Se, para a generalidade
dos povos, uma língua própria e comum a toda a
população é o mais elevado instrumento de
unidade e identidade Portugal, quando se tornou
independente, estava já dotado dessa língua
própria e, apesar do domínio absoluto do latim
como língua de expressão e comunicação cultural,
cedo começou a dotar-se de textos escritos, quer
literários quer não literários, que cimentavam
a sua identidade com essa língua própria,
a língua galaico-portuguesa.
Saída do latim vulgar,
enriquecida pelas línguas dos povos que passaram
por este extremo ocidental da Europa,
nomeadamente Celtas, Suevos, Visigodos e Árabes,
o galaico-português surgiu em textos escritos
seguramente cerca de cinquenta
e oito
anos após a independência, isto é, em 1198.
Exprimindo muito do que é a alma portuguesa, o
primeiro texto escrito em língua portuguesa é,
seguramente, um texto poético. E a beleza dessa
língua inicial era tanta, e tão reconhecida que,
como observou o Marquês de Santillana na carta
proémio dirigida ao Condestável D. Pedro, filho
do Infante D.Pedro, um dos filhos de D. João I,
regente do reino durante a menoridade de D. João
V:
“Quaisquer prosadores ou trovadores destas
partes, quer fossem Castelhanos, Andaluzes ou da
Estremadura, todos compunham as suas obras em
língua galega ou portuguesa.”
E, embora Portugal
estivesse sempre fora das principais rotas de
circulação comercial e cultural do mundo, embora
fosse também um país de pequena população e
extensão, a língua portuguesa espalhou-se pelo
mundo ao ponto de ser o quinto idioma mais
falado em todo o planeta, e o primeiro mais
falado no hemisfério sul.
Foram dois os grandes
visionários da importância de uma língua própria
para a Pátria portuguesa: o primeiro foi o rei
D. Afonso II, tão pouco falado e tão
injustamente maltratado por tantos
historiadores. O segundo foi, como assinalou
MARIA ESTELA GUEDES num excelente texto
publicado no número anterior da
incomunidade.com, o rei D. Dinis.
Na sequência dos
trabalhos de JOÃO PEDRO RIBEIRO, ALEXANDRE
HERCULANO, LEITE DE VASCONCELOS, CAROLINA
MICHAELIS DE VASCONCELOS e LINDLEY CINTRA, era
geralmente aceite que
os
primeiros textos não literários em língua
portuguesa seriam
a chamada NOTÍCIA DE FIADORES, datada de 1175, o
AUTO DE PARTILHAS, datado de 1192, o TESTAMENTO
DE ELVIRA SANCHES, de 1193, a NOTÍCIA DE TORTO e
a ANOTAÇÃO DE DESPESAS DE PEDRO PARADA, às quais
eram atribuídas datas nem sempre consensuais mas
que rondavam as três últimas décadas do século
XII.
Em 2003, JOSÉ ANTÓNIO
SOUTO CABO considerou que o primeiro texto não
literário em língua portuguesa seria o chamado
PACTO ENTRE IRMÃOS (Gomes pais e Ramiro Pais),
sem data inscrita mas lavrado em 1175 ou antes.
Considerava-se também
que os primeiros textos literários em língua
portuguesa seriam a cantiga de amor denominada
CANTIGA DA GARVAIA, atribuída a Paio Soares de
Taveirós, trovador
galego pertencente à pequena nobreza, que
terá poetado no final do século XII princípios
do século XIII, incluída no
CANCIONEIRO DA
AJUDA e
a célebre cantiga de amigo atribuída por
CAROLINA MICHAELIS DE VASCONCELOS a D. Sancho I,
Ay eu
coitada, como vivo.
Hoje,
porém, depois dos trabalhos de investigação
levados a cabo por AVELINO DE JESUS DA COSTA, in
ESTUDOS
DE CRONOLOGIA, DIPLOMÁTICA, PALEOGRAFIA E
HISTÓRICO-LÍNGUÍSTICOS,
secundados por RUI DE AZEVEDO,
é geralmente aceite que o primeiro texto não
literário elaborado em língua portuguesa, melhor
dizendo, galaico-portuguesa é o testamento de D.
