Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . index











Maria Estela Guedes. Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Dirige coleções na Apenas Livros e faz parte do Conselho Editorial em www.incomunidade.com. Tem umas dezenas de títulos publicados.   
Foto de José Emílio-Nelson
MARIA ESTELA GUEDES

Garcia de Resende, criador do mito de Pedro e Inês

Trovas à morte Inês de Castro

Texto publicado originalmente em www.incomunidade.com
 

Os amores de D. Pedro I (1320-1367), rei de Portugal, e de D. Inês de Castro – La reine morte, no título de Henry de Montherlant – são o nosso tema mais abundantemente tratado, quer por autores portugueses, quer estrangeiros, seja em teatro, romance, poesia, cinema ou ópera. O episódio é um dos mais conhecidos d’ Os Lusíadas, e antes de Camões foi arquitetado por Garcia de Resende (1470-1536), um típico humanista, dividido por artes várias: arquiteto, compositor, cantor, poeta, cronista de D. João II, secretário deste e de D. Manuel I. O que porém o celebrizou foi a compilação de oito centenas de poemas em português (alguns em espanhol) dos séculos XV e XVI, cujo título traz anexado o seu nome. Andrée Crabée Rocha (1) chama a atenção para este facto inédito, revelador de justiça, ao valorizar-se com o nome do compilador um título que espelha a produção poética da sua época. Uma coletânea não tem de ser uma seleta, sim um bom espelho. Ora cerca de oitocentos textos e de quase trezentos autores, que cobrem cerca de cem anos, são muitíssimo representativos do século XV e primeiros anos do seguinte. O Cancioneiro geral de Garcia de Resende, com primeira edição em 1516, inclui autores como Diogo Brandão, Duarte de Brito, Henrique da Mota, João Roiz de Castelo Branco, Jorge de Aguiar, Francisco da Silveira, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro e o próprio Garcia de Resende.

Peça mais importante do Cancioneiro Geral, as famosas Trovas à morte de Inês de Castro, de Garcia de Resende, foram conhecidas de todos os autores portugueses subsequentes, como Camões, António Ferreira, Bocage, António Cândido Franco e eu mesma, e o leitor pode agora recordá-las ou apreciá-las pela primeira vez.

As Trovas à morte de Inês de Castro e um poema de Henrique da Mota, Visão de dona Inês, são os textos mais antigos que se conhecem nesta data sobre os amores de Pedro e Inês. Só séculos depois reconhecido, Henrique da Mota, um dos autores compilados no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, é o responsável pelo simbolismo aquático em que perdura a história de Inês em obras mais recentes. Nada como seguir Maria Leonor Machado de Sousa (2) para verificarmos a origem e amplitude destes trágicos amores no caso português. Caso que realmente é um mito, uma narrativa exemplar anterior, na qual Garcia de Resende e Henrique da Mota encaixam Pedro e Inês.

Uma das reações à minha peça A Boba (3),  encenada por Carlos Avilez no Teatro Experimental de Cascais, foi a de ela destruir o mito destes amores. Pelo contrário: não só o mito é indestrutível como, ao revelar algum pouco do quase nada que a historiografia regista sobre o assunto, deixei claro que se tratava de uma obra literária coletiva que se tinha vindo a avolumar ao longo dos séculos. A minha peça é uma manta de retalhos, construída com citações de autores vários que trataram o tema de Pedro e Inês. Donde, se algo desconstruí, foi a ideia de que essa história tivesse fundamento real. Não tem, é um verdadeiro mito, à espera de psicanalista para nos diagnosticar.

