Sendo minha 
									a casa de outrem, o corpo de outrem, a alma 
									de outrem sou a sentir que mais não tenho 
									que este ofício de estar vivo. Como se a 
									sobrevivência fosse tudo quanto há, pois não 
									é de minha condição acalentar qualquer 
									orgulho, o mais leve escrúpulo ou réstia de 
									dignidade. Apenas sou e esse grave peso, de 
									tão-só continuar, consome todas as minhas 
									forças que, aliás, não são minhas mas 
									aquelas que consigo furtar. Esse é o meu 
									talento, o primeiro mandamento, a única fé, 
									e muito tenho feito por isso. Pobre é aquele 
									que sugo pois mais pobre fica. Tem de prover 
									a si e a este vosso amigo e quando se vê 
									esgotado, sem qualquer agradecimento de 
									minha parte, é abandonado, já às portas da 
									morte que alguém como eu só desiste e anda 
									para a frente quando o seu natural 
									hospedeiro está, em extremo, depauperado. 
									Deixo-o morrer em paz e procuro outro mais 
									são e viçoso. Esse que irá fenecer por mor 
									de meu labor ainda o não sabe mas, a prazo, 
									será aniquilado para que eu prospere e nem 
									sei quais desgracei, apenas que foram 
									muitos. Outrora ladinos, despreocupados e 
									felizes são hoje sombras umbradas, cascas a 
									quem até a luz de seus olhos s’extinguiu, 
									arrastando a oca carcaça enquanto o miolo é 
									roído pela persistente e tenaz voz que me 
									diz «continua, é preciso que sejas ainda, 
									talvez pela ordem do mundo, pelo equilíbrio 
									da injustiça com o bem, para que a 
									humanidade perceba que nem só de bonançosos 
									amanhãs se faz o tempo, que há quem deprede 
									a sã saúde, que prospere na derrota, negra 
									raiz da miséria»; «alto lá, haja atenção ao 
									mais mesquinho dos seres, ínfimo e em 
									aparência sereno mas que explora todas as 
									fraquezas que vê, todas as brechas na 
									couraça d’alegria e esperança que anima as 
									gentes e lhes dá errónea sensação de 
									segurança». Nesse fervor acredito vindicar 
									minha malsã existência. 
									
									
									Por vezes 
									hesito, tento recuar; talvez haja hipótese 
									de subsistir por mim, autónomo e construindo 
									alicerces para uma dádiva. Logo, porém, a 
									fome aperta. Constato que só por mim nada 
									sou, que dependo de quem me dá as vitualhas 
									e no instante seguinte sou a exercer a minha 
									arte e ofício, na qual sou um mestre, 
									incontestado senhor de mil ardis, para 
									extrair dos outros, desavergonhado ladrão, o 
									conjunto pleno de suas mais estimadas 
									qualidades.
									
									Maldigo o 
									meu destino. Mas porquê? Todo o ser quer 
									prosperar, ser constantemente aquilo que é. 
									Eu, naturalmente, sendo aquilo que sou, por 
									muito imoral que pareça, limito-me a 
									cumprir-me. Necessito que me emprestem o seu 
									ser e assim sou conforme a vítima. Vivo à 
									sua sombra, sofro com seus dissabores e 
									alegro-me com as suas vitórias não só por 
									saber que sua fortuna me favorece mas 
									sobretudo porque minha profissão me torna 
									íntimo e solidário, pelo menos enquanto 
									durar a relação simbiótica que, a 
									contragosto, estabeleço. Uno de corpo, 
									diverso de espírito mas ainda e sempre 
									próximo da inefável coerência da morte, não 
									poucas vezes sou a lamentar o precipício a 
									que conduzo minhas vítimas: o que se faz 
									presente na minha aziaga actuação tem algo 
									de sinistro e é a única conduta que me está 
									disponível; não o benefício, não o cuidado, 
									não a saúde; sou a emprestar sintomas; como 
									uma maleita estabeleço a vertigem de um fim 
									funesto e torpe que ofereço a quem antes 