Afonso II, feito em Coimbra a 27 de Julho de
1214. Todos os restantes textos não literários
são de autenticidade duvidosa ou, claramente,
versões de textos em latim todas elas
posteriores a 2014.
Como refere ANA MARIA
MARTINS, in
O
PRIMEIRO SÉCULO DO PORTUGUÊS ESCRITO,
a língua
do testamento de D. Afonso II é
uma língua inovadora e liberta da
tradição na língua tardo-latina constante de
documentos anteriores. Elaborado quando Afonso
II contava apenas 28 anos de idade e 3 de
reinado, certamente devido ao receio que lhe
inspiravam as graves doenças de que viria a
morrer com apenas 37 anos de idade, esse
testamento de que foram tiradas
treze cópias, das quais nos restam duas,
leva a marca de um rei profundamente inovador e
percursor em todo o mundo medieval europeu. Foi
com Afonso II que foi levada a cabo a primeira
tentativa de centralização do poder real em toda
a Europa, que reconhecendo o poder da Igreja de
Roma pretendeu, através da fixação duma escrita
que traduzisse a linguagem falada no reino,
libertando o país do domínio absoluto da cultura
clerical latina, fortalecer o poder temporal
contra o domínio avassalador do poder espiritual
de Roma. A ele se devem as primeiras
inquirições, instrumento essencial para se
conhecer o reino e o governar, o primeiro
registo oficial de diplomas régios, os primeiros
ensaios para implantar o notariado como forma de
registo de atos jurídicos entre particulares, as
primeiras leis da desamortização e tantas outras
inovações que fazem do reinado de Afonso II um
reinado percursor de tudo aquilo que se viria a
implantar na Europa a partir do século XV, com a
tão moderna conceção presente já nas suas leis
de que “
o bom príncipe deve limpar a sua província dos
maus homens” e “
fazer mercê aos indefesos e protege-los contra
os poderosos.”
Aqui transcrevemos esse
notável documento de cuja elaboração se
celebraram, no ano passado, os 800 anos.
|
En’o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia
de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo,
temẽte o dia de mia morte, a saude de mia alma
e a proe de mia molier raina dona Orraca e de
me(us) filios e de me(us) uassalos e de todo meu
reino fiz mia mãda p(er) q(ue) depos mia morte
mia molier e me(us) filios e meu reino e me(us)
uassalos e todas aq(ue)las cousas q(ue) De(us)
mi deu en poder sten en paz e en folgãcia.
P(ri)meiram(en)te mãdo q(ue) meu filio infante
don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia
meu reino enteg(ra)m(en)te e en paz. E ssi este
for morto sen semmel, o maior filio q(ue) ouuer
da raina dona Orraca agia o reino entegram(en)te
e en paz. E ssi filio barõ nõ ouuermos, a maior
filia q(ue) ouuermos agia’o. E ssi no tẽpo de
mia morte meu filio ou mia filia q(ue) deuier a
reinar nõ ouuer reuora, segia en poder da raina
sa madre e meu reino segia en poder da raina e
de me(us) uassalos ata q(uan)do agia reuora. E
ssi eu for morto, rogo o apostoligo come padre e
senior e beigio a t(er)ra ante seus pees q(ue)
el recebia en sa comẽda e so seu difindemẽto a
raina e me(us) filios e o reino. E ssi eu e a
raina formos mortos, rogoli e pregoli q(ue) os
me(us) filios e o reino segiã en sa comẽda. E
mãdo da dezima dos morauidiis e dos dieiros
q(ue) mi remaserũ de parte de meu padre q(ue)