Mito porque a ficção se ultrapassa a si mesma para cristalizar em narrativa como a de Édipo, Laio e Jocasta, personagens que vieram a constituir núcleos simbólicos poderosos na obra psicanalítica de Freud. O drama da história inesiana não nasce com os amores de Pedro e Inês, perde-se em tempos anteriores a eles, no espaço ignoto e obscuro do inconsciente. Tanto isto é assim que, antes de deixarmos os leitores com as Trovas à morte de Inês de Castro, lhe pedimos que passe os olhos por um extrato da Crónica de Castela, trazido à colação por Maria do Rosário Ferreira: 

«Et estando y o infante pagousse moyto de hüa donzela et oluydou a rreyna sua mulher... en guisa que o nõ podiam partir dela por nemhũa maneyra, nē se pagaua tato de nēhũa cousa, ...assy que sse nõ nēbraua de sy nē do... rreyno nen doutra cousa. Et os omes boos ouuerõ seu acordo como posessem rrecado ēno rreyno, por rrazõ daquelle feyto tam mao et tam sem Deus. Et acordarõ que a matassem. Et cõ este acordo entrarõ ala... et mentre os hũus falarõ cõ el rey, os outros entrarõ hu estaua aquela donzela, et acharõna en muy nobles estrados et degolarõ ela. ...E desy forõ sua carreyra. Et o infante, quando o soube, foy muy coytado, tanto que nõ soube que fazer, tã grande era o amor que dela auya.»  (in Cap. 491 da Tra. gal.-port. da Cr. de Castela (ed. Lorenzo, pp.716-17).

 

Dou a palavra a Maria do Rosário Ferreira, autora do artigo em que faz a transcrição anterior: «Todos os actores canónicos do drama inesiano figuram no quadro acima apresentado: a amada, o amante, os diligentes algozes, o rei. Aí se referem igualmente as circunstâncias de todos recordadas, os algozes que se introduzem na própria câmara da amada na ausência do amante, as conversações à margem com o rei, bem como o reconhecido motivo da morte: o interesse do reino, que o desviado amante, todo absorvido no seu amor, mais do que negligenciava, esquecia. Em tudo isto, há apenas um senão: é que Inês de Castro foi morta a sete de Janeiro de 1355, e a página cronística aqui recordada estava já escrita meio século antes.»

Cinquenta anos antes da morte de Inês, já a sua história estava escrita, mas antes de escrita cinquenta anos antes, já ela era conhecida pelo menos na tradição oral, ou não teria sido ficcionalmente aplicada à “história de Afonso VIII de Castela e uma sua anónima concubina que a História acolheu sob a designação de Judia de Toledo”, e cito de novo Maria do Rosário Ferreira.

Por consequência, esse núcleo dramático do mito em que vemos um rei mandar matar a amante do príncipe herdeiro, por este descurar por ela as coisas do reino, é o que surge nas Trovas à morte de Inês de Castro de Garcia de Resende, e na sequência dará o tom a um conto a que cada autor acrescenta seu ponto. O mais aparatoso dos pontos acrescentados é toda a sequência do cortejo, coroação da rainha morta e beija-mão ao cadáver (seis anos após a morte da putrefacta senhora).

Que D. Pedro I era cruel, isso, creio que sim, que foi homem de grandes paixões, e estou a lembrar-me da pena aplicada a Afonso Madeira, seu companheiro de jogos e de caça. Segundo Fernão Lopes, o príncipe D. Pedro amava Afonso Madeira mais do que  ele, cronista, podia dizer. Qual foi a pena? Mandou capá-lo na praça pública, porque o rapaz se envolvera com uma mulher casada. Enfim, porque o traíra.

Eu sou a favor do mito, e também a favor de que não o tomemos por coisa acontecida no espaço social da vida, de modo a não lamentarmos, como familiares nossos, nos últimos momentos de vida: “É tudo mentira!”. Por isso, fiquemos com a verdade de Garcia de Resende, primeiro arquiteto da narrativa, mas fiquemos na consciência clara de ser ela a primeira pedra num dos mais impressionantes edifícios da literatura portuguesa e da arte em termos globais.

 

Trovas que Garcia de Resende fez à morte de D. Inês de Castro, que el-rei D. Afonso, o Quarto, de Portugal, matou em Coimbra por o príncipe D. Pedro, seu filho, a ter como mulher, e, polo bem que lhe queria, nam queria casar. Enderençadas às damas.

