenção. De outro modo, é pírrico destino pois quanto mais débil é a presa maior vertigem haverá de a consumir, o que a enfraquece em geométrica e trágica proporção, pondo em risco até a pessoal sobrevivência, único requisito que, nunca por nunca, convém menosprezar. O que me leva à segunda regra de ouro: só a lenta paciência é de lógica prudente. Talvez, tudo o que seja irreversível tenha aquele timbre da demora, talvez seja apenas por meu uso e feitio. O cerco que ergo ao insuspeito é subtil e eficaz, dando a doce ilusão de que não existo nem sou. A pouco e pouco, logro conquistar a confiança e vou só retirando aquilo não faz falta ou o não parece fazer. Quando aperto as malhas é tão insensível e gradual essa angústia que natural e docemente é o desgraçado que parece ofertar suas mais íntimas forças. «Não», digo-lhe, «não quero nada», «mas aceite», responde, e após alguma ficta hesitação, lá aceito, «obrigado», murmuro com diabólica solicitude, «e, já agora, que vossa mercê está, com denodo, fazendo a graça de tã grande generosidade, isso aí que vos não faz falta e por vos não querer ofender, também aceito». É em delicado diálogo que conquisto o que de mais precioso haverá, assenhorando-me disso com o mais amoroso e dulcíssimo amplexo que imaginar se possa. Compreendam, nada se obtém com a agreste violência, tudo se consegue com o melífluo verbo, quando se tem por certo que o segredo está em agradar e seduzir e saber preservar a fonte do pão. Nunca matá-la à primeira abordagem, querendo abocanhar o conjunto à inaugural dentada, destruindo-o, porquanto tão largo dano assim causado corresponderá a igual padecimento em seu causador. Como já estais adivinhando, logo daqui decorre a terceira lei dourada que adorna minha vida: preservai o alimento, com bons conselhos, e usando da força se preciso for. Serei anjo da guarda, bastião de virtudes, douto amigo... enquanto me convier. Porque tudo o que tem e é, a prazo, será meu e quando promovo a sua defesa estou, no fundo, a proteger-me. Ah, e são tantos os perigos. Guerras e peste, ladrões de todo o género e também outros distintos representantes de minha estirpe. Esses são os piores. Como eu, também sabem perscrutar as delícias que meu alvo reserva a quem as souber aproveitar. Se sabem que lhe dedico tanta atenção e cuidado, logo se estabelece como verdadeiro, na súcia onde pontifica meu exemplo, o acerto dessa escolha pois minha fama entre os pares é constante fonte de dissabores. Logo que me vêem rondar o eleito, aguçam o dente e, salivando, tentam chegar primeiro ao prémio. Gulosos, desprezando a lege artis deste ofício, antecipam-se, quando podem, e não se importam de destruir a vítima desde que me consigam afastar da contenda. São criaturas viciosas, sem amor à nossa arte nem respeito pelos seus maiores. Roubam e não furtam, pilham e destroem sem o deleite de suavemente entretecer e cultivar a delicada e frágil trama de que vos falei. São párias entre os párias, desprezados até pelas mais vis almas que são todas as que exercem meu mester. Mas, se somos como íncubos nem por isso devemos rejeitar o prazer que todo o bom artista retira de sua obra. É meu destino e condição ser o que sou mas nem por isso deixo de ter o meu brio. Quis atingir a excelência naquilo que faço, aperfeiçoar-me continuamente, humilde e disposto a aprender com os erros. Mais não posso querer.

Sei que muitos espíritos nobres povoam o orbe. Também compreendo que nem todas as criaturas o bom Deus apadrinha ou, porventura, o torpe Satã decidiu, por mor do equilíbrio das coisas, num tempo de que já não há memória, inventar uma categoria de seres que tem por única função atenuar o pecado do orgulho que tenta todos os que são grandes. É, dess'arte, que a nossa insignificância se torna a secreta força. Se lançássemos larga sombra não poderíamos ter o condão de passarmos despercebidos, de nos misturarmos na multidão, assumindo todas as fisionomias, dúcteis como a forma de Proteu; anónimos, nunca pareceremos ameaça embora não consiga imaginar pior destino do que aquele ao qual condeno meus adorados benfeitores.

