III
Assim foi narrada pelos
evangelistas Lucas e Mateus a enigmática
concepção Daquele que se tornaria um dos maiores
personagens da história da humanidade e ícone da
mais destacada matriz religiosa dos últimos dois
mil anos: Jesus de Nazaré.
Mas não só Sua
concepção.
Suas pregações
alicerçadas na controvertida mensagem
apocalíptica, que anunciava o fim dos tempos e a
chegada do reino de Deus, Seus milagres,
atestados vivos da fiel presença do Deus
invisível agindo entre as pessoas e também Sua
morte, e ressurreição ao terceiro dia, tudo
somado à Sua gloriosa elevação, em nada,
são menos instigantes.
Os evangelhos são as
principais fontes testemunhais que nos permitem
acessar tais informações. "Ninguém desconhece
que entre todas as Escrituras, mesmo do Novo
Testamento, os Evangelhos gozam de merecida
primazia, uma vez que constituem o principal
testemunho sobre a vida e a doutrina do Verbo
Encarnado, nosso Salvador."[i]
Assim nos ensina um dos principais documentos do
Concílio Vaticano II, a Constituição Dogmática
Dei Verbum
sobre a Revelação Divina.
Esta afirmação assume
uma certa universalidade, embora nem sempre
pacífica, à medida que dela comungam tanto
estudiosos comprometidos com a fé, como aqueles
que não têm vínculo algum com ela. Afinal, se é
verdade que os evangelhos são a principal fonte
para conhecermos a vida e a doutrina de
Jesus, o Cristo, não é menos verdade que os
mesmos evangelhos carecem de ensinamentos sobre
o Jesus histórico, o Nazareno.
A razão para tal parece
atrelar-se ao fato de os evangelhos, relatos de
autoria incerta, talvez excetuando-se o
evangelho de Lucas, jamais terem sido pensados
enquanto um relato histórico acerca da vida de
Jesus, o Nazareno. Nada aponta nessa direção.
Contrariamente, os testemunhos, escritos muito
tempo depois dos fatos que atestam, surgiram
pelas mãos de homens de fé, pertencentes a
comunidades de fé. São, portanto, nesse sentido,
confissões de fé.
Mas, mesmo como
testemunhos de fé, como saber se os evangelhos
de Marcos, Mateus, Lucas e João estão de acordo
com os fatos? Como saber, de acordo com Mateus e
Lucas a verdade sobre a concepção de Jesus uma
vez que a razão não nos permite acessar tais
testemunhos? - Simplesmente não podemos.
Mas isto parece não
incomodar os cristãos. Para esses, a verdade é o
Jesus
ressuscitado -
o cordeiro de Deus que tirou os pecados do mundo
- aquele que venceu a morte e foi elevado.
Talvez o maior de todos os mistérios, sem o
qual, segundo Paulo, a fé seria vã. (BS 1Cor
15:17)
A ressurreição é,
portanto, o centro da teologia paulina e,
indiscutivelmente, do cristianismo como um todo.
Em conformidade, a
igreja de Roma, desde os primórdios, sempre "com
firmeza e máxima constância, sustentou e
sustenta que os quatro mencionados Evangelhos,
cuja
historicidade afirma sem hesitação,
transmitem fielmente aquilo que Jesus, Filho de
Deus, ao viver entre os homens, realmente fez e
ensinou para a eterna salvação deles, até o dia
em que foi elevado."[ii]
(grifo nosso)
Cria-se, desta maneira,
uma nova "verdade", pertencente a fé, revelada
por Deus, testemunhada pelos Evangelistas e
proposta pela Igreja para aceitação dos fiéis
como expressão legítima e necessária de sua fé.
Estamos, assim, diante de um dogma.
O dogma, contudo,
implica numa relação binária, uma dupla relação,
quer seja, a revelação divina e o ensinamento
autorizado da Igreja.
[iii]A
primeira, fundada na soma das verdades reveladas
nas Escrituras e, a segunda, envolvendo o grau
individual de concordância com essas verdades.
Contudo, nenhuma parte
dessa relação se dá de forma autoevidente.