									vivia liberto do mal. Se vos tentasse 
									descrever como me vêem aqueles que depredo 
									teria duas ordens de dificuldades: a 
									primeira, porque estes, em rigor, me não 
									vêem, pois apenas têm uma percepção parcial 
									e difusa de minha presença; a segunda, 
									porque habituado a um total egoísmo, não 
									posso entender o que poderá consistir isto 
									de ser-se tão completamente explorado por 
									outro, um estranho que com perfídia se 
									infiltrasse na minha vida com o fito de me 
									sonegar o alento vital. Talvez possa dizer 
									que a minha acção equivale a uma peculiar 
									patologia, assintomática em larga medida mas 
									não sem os seus caracteres distintivos. Uma 
									melancolia que se não explica, um estar 
									ausente, uma afecção de negra catadura e de 
									atro humor. É o louco quem, amiúde, 
									demonstra tais sinais, em especial aquele 
									que padece de uma misteriosa doença de que 
									se não lobriga a causa, que parecendo num 
									momento estar bem, no seguinte se fecha, 
									expulsando tudo o que pudesse desenhar uma 
									ordem racional e íntegra. Quantas vezes não 
									é um de nós que exerce seu incessante 
									trabalho de minar a existência de um pobre 
									infeliz, e porque ninguém se apercebe da 
									infecta acção, presumem que são as garras da 
									demência, ínsitas à humana espécie, que 
									levaram mais um para o caminho do qual não 
									há retorno. É deste modo que encerram os 
									débeis num lugar fora da comunidade, tanto 
									no plano geográfico como no simbólico, pois 
									todos os outros têm um medo quase 
									supersticioso de caírem vítimas desse mesmo 
									mal. Felizmente para nós, nem muros altos 
									nem uma firme higiene mental nos conseguem 
									impedir de exercer o capricho de nossa 
									vontade, de possuirmos quem nos apraz e 
									nisso demonstramos a ínvia justiça de não 
									discriminar raça, religião ou sexo. 
									
									Também aqueles que a
									vox populi comummente dizia estarem 
									possuídos por demoníaco influxo se 
									assemelham, na forma e no fundo, ao estado 
									por nós induzido. Reafirmo: somos 
									tal-qualmente íncubos, sem a mística 
									natureza mas capazes de provocar 
									esquizofrénica dissociação na personalidade 
									de quem escolhemos habitar. D'igual modo, 
									por muito conviver com os sintomas da 
									loucura, fui de perfilhar o meu pessoal 
									delírio, inventando a teratológica zoologia 
									que perversamente, nas horas de tédio, me 
									entretém. O que esperavam? Eu que aniquilei 
									legiões, distorcendo em cada qual o sentido 
									da realidade que era o seu mais firme esteio 
									de saúde, nunca poderia divisar outra 
									verdade do que uma de pesadelo, doloroso 
									reflexo do que fiz e fui.
									
									Só somos 
									percebidos na fugacidade do entresonho, no 
									êxtase da batalha antes da estocada fatal ou 
									quando aquele que nos tem e suporta 
									demonstra propensão para a alucinação ou 
									envida por uma particular paixão religiosa. 
									Nenhuma dessas situações nos denuncia por 
									aquilo que somos e fazemos porque se 
									atribuem outras causas para os mesmos 
									efeitos. Seremos, até nisto, profissionais 
									da falsidade e engano, manipuladores 
									extraordinários, sombras semi-invisíveis na 
									contraluz de um plúmbeo céu. Por isso, 
									prosperamos com uma liberdade única entre os 
									seres terrenos e supraterrenos já que os 
									demónios integram a coorte do Demo e os 
									albialados anjos respondem ao comando de uma 
									qualquer abscôndita divindade.
									
									
									 A 
									princípio, nem se dá por minha presença. 