 

 Senhoras, s'algum senhor

 vos quiser bem ou servir,

 quem tomar tal servidor,

 eu lhe quero descobrir

 o galardam do amor.

 Por Sua Mercê saber

 o que deve de fazer

 vej'o que fez esta dama,

 que de si vos dará fama,

 s'estas trovas quereis ler.

 

 Fala D. Inês

 

 Qual será o coraçam

 tam cru e sem piadade,

 que lhe nam cause paixam

 úa tam gram crueldade

 e morte tam sem rezam?

 Triste de mim, inocente,

 que, por ter muito fervente

 lealdade, fé, amor

 ó príncepe, meu senhor,

 me mataram cruamente!

 

 A minha desaventura

 nam contente d'acabar-me,

 por me dar maior tristura

 me foi pôr em tant'altura,

 para d'alto derribar-me;

 que, se me matara alguém,

 antes de ter tanto bem,

 em tais chamas nam ardera,

 pai, filhos nam conhecera,

 nem me chorara ninguém.

 

 Eu era moça, menina,

 per nome Dona Inês

 de Castro, e de tal doutrina

 e vertudes, qu'era dina

 de meu mal ser o revés.

 Vivia sem me lembrar

 que paixam podia dar

 nem dá-la ninguém a mim:

 foi-m'o príncepe olhar,

 por seu nojo e minha fim.

 

Começou-m'a desejar,

 trabalhou por me servir;

 Fortuna foi ordenar

 dous corações conformar

 a úa vontade vir.

 Conheceu-me, conheci-o,

 quis-me bem e eu a ele,

 perdeu-me, também perdi-o;

 nunca té morte foi frio

 o bem que, triste, pus nele.

 

 Dei-lhe minha liberdade,

 nam senti perda de fama;

 pus nele minha verdade

 quis fazer sua vontade,

 sendo mui fremosa dama.

 Por m'estas obras pagar

 nunca jamais quis casar;

 polo qual aconselhado

 foi el-rei qu'era forçado,

 polo seu, de me matar.

 

 Estava mui acatada,

 como princesa servida,

 em meus paços mui honrada,

 de tudo mui abastada,

 de meu senhor mui querida.

 Estando mui de vagar,

 bem fora de tal cuidar,

 em Coimbra, d'assessego,

 polos campos de Mondego

 cavaleiros vi somar.

 

 Como as cousas qu'ham de ser

 logo dam no coraçam,

 comecei entrestecer

 e comigo só dizer:

 "Estes homens donde iram?

 E tanto que preguntei,

 soube logo qu'era el-rei.

 Quando o vi tam apressado

 meu coraçam trespassado

 foi, que nunca mais falei.

 

 

 E quando vi que decia,

 saí à porta da sala,

 devinhando o que queria;

 com gram choro e cortesia

 lhe fiz úa triste fala.

 Meus filhos pus de redor

 de mim com gram homildade;

 mui cortada de temor

 lhe disse: - “Havei, senhor,

 desta triste piadade!"

 

 "Nam possa mais a paixam

 que o que deveis fazer;

 metei nisso bem a mam,

 qu'é de fraco coraçam

 sem porquê matar molher;

 quanto mais a mim, que dam

 culpa nam sendo rezam,

 por ser mãi dos inocentes

 qu'ante vós estam presentes,

 os quais vossos netos sam.

 

 "E que tem tam pouca idade

 que, se não forem criados

 de mim só, com saudade

 e sua gram orfindade

 morrerám desemparados.

 Olhe bem quanta crueza

 fará nisto Voss'Alteza:

 e também, senhor, olhai,

 pois do príncepe sois pai,

 nam lhe deis tanta tristeza.

 

 "Lembre-vos o grand'amor

 que me vosso filho tem,

 e que sentirá gram dor

 morrer-lhe tal servidor,

 por lhe querer grande bem.

