Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . index




 

 

Mario Meléndez (Linares, Chile, 1971) publicou Apuntes para una leyendaVuelo subterráneoEl circo de papelLa muerte tiene los días contados e Esperando a Perec, para além de ter colaborado em revistas e antologias, nacionais e estrangeiras. a sua poesia foi já traduzida em várias línguas. Actualmente vive em Itália, tendo recebido, em 2013, a medalha da   Fundación Internacional don Luigi di Liegro. Uma selecção dos seus poemas acaba de aparecer na revista Poesia de Nicola Crocetti. É, unanimemente, considerado como uma voz importante da poesia latino-americana.

MARIO MELÉNDEZ

Arte poética
Tradução de Francisco Craveiro

Para maior segurança

Venham ver a minha poesia

não é feita de materiais leves

vai aguentar o inverno perfeitamente

e no verão refrescará

corpos e mentes

Entre  os versos há traves fortes

há barrotes que escoram as minhas palavras

E caso a chuva deseje entrar

porei os meus sonhos no tecto

tapando as infiltrações

com a minha dor

Recordações do futuro

A minha irmã acordou-me muito cedo

esta manhã e disse-me

“Levanta-te, tens de vir cá ver isto

o mar encheu-se de estrelas”

Maravilhado com tal  revelação

vesti-me à pressa pensando

“Se o mar se encheu de estrelas

tenho de  meter-me no primeiro avião

e apanhar todos os peixes do céu”

Cautelas de última hora

Quando me enterrarem

tenho de ter cuidado com os vermes

o mais certo

é falarem mal de mim

cuspirem nos meus poemas

e mijarem sobre as flores recentes

que enfeitem a minha sepultura

podendo chegar ao ponto

de até me devorarem os ossos

me arrancarem as tripas

ou  cúmulo da injustiça

me roubarem os dentes de ouro

tudo porque durante a vida

nunca escrevi sobre eles

Revelações

No leito vazio de Deus

todas as putas são virgens

pela última vez

Arte poética

Uma vaca pasta na nossa memória

escorre-lhe o sangue das tetas

um tiro  assassinou a paisagem

 

A vaca continua com a sua rotina

o  tédio afastado pela cauda

a paisagem renasce em câmara lenta

 

A vaca sai da paisagem

ouvem-se os mugidos ainda

a nossa memória  pasta agora

nessa  grande solidão

 

A paisagem deixa a nossa memória

as palavras mudam de nome

ficamos a chorar

sobre o branco da página

 

Pasta agora a vaca no vazio

montadas nela as palavras

a linguagem a troçar de nós

Voltarei um dia aos teus olhos

Voltarei um dia aos teus olhos

e começarei outra vez

voltarei com um som oco de metal

e sol molhado

entre os papéis do tempo procurarei

o teu corpo verde e os teus cabelos de uva

coroar-te-ei no silencio com a minha boca

e as minhas mãos intermináveis

Voltarei por ti e pelo teu  sangue estrelado

vendo a tarde passar como uma sombra antiga

algo se quebrará lá em cima e não seremos nós

algo arderá  repentinamente com o rumor  dos teus lençóis

E voltarei mais vivo, mais puro, mais faminto

e voltarei voando e  rasgando penas

farei tudo por ti, em silêncio

que  até os galos prolongarão a noite

ao verem-te despida

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