									Começo devagar a entrelaçar os meus caminhos 
									com os do pobre desgraçado que cai em minhas 
									garras. Depois, dessensibilizando a vítima, 
									aumento o grau de esforço a que a submeto, 
									filtrando cada vez mais recursos até que a 
									deixarei exangue. Coisa banal, doutrina por 
									muitos seguida. Tantos seremos que o mundo 
									me parece estar, em bom rigor, dividido 
									entre os da minha laia e os outros, esses 
									que nem parecem compreender que têm 
									necessariamente de perecer para que nós 
									sobrevivamos, fortes, gord’& ladinos, 
									enquanto os demais fenecem à míngua. Eis o 
									exército dos que não têm mas sabem tirar; 
									sorver com fúria e furor aquilo de que 
									carecem, sem medo e pudor, essa a verdade 
									essencial, fluido profundo, rio subterrâneo 
									ou o alicerce que sustém tudo o que vedes à 
									superfície. Isso que parece solar, bom, que 
									aquece nos serões frios não passa de um 
									revestimento muito fino, uma pele elástica 
									que recobre essa polida ossatura do mundo 
									que somos nós. Sim, atrevo-me a dizer que 
									somos o sustentáculo das mais belas ilusões 
									da humanidade. Como o tempo: roemos as 
									carnes, destruímos os fortes e os audazes, 
									aniquilamos toda a vaidade porque de nós 
									ninguém consegue escapar. Provemos à 
									bonançosa renovação da sociedade. Quem se 
									poderá dizer imune à nossa acção? E, se uns 
									soçobram, logo outros tomarão o seu lugar só 
									para que, no alto de sua majestade, caiam 
									como próximas vítimas, e assim 
									sucessivamente. Um ciclo interminável, onde 
									uns se precipitam para o abismo, outros se 
									levantam. Um vento que varre todos os 
									estratos, que toca todas as habitações, de 
									ricos, pobres, jovens e velhos, haverá lugar 
									para todos em nossa voragem. Esta grande 
									equalização, igualdade à força da nossa 
									predatória tenção é o serviço que prestamos, 
									a contrapartida que talvez vindique tão 
									trist’existência. É óbvio que não penso 
									nisto sempre que exerço esta ocupação; só de 
									espaço, quando há o vagar da barriga cheia, 
									me ponho a pensar, a inventar razões para me 
									justificar à luz da minha consciência ou até 
									além. Explico. Imaginemos que se dá o caso 
									de quando eu próprio finar me ver 
									confrontado com divina potestade que, como é 
									seu consabido atributo, me irá julgar e cuja 
									sentença de danação eternamente será 
									cumprida. Ora, então, quererei estar munido 
									de forte argumentário que me defenda, que 
									coloque em boa luz a minha vida terrena, que 
									garanta alguma defesa até pelos actos 
									atrozes que, quotidianamente, vou cometendo 
									e por mais tempo que um qualquer vulgar 
									mortal ousou sobreviver. Não digo que sejam 
									de s’abrir as portas do paraíso, ao menos 
									que não seja a penar no mais escuro dos 
									infernos. Julgais que este temor é apenas 
									superstição. Não sabeis a que recessos de 
									maldade fui capaz de descer para cometer os 
									meus actos vis, o mal que fiz a tanta gente 
									e que ninguém é capaz de contar pois são de 
									perder a conta. Por isso, comecei a temer a 
									justa retribuição de meus crimes. É certo 
									que foram, na íntegra, cometidos em prol de 
									minha sobrevivência. É tal a acção funesta 
									que não seria d’estranhar que, uma vez 
									partindo para a outra vida, houvesse portão 
									e juiz e castigo e que esse seria duríssimo. 
									Não custa nada desfiar para mim próprio o 
									libelo acusatório e o articulado de minha 
									defesa, representando como juiz e carrasco e 
									réu e defensor, na imaginada teia, esse 
									final teatro. Ou será que, existindo um deus 
									vingativo e austero, poderoso como ele só, 
									não será por isso mesmo o supremo candidato 
									ao exercício de minha manha, afinal, a mais 
									imponente carcaça, ainda que toda feita de 
									luz, a ser furtada de sua majestática 
									energia, que por se julgar tão superior é, 
									na verdade, a mais frágil das criaturas? Ah, 
									suprema impiedade, arrogância delirante de 
									quem como eu sabe deter o verdadeiro poder, 
									a cifra esconsa, jamais dita e aceite, do 
									real: que o mais forte é aquele que melhor 
									sabe tirar, aquele que tem o dom de sonegar 
									e não aquele que se arroga de construir e 
									criar; que as forças da corrupção fazem o 
									verdadeiro labor de moldar o universo e que 
									só quando o fogo celeste do derradeiro astro 
									s’apagar se dará por concluída a afanosa, 
									incessante e laboriosa tarefa que desde o 
									início dos tempos calhou em sorte aos 
									melhores da minha espécie.
									Em todo o vasto e 
									largo mundo não há luz que não seja alimento 
									e que não empalideça perante alguém como eu. 
