Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . índice








Henrique Dória (Henrique Prior)
.
É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e na revista Vértice. Tem três livros de poesia editados e dois de prosa. Foi director do jornal O PROGRESSO DE GONDOMAR e da Editora XERAZADE, EDIÇÕES. Colabora na revista cultural da Ordem dos Advogados, FORO DAS LETRAS, no Triplov, e dirige a Revista digital
http://www.incomunidade.com.
 
HENRIQUE DÓRIA
Os primeiros textos em língua portuguesa

Se, para a generalidade dos povos, uma língua própria e comum a toda a população é o mais elevado instrumento de unidade e identidade Portugal, quando se tornou independente, estava já dotado dessa língua própria e, apesar do domínio absoluto do latim como língua de expressão e comunicação cultural, cedo começou a dotar-se de textos escritos, quer literários quer não literários, que cimentavam  a sua identidade com essa língua própria, a língua galaico-portuguesa.

Saída do latim vulgar, enriquecida pelas línguas dos povos que passaram por este extremo ocidental da Europa, nomeadamente Celtas, Suevos, Visigodos e Árabes, o galaico-português surgiu em textos escritos seguramente cerca de cinquenta  e oito anos após a independência, isto é, em 1198. Exprimindo muito do que é a alma portuguesa, o primeiro texto escrito em língua portuguesa é, seguramente, um texto poético. E a beleza dessa língua inicial era tanta, e tão reconhecida que, como observou o Marquês de Santillana na carta proémio dirigida ao Condestável D. Pedro, filho do Infante D.Pedro, um dos filhos de D. João I, regente do reino durante a menoridade de D. João V:

“Quaisquer prosadores ou trovadores destas partes, quer fossem Castelhanos, Andaluzes ou da Estremadura, todos compunham as suas obras em língua galega ou portuguesa.”

E, embora Portugal estivesse sempre fora das principais rotas de circulação comercial e cultural do mundo, embora fosse também um país de pequena população e extensão, a língua portuguesa espalhou-se pelo mundo ao ponto de ser o quinto idioma mais falado em todo o planeta, e o primeiro mais falado no hemisfério sul.

Foram dois os grandes visionários da importância de uma língua própria para a Pátria portuguesa: o primeiro foi o rei D. Afonso II, tão pouco falado e tão injustamente maltratado por tantos historiadores. O segundo foi, como assinalou MARIA ESTELA GUEDES num excelente texto publicado no número anterior da incomunidade.com, o rei D. Dinis.

Na sequência dos trabalhos de JOÃO PEDRO RIBEIRO, ALEXANDRE HERCULANO, LEITE DE VASCONCELOS, CAROLINA MICHAELIS DE VASCONCELOS e LINDLEY CINTRA, era geralmente aceite que  os primeiros textos não literários em língua portuguesa  seriam a chamada NOTÍCIA DE FIADORES, datada de 1175, o AUTO DE PARTILHAS, datado de 1192, o TESTAMENTO DE ELVIRA SANCHES, de 1193, a NOTÍCIA DE TORTO e a ANOTAÇÃO DE DESPESAS DE PEDRO PARADA, às quais eram atribuídas datas nem sempre consensuais mas que rondavam as três últimas décadas do século XII.

Em 2003, JOSÉ ANTÓNIO SOUTO CABO considerou que o primeiro texto não literário em língua portuguesa seria o chamado PACTO ENTRE IRMÃOS (Gomes pais e Ramiro Pais), sem data inscrita mas lavrado em 1175 ou antes.

Considerava-se também que os primeiros textos literários em língua portuguesa seriam a cantiga de amor denominada CANTIGA DA GARVAIA, atribuída a Paio Soares de Taveirós, trovador  galego pertencente à pequena nobreza, que terá poetado no final do século XII princípios do século XIII, incluída no  CANCIONEIRO DA  AJUDA e a célebre cantiga de amigo atribuída por CAROLINA MICHAELIS DE VASCONCELOS a D. Sancho I, Ay eu coitada, como vivo.

 Hoje, porém, depois dos trabalhos de investigação levados a cabo por AVELINO DE JESUS DA COSTA, in ESTUDOS DE CRONOLOGIA, DIPLOMÁTICA, PALEOGRAFIA E HISTÓRICO-LÍNGUÍSTICOS, secundados por RUI DE AZEVEDO, é geralmente aceite que o primeiro texto não literário elaborado em língua portuguesa, melhor dizendo, galaico-portuguesa é o testamento de D. Afonso II, feito em Coimbra a 27 de Julho de 1214. Todos os restantes textos não literários são de autenticidade duvidosa ou, claramente, versões de textos em latim todas elas posteriores a 2014.