Mas, a igreja de Roma,
vai além. Sempre defendeu, e continua a
defender, duas ordens de conhecimento, distintas
entre si: de um lado a razão natural e, do
outro, o conhecimento pela fé. Na primeira a
verdade é acessada pela razão. Na segunda,
através dos mistérios escondidos em Deus, mas
que temos que acreditar por se tratar de
revelações divinas.
Mas isso não passa de um
sofisma. Crer é infinitamente diferente de
conhecer. Por mais que queiramos, razão e crença
não dialogam pacificamente. Não podemos acessar
por meios racionais aquilo que ultrapassa os
próprios limites da razão, inclui-se, aqui, o
nascimento de Jesus através de uma jovem virgem,
Sua ressurreição, Seus milagres, Sua elevação.
Resta, portanto, unicamente a fé.
Mas, a fé não é
congênita. A fé é aprendida ao longo do nosso
desenvolvimento dentro da comunidade em que
estivermos inseridos. A fé que cada indivíduo
defende é a mesma fé que aprendeu e aceitou como
única e certa, vivenciada em grupo, aceita
individualmente e alegada, no sentido religioso,
como racionalmente compreendida. Não precisamos
muito para compreender isso. Basta pensarmos nas
"certezas" conflituosas entre judeus, católicos,
protestantes das mais variáveis denominações e
muçulmanos, todos obedientes ao mesmo Deus.
Todos portadores das mais sublimes
verdades
reveladas. Eternas e
imutáveis verdades.
Mas, voltando à questão
sobre os evangelhos, mesmo deixando de lado o
Jesus histórico, aparentemente de menor
importância para os cristãos, como já o
dissemos, continuamos com o problema, já
levantado em linhas anteriores: como saber se os
Evangelhos são, de fato, as verdadeiras palavras
de Jesus se não temos acesso aos originais,
assim como a maioria dos cristãos em toda a
história do cristianismo não o tiveram.
Considere-se, ainda,
que "Nós não apenas não temos os originais, como
não temos as primeiras cópias deles. Não temos
nem mesmo as cópias das cópias dos originais, ou
as cópias das cópias das cópias dos originais. O
que temos são cópias feitas mais tarde, muito
mais tarde. Na maioria das vezes trata-se de
cópias feitas
séculos depois
e todas elas diferem umas das outras em milhares
de passagens."[iv]
Portanto, como saber
realmente quais foram as palavras inspiradas e
presentes em Marcos, Mateus, Lucas e João?
Mais que isso, como aceitar tais palavras como
verdades?
Tentemos elucidar, ainda
com o auxílio dos testemunhos de Mateus e Lucas,
sobre a Anunciação:
Recuperemos o já dito.
Cristãos creem no nascimento virginal de Jesus
em virtude de ter sido narrado por homens sob a
inspiração do Espírito Santo. Portanto, uma
verdade divina, revelada, imutável e
inquestionável.
Mas, por mais que nos
esforcemos, nosso intelecto não alcança esse
fato; contrariamente, o repele, uma vez que
todos os conhecimentos produzidos pela razão,
até o presente momento, não o sustentam.
Todavia, isso não se traduz imediatamente como
rejeição ao nosso ser e, de alguma maneira, nos
esforçamos para dar algum sentido àquilo que
nosso intelecto rejeita em virtude da
inexistência de provas. Está em jogo agora a
verdade que nos foi revelada. A verdade de Deus.
A verdade que, diferentemente da verdade dos
homens, não podemos acessar.
Então, nos esforçamos,
sobremaneira, para salvar o testemunho
apostólico e, num esforço sobre-humano,
atribuímos a ele uma nova condição, não humana,
mas divina. Atribuímos ao fato uma dimensão
sobrenatural, de mistério, justificando, também
misteriosamente, que ao homem, ser limitado por
natureza, nem tudo é possível de compreensão,
mas a Deus, sem limitação alguma, tudo é
possível.
Questão resolvida.
Simples assim.
Enfim, Adão dormiu, Eva
nasceu. E pôs-se a fábula em ata.*
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