									Rápido, intuitivo e tenaz sei como 
									aproveitar a mínima falha da insuspeita 
									vítima, a desatenção vital que me dá a 
									entrada e são múltiplas as técnicas e as 
									manhas de meu mester: em primeiro lugar, há 
									que saber escolher o candidato que não 
									convém seja doente ou enfermiço mas 
									apresente todos os sinais da sã saúde; 
									podeis objectar que, assim, mais dificultoso 
									é o processo de simbiótica captura, pois 
									resistirá com outro vigor. Tal será, amiúde, 
									verdade. Porém, a riqueza do prémio suplanta 
									esses óbices e como é bom aceder à força 
									essencial de um indivíduo no pleno de sua 
									energia, ágil como o gato, promessa de 
									viagem e gozo. Todo esse alimento será meu, 
									por muito que custe depredar tão saboroso 
									troféu. Mas, que fazer? Quando ainda era 
									jovem e inexperiente, sofri as consequências 
									do doloroso engano deixando-me, 
									ingenuamente, fascinar pela superficial 
									imagem. Só um olhar subtil e 
									convenientemente treinado permite distinguir 
									um bom de um mau candidato. Sabeis que as 
									aparências enganam na exacta medida que um 
									colosso pode padecer de vícios inconfessados 
									que infernizam a vida deste vosso avisado 
									parasita e, ao invés, um quase anão, dez 
									reis de gente, que a maioria tenderia a 
									menosprezar, revela-se uma insuspeita fonte 
									manante de bom sustento. Ora, sucumbir ao 
									engano arrasta em si um amargoso dilema: 
									dever-se-á abandonar o hospedeiro ao 
									primeiro sinal de sarilhos ou tentar 
									aproveitar todo o investimento em tempo e 
									esforço? Ninguém tem o dom de facilmente 
									admitir o logro, e muito natural é que se 
									insista no erro ainda que tudo nos leve a 
									julgar que bem melhor seria envidar por 
									outro rumo. A resposta impõe-se: só os mais 
									suculentos merecem tal atenção. De outro 
									modo, é pírrico destino pois quanto mais 
									débil é a presa maior vertigem haverá de a 
									consumir, o que a enfraquece em geométrica e 
									trágica proporção, pondo em risco até a 
									pessoal sobrevivência, único requisito que, 
									nunca por nunca, convém menosprezar. O que 
									me leva à segunda regra de ouro: só a lenta 
									paciência é de lógica prudente. Talvez, tudo 
									o que seja irreversível tenha aquele timbre 
									da demora, talvez seja apenas por meu uso e 
									feitio. O cerco que ergo ao insuspeito é 
									subtil e eficaz, dando a doce ilusão de que 
									não existo nem sou. A pouco e pouco, logro 
									conquistar a confiança e vou só retirando 
									aquilo não faz falta ou o não parece fazer. 
									Quando aperto as malhas é tão insensível e 
									gradual essa angústia que natural e 
									docemente é o desgraçado que parece ofertar 
									suas mais íntimas forças. «Não», digo-lhe, 
									«não quero nada», «mas aceite», responde, e 
									após alguma ficta hesitação, lá aceito, 
									«obrigado», murmuro com diabólica 
									solicitude, «e, já agora, que vossa mercê 
									está, com denodo, fazendo a graça de tã 
									grande generosidade, isso aí que vos não faz 
									falta e por vos não querer ofender, também 
									aceito». É em delicado diálogo que conquisto 
									o que de mais precioso haverá, 
									assenhorando-me disso com o mais amoroso e 
									dulcíssimo amplexo que imaginar se possa. 
									Compreendam, nada se obtém com a agreste 
									violência, tudo se consegue com o melífluo 
									verbo, quando se tem por certo que o segredo 
									está em agradar e seduzir e saber preservar 
									a fonte do pão. Nunca matá-la à primeira 
									abordagem, querendo abocanhar o conjunto à 
									inaugural dentada, destruindo-o, porquanto 
									tão largo dano assim causado corresponderá a 
									igual padecimento em seu causador. Como já 
									estais adivinhando, logo daqui decorre a 
									terceira lei dourada que adorna minha vida: 
									preservai o alimento, com bons conselhos, e 
									usando da força se preciso for. Serei anjo 
									da guarda, bastião de virtudes, douto 
									amigo... enquanto me convier. Porque tudo o 
									que tem e é, a prazo, será meu e quando 
									promovo a sua defesa estou, no fundo, a 
									proteger-me. Ah, e são tantos os perigos. 