sũ en Alcobaza e do outr’auer mouil q(ue) i
posermos pora esta dezima q(ue) segia partido
pelas manus do arcebispo de Bragaa e do
arcebispo de Santiago e do bispo do Portu e de
Lixbona e de Coĩbria e de Uiseu e de Lamego e
da Idania e d’Euora e de Tui e do tesoureiro de
Bragaa. E out(ro)ssi mãdo das dezimas das
luctosas e das armas e dout(ra)s dezimas q(ue)
eu tenio apartadas en tesouros per meu reino,
q(ue) eles as departiã assi como uirẽ por
derecto. E mãdo q(ue) o abade d’Alcobaza lis de
aq(ue)sta dezima q(ue) el ten ou teiuer e eles
as departiã segũdo De(us) como uirẽ por
derecto. E mãdo q(ue) a raina dona Orraca agia a
meiadade de todas aq(ue)lias cousas mouils q(ue)
eu ouuer a mia morte, exetes aq(ue)stas dezimas
q(ue) mãdo dar por mia alma e as out(ra)s q(ue)
tenio en uoontade por dar por mia alma e non’as
uiier a dar. Et mãdo q(ue) si a raina morrer en
mia uida q(ue) de todo meu auer mouil agia ende
a meiadade. Da out(ra) meiadade solten ende
p(ri)meiram(en)te todas mias devidas e do q(ue)
remaser fazam en[de] t(re)s partes e as duas
partes agiã me(us) filios e mias filias e
departiãse ent(r)’(e)les igualm(en)te. Da
t(er)ceira o arcebispo de Bragaa e o arcebispo
de Santiago e o bispo do Portu e o de Lixbona e
o de Coĩbria e o de Uiseu e o d’Euora fazã
desta guisa: q(ue) u q(ue)r q(ue) eu moira
q(ue)r en meu reino q(ue)r fora de meu regno
fazam aduzer meu corpo p(er) mias custas a
Alcobaza. E mãdo q(ue) den a meu senior o papa
#MMM m(o)r(auidiis), a Alcobaza #MM
m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, a Santa
Maria de Rocamador #MM m(o)r(auidiis) por meu
añiu(er)sario a Santiago de Galicia #MM #CCC
m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, ao cabidoo
da Séé da Idania mill(e) m(o)r(auidiis) por meu
añiu(er)sario, ao moesteiro de San Gurge #D
m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, ao
moesteiro de San Uicẽte de Lixbona #D
m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, aos
caonigos de Tui mill(e) m(o)r(auidiis) por meu
añiu(er)sario. E rogo q(ue) cada un destes
añiu(er)sarios fazam sẽp(re) no dia de mia
morte e fazam t(re)s comemorazones en t(re)s
partes do ano e cada dia fazam cantar una missa
por mia alma por sẽpre. E ssi eu en mia uida
der estes añiu(er)sarios, mãdo q(ue) orem por mi
come por uiuo ata en mia morte e depos mia morte
fazam estes añiu(er)sarios e estas comemorazones
assi como suso e nomeado, assim como fazem en’os
out(ro)s logares u ia dei meus añiu(er)sarios. E
mãdo q(ue) den ao maestre e aos freires d’Euora
#D m(o)r(auidiis) por mia alma, ao comendador e
aos freires de Palmela #D m(o)r(auidiis) por mia
alma. E mãdo q(ue) o q(ue) eu der daq(ue)sta
mãda en mia vida q(ue) non’o busque nenguu depos
mia morte. E o q(ue) remaser daq(ue)sta mia
t(er)cia mãdo q(ue) segia partido igualmẽte en
cinq(ue) partes das quaes una den a Alcobaza u
mando geitar meu corpo. A out(ra) ao moesteiro
de Santa Cruz, a t(er)ceira aos Tẽpleiros, a
q(ua)rta aos Espitaleiros, a q(ui)nta den por
mia alma o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de
Santiago e os cinque bispos q(ue) suso nomeamos
segũdo Deus. E den ende aos omees d’ordin de
mia casa e aos leigos ||a|| q(ue) eu nõ
galardoei seu servizo assi com’eles uirem por
