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MORRESTE, mas não morreste de todo:
a boca ficou-te ao cimo da água
morena e gotejante
sei deveras que estás morto
mas estás vivo dentro da tua morte
és como o homem que passeia por sobre as águas
com peixes nas mãos acesas
candeias que deixam ver o adro negro
das palavras
morreste e sinto a tua morte viva
nas cadências do meu choro
quando ajoelhada perante o teu cadáver
amo-te! amo-te!
como um cordão umbilical
a missiva da paixão dura no sangue ameno
e o meu sexo abre-se orvalhante
ao meio das noites
sob sumptuosos lençóis vive nele
torrencial,
a tua morte.
***
TRAZEM à altura das goelas um lanho
A veloz ira do amor pelos poetas
Tão cantado
O animal sepulcral sobrevivendo
Lá dentro
Uma cantiga que sobe nas pedras
Lunares das suas veias abertas
É um belo talho, aquele,
O majestoso golpe de navalha
De algum demónio canino
Amam, de facto, aquele lanho
Venéreo e abscôntico
Como se a existência se explicasse
Por ali
Amam:
Como quando o céu e a terra
S’abatem no écran das vísceras
E as máquinas do pavor amanhecem
Felizes.
***
A CASA era branca. de pedra e cal.
na porta pendia uma gloriosa sineta.
as fechaduras eram de ouro vermelho.
lá dentro: ardiam os tachos de barro
e as panelas, olores profundos,
talvez absolutos, de um tempo habitável.
mais tarde, junto ao fogo, as feras
da noite rugiam; pacíficas, rugiam.
e a mulher deitava-se na horizontal,
flutuante abria o sexo,
e observava o homem por entre os seus
mamilos túmidos e sísmicos.
então, a forja da carne inflamava - se
era o regresso à fonte.
***
e a água o nosso maior
destino
(Isabel Mendes Ferreira)
la noche de ojos de agua en el campo dormido,
está en tus ojos de caballo que tiembla,
está en tus ojos de agua secreta
(Octavio Paz)
ERGO-ME da água. do excesso das fontes.
ergo-me sobre a água. ardo. ando.
pegadas de uma fabulosa podridão.
os meu passos.
ando na noite da água. ouço os sonhos
dos cavalos, no fundo da água,
os teus olhos.
cego de luz,
atravesso as portas e as janelas fechadas,
os espaços interiores e carnívoros,
as grandes falésias, as vozes dos mortos
no destino da água.
sou uma amorosa mutilação.
o carrasco e a vítima na corda da água.
e deste modo: emudeço.
e deste modo: permaneço. no cântico.
***
O DESEPERO dos cães nocturnos
bate-lhe nos ventrículos
assim aprende a humilhação
dos dedos amputados
a contínua indigência do terror na alma
humedecida.
*
Como uma devoção
o teu rosto, fechado, no escuro.
ainda: a sede da loucura.
habitamos do tempo: as gloriosas traições.
(In: Caravagiando)
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