									Guerras e peste, ladrões de todo o género e 
									também outros distintos representantes de 
									minha estirpe. Esses são os piores. Como eu, 
									também sabem perscrutar as delícias que meu 
									alvo reserva a quem as souber aproveitar. Se 
									sabem que lhe dedico tanta atenção e 
									cuidado, logo se estabelece como verdadeiro, 
									na súcia onde pontifica meu exemplo, o 
									acerto dessa escolha pois minha fama entre 
									os pares é constante fonte de dissabores. 
									Logo que me vêem rondar o eleito, aguçam o 
									dente e, salivando, tentam chegar primeiro 
									ao prémio. Gulosos, desprezando a lege 
									artis deste ofício, antecipam-se, quando 
									podem, e não se importam de destruir a 
									vítima desde que me consigam afastar da 
									contenda. São criaturas viciosas, sem amor à 
									nossa arte nem respeito pelos seus maiores. 
									Roubam e não furtam, pilham e destroem sem o 
									deleite de suavemente entretecer e cultivar 
									a delicada e frágil trama de que vos falei. 
									São párias entre os párias, desprezados até 
									pelas mais vis almas que são todas as que 
									exercem meu mester. Mas, se somos como 
									íncubos nem por isso devemos rejeitar o 
									prazer que todo o bom artista retira de sua 
									obra. É meu destino e condição ser o que sou 
									mas nem por isso deixo de ter o meu brio. 
									Quis atingir a excelência naquilo que faço, 
									aperfeiçoar-me continuamente, humilde e 
									disposto a aprender com os erros. Mais não 
									posso querer.
									
									Sei que 
									muitos espíritos nobres povoam o orbe. 
									Também compreendo que nem todas as criaturas 
									o bom Deus apadrinha ou, porventura, o torpe 
									Satã decidiu, por mor do equilíbrio das 
									coisas, num tempo de que já não há memória, 
									inventar uma categoria de seres que tem por 
									única função atenuar o pecado do orgulho que 
									tenta todos os que são grandes. É, 
									dess'arte, que a nossa insignificância se 
									torna a secreta força. Se lançássemos larga 
									sombra não poderíamos ter o condão de 
									passarmos despercebidos, de nos misturarmos 
									na multidão, assumindo todas as fisionomias, 
									dúcteis como a forma de Proteu; anónimos, 
									nunca pareceremos ameaça embora não consiga 
									imaginar pior destino do que aquele ao qual 
									condeno meus adorados benfeitores.
									
									Haverá solo 
									mais firme, terra mais fértil do que um 
									suculento papalvo, delicada iguaria que não 
									sabe que o é? Contudo, saber furtar não 
									basta, saber acautelar a fonte da qual se 
									furta ainda não é suficiente. Há que pensar 
									no futuro, colocar os olhos no horizonte e 
									saber entender os sinais, planear d'avanço 
									os que serão a tombar ante esta insaciada 
									fome. 
									Vivo e sobrevivo, 
									por certo. Como, no entanto, poderei 
									saber-me feliz se sou eu que destruo a 
									delicada flor? Quem ergue e constrói 
									acrescenta uma determinada coisa ao vasto 
									cosmo e eu apenas subtraio, num deve & haver 
									deveras diabólico, malsão. Um dia, também eu 
									queria construir algo, saber-me pai de uma 
									prole liberta do constante farejar da comida 
									na alma alheia. Filhos plenos de 
									possibilidade, voltados em direcção a outra 
									luz que não conheci, que provavelmente não 
									virei a conhecer, mas com a qual sonho. É 
									facto que as minhas vítimas, embora de modo 
									não consciente, ou não fora uma relação da 
									mais pura e perfeita simbiose, me tiram e me 
									dão mais do que aquilo que sei e posso roer. 