 Que, s'algum erro fizera,

 fora bem que padecera

 e qu'este filhos ficaram

 órfãos tristes e buscaram

 quem deles paixam houvera;

 

 "Mas, pois eu nunca errei

 e sempre mereci mais,

 deveis, poderoso rei,

 nam quebrantar vossa lei,

 que, se moiro, quebrantais.

 Usai mais de piadade

 que de rigor nem vontade,

 havei dó, senhor, de mim

 nam me deis tam triste fim,

 pois que nunca fiz maldade!"

 

 El-rei, vendo como estava,

 houve de mim compaixam

 e viu o que nam oulhava:

 qu'eu a ele nam errava

 nem fizera traiçam.

 E vendo quam de verdade

 tive amor e lealdade

 ó príncepe, cuja sam,

 pôde mais a piadade

 que a determinaçam;

 

 Que, se m'ele defendera

 ca seu filho não amasse,

 e lh'eu nam obedecera,

 entam com rezam podera

 dar m'a morte qu'ordenasse;

 mas vendo que nenhú'hora,

 dês que naci até'gora,

 nunca nisso me falou,

 quando se disto lembrou,

 foi-se pola porta fora,

 

 Com seu rosto lagrimoso,

 co propósito mudado,

 muito triste, mui cuidoso,

 como rei mui piadoso,

 mui cristam e esforçado.

 Um daqueles que trazia

 consigo na companhia,

 cavaleiro desalmado,

 de trás dele, mui irado,

 estas palavras dezia:

 

 - "Senhor, vossa piadade

 é dina de reprender,

 pois que, sem necessidade,

 mudaram vossa vontade

 lágrimas d’ua molher.

 E quereis qu'abarregado,

 com filhos, como casado,

 estê, senhor, vosso filho?

 de vós mais me maravilho

 que dele, qu'é namorado.

 

 "Se a logo nam matais,

 nam sereis nunca temido

 nem farám o que mandais,

 pois tam cedo vos mudais,

 do conselho qu'era havido.

 Olhai quam justa querela

 tendes, pois, por amor dela,

 vosso filho quer estar

 sem casar e nos quer dar

 muita guerra com Castela.

 

 "Com sua morte escusareis

 muitas mortes, muitos danos;

 vós, senhor, descansareis,

 e a vós e a nós dareis

 paz para duzentos anos.

 O príncepe casará,

 filhos de bençam terá,

 será fora de pecado;

 qu'agora seja anojado,

 amenhã lh'esquecerá."

 

 E ouvindo seu dizer,

 el-rei ficou mui torvado

 por se em tais estremos ver,

 e que havia de fazer

 ou um ou outro, forçado.

 Desejava dar-me vida,

 por lhe nam ter merecida

 a morte nem nenhum mal;

 sentia pena mortal

 por ter feito tal partida.

 

 E vendo que se lhe dava

 a ele tod'esta culpa,

 e que tanto o apertava,

 disse àquele que bradava:

 - "Minha tençam me desculpa.

 Se o vós quereis fazer,

 fazei-o sem mo dizer,

 qu'eu nisso nam mando nada,

 nem vejo essa coitada

 por que deva de morrer."

 

 Fim

 

 Dous cavaleiros irosos,

 que tais palavras lh'ouviram,

 mui crus e nam piadosos,

 perversos, desamorosos,

 contra mim rijo se viram;

 com as espadas na mam

 m'atravessam o coraçam,

 a confissam me tolheram:

 este é o galardam

 que meus amores me deram.

 

NOTAS

(1) Andrée Crabée Rocha, Garcia de Resende e o Cancioneiro Geral. Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, Biblioteca Breve, 1979.

(2)   Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de Castro na Literatura Portuguesa. Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, Biblioteca Breve, 1984.

(3)   Maria Estela Guedes, A Boba. Lisboa, Apenas Livros, 2007.

(4)   Maria do Rosário Ferreira, “Onde está Inês posta em sossego?“. Comunicação ao VI Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Coimbra, Quinta das Lágrimas, Outubro de 2006.

 
 
 
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