Haverá solo mais firme, terra mais fértil do que um suculento papalvo, delicada iguaria que não sabe que o é? Contudo, saber furtar não basta, saber acautelar a fonte da qual se furta ainda não é suficiente. Há que pensar no futuro, colocar os olhos no horizonte e saber entender os sinais, planear d'avanço os que serão a tombar ante esta insaciada fome.

Vivo e sobrevivo, por certo. Como, no entanto, poderei saber-me feliz se sou eu que destruo a delicada flor? Quem ergue e constrói acrescenta uma determinada coisa ao vasto cosmo e eu apenas subtraio, num deve & haver deveras diabólico, malsão. Um dia, também eu queria construir algo, saber-me pai de uma prole liberta do constante farejar da comida na alma alheia. Filhos plenos de possibilidade, voltados em direcção a outra luz que não conheci, que provavelmente não virei a conhecer, mas com a qual sonho. É facto que as minhas vítimas, embora de modo não consciente, ou não fora uma relação da mais pura e perfeita simbiose, me tiram e me dão mais do que aquilo que sei e posso roer. Tiram-me esse contentamento larvar da saciedade com o seu exemplo de virtude; ofertam um vivo desejo de aprumo moral, ensinam-me a querer mais do que um mero e quase vegetativo sobreviver. Despertam em mim o impulso para uma ascese que sempre julguei impossível de atingir mas que cada vez mais me obceca. Narcótico como nunca vi é essa vontade de ser diferente do que sou, capaz de me reinventar e renascer como doador universal de esperança, vindicando toda a maldade que tão bem soube libertar. É impulso de tal modo forte para atingir um horizonte de hialina beleza que deixei, nesse devaneio, que mais do que uma vítima escapasse. Apiedando-me de certas pessoas que julgue particularmente bondosas faço perigar minha própria existência podendo vir a cair na vertigem da inanição. Embotado o instinto pelo escrúpulo ver-me-ia sem forças e seria fácil deixar o torpor que antecede a morte aproximar-se mansamente e com doçura. Assim, o que me atormenta no plano ético, salva-me no plano material. Sou um habitante da penumbra pois essa é a imagem exacta de alguém que se aproxima da luz em espírito nunca se lhe seguindo o corpo, que se contorce e rejubila no chiaroscuro das suas acções. Comandado pelas entranhas, pela chã necessidade que impõem, fui conduzido por elas a ver muitas coisas que me fizeram considerar que há mais na vida do que ceifar almas em busca de sustento. Não foi um caminho recto que me conduziu a esta epifania. Pensei que se conseguisse aperfeiçoar a ciência que professo, sabendo em consequência poupar a vítima de escusado sofrimento, demonstraria que de um mal nasceria alguma virtude. Enganei-me. Mesmo que saiba como dar algum prazer e consolo enquanto sonego o hausto vital a quem a minhas mãos padece, tal não constitui vantagem alguma porque, ao fim e ao cabo, sorvo a sua carcaça até restar exangue. A minha fome de bem é radical e diametralmente oposta à minha fome de pão. Ora, saber-me dividido, tornou-me mais atento e, é com pesar que vos tenho de confessar, um mais eficaz predador. Compreender as subtilezas de certos princípios ajudou-me a farejar aquele que, por ser justo e probo, concentra em si um número extraordinário de energias, essas que por tão mais subtis, mais deliciosas e cobiçadas serão por um vero conhecedor. O destino, é consabido, tem uma ironia muito própria: querer ser melhor franqueou-me os portões para adentrar na mais elevada maldade, aquela de aprender a consumir aqueles que menos merecem perecer. Como um vício a que se não consegue resistir especializei-me na depredação dos mais santos homens e querendo agradar-lhes, perverto-os. Quando lhes segredo, «és bom», faço-os incorrer no pecado da vaidade e aproveitando a confusão interior que isso lhes causa vou apertando o amplexo pois debato com eles os meandros da convicção ao ponto de já não saberem prescindir do meu conselho. Vêm ao meu encontro, rogam-me que me mantenha por perto e pedem-me que entre em seus mais íntimos recessos mentais, sem se saberem perdidos. A que extremos de impiedade cheguei nem quero recordar e por isso vos não conto. Apenas seja suficiente confessar que outrora doutos e sábios homens terminaram farrapos de gente, ocas criaturas sem cor que agradeceram a chegada do momento final de libertação porque, confusamente, ainda possuíam memória do seu antigo esplendor. Fiquei eu, sobrevivido em minha pessoal tragédia de sobreviver, procurando de imediato substituto condigno para reiniciar o doloroso processo de sedução, perversão e mágoa. Pois, caríssimos, eis último e final mandamento: não vos deixais seduzir pela beleza interna daqueles que sugais, pelo contágio malsão da sua bondade, conspurcando a pureza do vil trabalho com o rol das qualidades da boa cepa de quem é o reservatório vivo e respirante das vossas refeições.