									Tiram-me esse contentamento larvar da 
									saciedade com o seu exemplo de virtude; 
									ofertam um vivo desejo de aprumo moral, 
									ensinam-me a querer mais do que um mero e 
									quase vegetativo sobreviver. Despertam em 
									mim o impulso para uma ascese que sempre 
									julguei impossível de atingir mas que cada 
									vez mais me obceca. Narcótico como nunca vi 
									é essa vontade de ser diferente do que sou, 
									capaz de me reinventar e renascer como 
									doador universal de esperança, vindicando 
									toda a maldade que tão bem soube libertar. É 
									impulso de tal modo forte para atingir um 
									horizonte de hialina beleza que deixei, 
									nesse devaneio, que mais do que uma vítima 
									escapasse. Apiedando-me de certas pessoas 
									que julgue particularmente bondosas faço 
									perigar minha própria existência podendo vir 
									a cair na vertigem da inanição. Embotado o 
									instinto pelo escrúpulo ver-me-ia sem forças 
									e seria fácil deixar o torpor que antecede a 
									morte aproximar-se mansamente e com doçura. 
									Assim, o que me atormenta no plano ético, 
									salva-me no plano material. Sou um habitante 
									da penumbra pois essa é a imagem exacta de 
									alguém que se aproxima da luz em espírito 
									nunca se lhe seguindo o corpo, que se 
									contorce e rejubila no chiaroscuro 
									das suas acções. Comandado pelas entranhas, 
									pela chã necessidade que impõem, fui 
									conduzido por elas a ver muitas coisas que 
									me fizeram considerar que há mais na vida do 
									que ceifar almas em busca de sustento. Não 
									foi um caminho recto que me conduziu a esta 
									epifania. Pensei que se conseguisse 
									aperfeiçoar a ciência que professo, sabendo 
									em consequência poupar a vítima de escusado 
									sofrimento, demonstraria que de um mal 
									nasceria alguma virtude. Enganei-me. Mesmo 
									que saiba como dar algum prazer e consolo 
									enquanto sonego o hausto vital a quem a 
									minhas mãos padece, tal não constitui 
									vantagem alguma porque, ao fim e ao cabo, 
									sorvo a sua carcaça até restar exangue. A 
									minha fome de bem é radical e diametralmente 
									oposta à minha fome de pão. Ora, saber-me 
									dividido, tornou-me mais atento e, é com 
									pesar que vos tenho de confessar, um mais 
									eficaz predador. Compreender as subtilezas 
									de certos princípios ajudou-me a farejar 
									aquele que, por ser justo e probo, concentra 
									em si um número extraordinário de energias, 
									essas que por tão mais subtis, mais 
									deliciosas e cobiçadas serão por um vero 
									conhecedor. O destino, é consabido, tem uma 
									ironia muito própria: querer ser melhor 
									franqueou-me os portões para adentrar na 
									mais elevada maldade, aquela de aprender a 
									consumir aqueles que menos merecem perecer. 
									Como um vício a que se não consegue resistir 
									especializei-me na depredação dos mais 
									santos homens e querendo agradar-lhes, 
									perverto-os. Quando lhes segredo, «és bom», 
									faço-os incorrer no pecado da vaidade e 
									aproveitando a confusão interior que isso 
									lhes causa vou apertando o amplexo pois 
									debato com eles os meandros da convicção ao 
									ponto de já não saberem prescindir do meu 
									conselho. Vêm ao meu encontro, rogam-me que 
									me mantenha por perto e pedem-me que entre 
									em seus mais íntimos recessos mentais, sem 
									se saberem perdidos. A que extremos de 
									impiedade cheguei nem quero recordar e por 
									isso vos não conto. Apenas seja suficiente 
									confessar que outrora doutos e sábios homens 
									terminaram farrapos de gente, ocas criaturas 
									sem cor que agradeceram a chegada do momento 
									final de libertação porque, confusamente, 
									ainda possuíam memória do seu antigo 
									esplendor. Fiquei eu, sobrevivido em minha 
									pessoal tragédia de sobreviver, procurando 
									de imediato substituto condigno para 
									reiniciar o doloroso processo de sedução, 
									perversão e mágoa. Pois, caríssimos, eis 
									último e final mandamento: não vos deixais 
									seduzir pela beleza interna daqueles que 
									sugais, pelo contágio malsão da sua bondade, 
									conspurcando a pureza do vil trabalho com o 
									rol das qualidades da boa cepa de quem é o 
									reservatório vivo e respirante das vossas 
									refeições.