guisado. E as out(ra)s duas partes de toda mia
meiadade segiã departidas igualm(en)te ent(re)
me(us) filios e mias filias q(ue) ouuer da raina
dona Orraca assi como suso e dito. E mãdo q(ue)
aq(ue)ste auer dos me(us) filios q(ue) o teniã
aq(ue)stes dous arcebispos cũ aq(ue)stes
cinq(ue) bispos ata q(uan)do agiã reuora. E a
dia de mia morte se alguus de me(us) filios
ouuerẽ reuora, agiã seu auer. E dos q(ue)
reuora nõ ouuerẽ mãdo q(ue) lis teniã seu auer
ata q(uan)do agiã reuora. E mãdo q(ue) q(ue)n
q(ue)r que tenia meu tesouro ou me(us) tesouros
a dia de mia morte q(ue) os de a departir
aq(ue)stes dous arcebispos e aq(ue)stes cinq(ue)
bispos, assi como suso e nomeado. E mãdo ainda
q(ue) se s’asunar todos nõ poderem ou nõ
q(ui)serẽ ou descordia for ent(r)’(a)q(ue)stes
a q(ue) eu mãdo departir aq(ue)stas dezimas suso
nomeadas, ualia aq(ui)lo q(ue) mãdarẽ os chus
muitos p(er) nõbro. Out(ro)ssi mãdo daq(ue)les
q(ue) mia mãda an a departir ou todas aq(ue)lias
cousas q(ue) suso sũ nomeadas q(ue) si todos nõ
se poderẽ assunar ou nõ q(ui)serem ou descordia
for ent(r)’(e)les ualia aq(ui)lo q(ue) mãdarẽ
os chus muitos p(er) nõbro. Mando ainda q(ue) a
raina e meu filio ou mia filia q(ue) no meu
logar ouuver a reinar se a mia morte ouuver
reuora e meus uassalos e o abade d’Alcobaza sen
demorancia e sen (con)t(ra)dita lis den toda mia
meiadade e todas as dezimas e as out(ra)s cousas
suso nomeadas e eles as departiã assi como suso
e nomeado. E ssi a mia morte meu filio ou mia
filia q(ue) no meu logar ouuer a reinar nõ ouuer
reuora, mãdo empero q(ue) aq(ue)stes arcebispos
e aq(ue)stes bispos departiã todas aq(ue)stas
dezimas e todas aq(ue)stas out(ra)s cousas assi
como suso e nomeado . E a raina e me(us)
uassalos e o abade sen demorãcia e sen
(con)t(ra)dita lis den toda mia meiadade e todas
as dezimas e as out(ra)s cousas q(ue) teiuerẽ,
assi como suso e dito. E ssi dar nõ li as
q(ui)serem, rogo [o]s arcebispos e os bispos
com’eu en eles (con)fio q(ue) eles o demãdem
pelo apostoligo e p(er) si. E rogo e prego meu
senior o apostoligo e beigio a t(er)ra ante seus
pees q(ue) pela sa santa piadade faza aq(ue)sta
mia mãda seer (con)p(ri)da e aguardada, q(ue)
nenguu nõ agia poder de uinir (con)t(ra) ela. E
ssi a dia de mia morte meu filio ou mia filia
q(ue) no meu logar ouuer a reinar nõ ouuer
reuora, mãdo aq(ue)les caualeiros q(ue) os
castelos teen de mi en’as t(er)ras q(ue) de mi
teem os me(us) riquos omees q(ue) os den a esses
meus riq(uo)s omees q(ue) essas t(er)ras
teiuerẽ. E os meus riquos omees den’os a meu
filio ou a mia filia q(ue) no meu logar ouuer a
reinar q(uan)do ouuer reuora, assi como os dariã
a mi. E mandei fazer treze cartas cũ aq(ues)ta
tal una come outra, q(ue) p(er) elas toda mia
mãda segia (con)p(ri)da, das quaes ten una o
arcebispo d(e) Bragaa, a out(ra) o arcebispo de
Santiago, a t(er)ceira o arcebispo de Toledo, a
q(ua)rta o bispo do Portu, a q(ui)nta o de
Lixbona, a sexta o de Coĩb(ri)a, a septima o
d’Evora, a octaua o de Uiseu, a nouea o maestre
do Tẽplo, a dezima o p(ri)or do Espital, a
undezima o p(ri)or de Santa Cruz, a duodecima o
abade d’Alcobaza, a t(er)cia dezima facer
guarda[r] en mia reposte. E forũ feitas en
Coinbria iiijº dias por andar de Junio, E(ra) Mª
CCª Lª ijª.
|