 A minha pessoal perdição começou quando transigi no relaxe dessa norma crucial e entrei na viscosa duplicidade da consciência, única coisa que sabia estar interdita e que por causa disso ganhou o contorno de irresistível desejo. Considero que esse é o destino de aprazada queda que estava geneticamente inscrito na matriz mesma de meu ser. Explico melhor: quem parasita o próximo habitua-se, como uma segunda natureza, a quebrar todos os limites que um escrúpulo são impõe; nada nos detém porque nada nos pode deter. Com o tempo, somos levados a procurar, com crescente insistência, o limite último das nossas forças, aquela barreira que nasce do perigo máximo e que uma vez ultrapassada nos dará aquele ganho existencial de estar para além de toda a transcendência. É por esse mecanismo que logramos obter a total sincronia com a vítima, tornando-nos o parasita ideal, aquele que por ser indiscernível do parasitado lhe ocupa, em todos os sentidos do possível, o lugar. Como tudo o que atinge o zénite terá de decair, quando se obtém esse graal de perfeição na desdita não se poderá evitar o contágio que tão íntima conexão implica. Tomamos de outro a força, mas também as preocupações e temores, também a esperança, os pensamentos e desejos secretos e com isso a bondade e a minúcia, o que equivale ao mais fatal veneno. Começa-se a pensar no atroz mal que causamos, a não querer apenas oferecer desolação e miséria e, como um algoz que maldiga a sua vocação de carrasco, a ter pena de quem nos unimos. É então que começa o inferno de resistir à necessidade por mor de uma impossível ideia de ascese. Não resta, por fim, senão um caminho: a morte em prol de libertar este mundo de nossa presença malsã. Quando disso nos apercebemos instala-se certo pânico, um quantum de angústia suicidária, porque uma parte de nós ainda quer viver. Sossega-se quando finalmente se percebe que a razão de ser de tal impulso tem a sua origem naquele processo de obsolescência que é a morte, próprio de todos os que labutam debaixo do Sol. Para que se renovem as gerações é necessário que os velhos dêem lugar aos novos. Isso não seria possível para a estirpe de seres a que pertenço. Virtualmente eternos porque é a força vital o nosso vero alimento se não tivéssemos inscrita essa tanatológica pulsão existiríamos sempre e o orbe se povoaria de nossa espécie. O que traria a derradeira catástrofe: em breve não restariam vítimas e, com elas desaparecidas, apenas ficaríamos nós consumidos pela nossa imensa gula, obrigados a parasitarmo-nos mutuamente, hecatombe canibal que antecederia uma última e desesperada autofágica fase antes do fim.

De tudo isso se fez este cansaço. Não querendo já continuar, busco redenção. Oferecer o relato da minha impiedade é apenas o início do derradeiro caminhar em direcção à tão amada luz. Compreendo que não tenho nem terei jamais força para ser outra coisa do que sou. Não saberia como existir de outro modo e tão férreo é o instinto  parasitário que, se tentasse, tão só lograria reproduzir o mesmo comportamento em outro contexto. Imutável e venal não terei outro destino que o da voluntária dissolução.  Encontrarei, no final, uma paz que desconheço, deixar-me-ei desvanecer com o último parasitado de minha infeliz biografia, solidário com ele, em amoroso e derradeiro abraço. Ambos seremos pasto para essoutros afins de necrófaga missão, os vermes da terra, que tomarão por doce o nosso corpo ressequido e comum. Quem sabe seja também ironia última que o único acto de desinteresse altruísta, o meu suicídio, possa trazer uma vantagem não egoísta a alguma criatura e que sejam essas que limpam a carne dos ossos, tão parecidas com a minha própria família pois também elas são a lucrar com o infortúnio dos outros, as grandes beneficiárias da minha desesperada expiação?

 
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ISSN 2182-147X
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Maria Estela Guedes
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