									
									
									 A 
									minha pessoal perdição começou quando 
									transigi no relaxe dessa norma crucial e 
									entrei na viscosa duplicidade da 
									consciência, única coisa que sabia estar 
									interdita e que por causa disso ganhou o 
									contorno de irresistível desejo. Considero 
									que esse é o destino de aprazada queda que 
									estava geneticamente inscrito na matriz 
									mesma de meu ser. Explico melhor: quem 
									parasita o próximo habitua-se, como uma 
									segunda natureza, a quebrar todos os limites 
									que um escrúpulo são impõe; nada nos detém 
									porque nada nos pode deter. Com o tempo, 
									somos levados a procurar, com crescente 
									insistência, o limite último das nossas 
									forças, aquela barreira que nasce do perigo 
									máximo e que uma vez ultrapassada nos dará 
									aquele ganho existencial de estar para além 
									de toda a transcendência. É por esse 
									mecanismo que logramos obter a total 
									sincronia com a vítima, tornando-nos o 
									parasita ideal, aquele que por ser 
									indiscernível do parasitado lhe ocupa, em 
									todos os sentidos do possível, o lugar. Como 
									tudo o que atinge o zénite terá de decair, 
									quando se obtém esse graal de perfeição na 
									desdita não se poderá evitar o contágio que 
									tão íntima conexão implica. Tomamos de outro 
									a força, mas também as preocupações e 
									temores, também a esperança, os pensamentos 
									e desejos secretos e com isso a bondade e a 
									minúcia, o que equivale ao mais fatal 
									veneno. Começa-se a pensar no atroz mal que 
									causamos, a não querer apenas oferecer 
									desolação e miséria e, como um algoz que 
									maldiga a sua vocação de carrasco, a ter 
									pena de quem nos unimos. É então que começa 
									o inferno de resistir à necessidade por mor 
									de uma impossível ideia de ascese. Não 
									resta, por fim, senão um caminho: a morte em 
									prol de libertar este mundo de nossa 
									presença malsã. Quando disso nos apercebemos 
									instala-se certo pânico, um quantum 
									de angústia suicidária, porque uma parte de 
									nós ainda quer viver. Sossega-se quando 
									finalmente se percebe que a razão de ser de 
									tal impulso tem a sua origem naquele 
									processo de obsolescência que é a morte, 
									próprio de todos os que labutam debaixo do 
									Sol. Para que se renovem as gerações é 
									necessário que os velhos dêem lugar aos 
									novos. Isso não seria possível para a 
									estirpe de seres a que pertenço. 
									Virtualmente eternos porque é a força vital 
									o nosso vero alimento se não tivéssemos 
									inscrita essa tanatológica pulsão 
									existiríamos sempre e o orbe se povoaria de 
									nossa espécie. O que traria a derradeira 
									catástrofe: em breve não restariam vítimas 
									e, com elas desaparecidas, apenas ficaríamos 
									nós consumidos pela nossa imensa gula, 
									obrigados a parasitarmo-nos mutuamente, 
									hecatombe canibal que antecederia uma última 
									e desesperada autofágica fase antes do fim.
									
									
									De tudo isso se fez este cansaço. Não 
									querendo já continuar, busco redenção. 
									Oferecer o relato da minha impiedade é 
									apenas o início do derradeiro caminhar em 
									direcção à tão amada luz. Compreendo que não 
									tenho nem terei jamais força para ser outra 
									coisa do que sou. Não saberia como existir 
									de outro modo e tão férreo é o instinto 
									parasitário que, se tentasse, tão só 
									lograria reproduzir o mesmo comportamento em 
									outro contexto. Imutável e venal não terei 
									outro destino que o da voluntária 
									dissolução. 
									Encontrarei, no final, uma paz que 
									desconheço, deixar-me-ei desvanecer com o 
									último parasitado de minha infeliz 
									biografia, solidário com ele, em amoroso e 
									derradeiro abraço. Ambos seremos pasto para 
									essoutros afins de necrófaga missão, os 
									vermes da terra, que tomarão por doce o 
									nosso corpo ressequido e comum. Quem sabe 
									seja também ironia última que o único acto 
									de desinteresse altruísta, o meu suicídio, 
									possa trazer uma vantagem não egoísta a 
									alguma criatura e que sejam essas que limpam 
									a carne dos ossos, tão parecidas com a minha 
									própria família pois também elas são a 
									lucrar com o infortúnio dos outros, as 
									grandes beneficiárias da minha desesperada 
									expiação?