Como refere ANA MARIA MARTINS, in O PRIMEIRO SÉCULO DO PORTUGUÊS ESCRITO,  a língua do testamento de D. Afonso II é  uma língua inovadora e liberta da tradição na língua tardo-latina constante de documentos anteriores. Elaborado quando Afonso II contava apenas 28 anos de idade e 3 de reinado, certamente devido ao receio que lhe inspiravam as graves doenças de que viria a morrer com apenas 37 anos de idade, esse testamento de que foram tiradas  treze cópias, das quais nos restam duas, leva a marca de um rei profundamente inovador e percursor em todo o mundo medieval europeu. Foi com Afonso II que foi levada a cabo a primeira tentativa de centralização do poder real em toda a Europa, que reconhecendo o poder da Igreja de Roma pretendeu, através da fixação duma escrita que traduzisse a linguagem falada no reino, libertando o país do domínio absoluto da cultura clerical latina, fortalecer o poder temporal contra o domínio avassalador do poder espiritual de Roma. A ele se devem as primeiras inquirições, instrumento essencial para se conhecer o reino e o governar, o primeiro registo oficial de diplomas régios, os primeiros ensaios para implantar o notariado como forma de registo de atos jurídicos entre particulares, as primeiras leis da desamortização e tantas outras inovações que fazem do reinado de Afonso II um reinado percursor de tudo aquilo que se viria a implantar na Europa a partir do século XV, com a tão moderna conceção presente já nas suas leis de que “ o bom príncipe deve limpar a sua província dos maus homens” e “ fazer mercê aos indefesos e protege-los contra os poderosos.”

Aqui transcrevemos esse notável documento de cuja elaboração se celebraram, no ano passado, os 800 anos.

 
Testamento de Afonso II

En’o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, temẽte o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier raina dona Orraca e de me(us) filios e de me(us) uassalos e de todo meu reino fiz mia mãda p(er) q(ue) depos mia morte mia molier e me(us) filios e meu reino e me(us) uassalos e todas aq(ue)las cousas q(ue) De(us) mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. P(ri)meiram(en)te mãdo q(ue) meu filio infante don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia meu reino enteg(ra)m(en)te e en paz. E ssi este for morto sen semmel, o maior filio q(ue) ouuer da raina dona Orraca agia o reino entegram(en)te e en paz. E ssi filio barõ nõ ouuermos, a maior filia q(ue) ouuermos agia’o. E ssi no tẽpo de mia morte meu filio ou mia filia q(ue) deuier a reinar nõ ouuer reuora, segia en poder da raina sa madre e meu reino segia en poder da raina e de me(us) uassalos ata q(uan)do agia reuora. E ssi eu for morto, rogo o apostoligo come padre e senior e beigio a t(er)ra ante seus pees q(ue) el recebia en sa comẽda e so seu difindemẽto a raina e me(us) filios e o reino. E ssi eu e a raina formos mortos, rogoli e pregoli q(ue) os me(us) filios e o reino segiã en sa comẽda. E mãdo da dezima dos morauidiis e dos dieiros q(ue) mi remaserũ de parte de meu padre q(ue) sũ en Alcobaza e do outr’auer mouil q(ue) i posermos pora esta dezima q(ue) segia partido pelas manus do arcebispo de Bragaa e do arcebispo de Santiago e do bispo do Portu e de Lixbona e de Coĩbria e de Uiseu e de Lamego e da Idania e d’Euora e de Tui e do tesoureiro de Bragaa. E out(ro)ssi mãdo das dezimas das luctosas e das armas e dout(ra)s dezimas q(ue) eu tenio apartadas en tesouros per meu reino, q(ue) eles as departiã assi como uirẽ por derecto. E mãdo q(ue) o abade d’Alcobaza lis de aq(ue)sta dezima q(ue) el ten ou teiuer e eles as departiã segũdo De(us) como uirẽ por derecto. E mãdo q(ue) a raina dona Orraca agia a meiadade de todas aq(ue)lias cousas mouils q(ue) eu ouuer a mia morte, exetes aq(ue)stas dezimas q(ue) mãdo dar por mia alma e as out(ra)s q(ue) tenio en uoontade por dar por mia alma e non’as uiier a dar. Et mãdo q(ue) si a raina morrer en mia uida q(ue) de todo meu auer mouil agia ende a meiadade. Da out(ra) meiadade solten ende p(ri)meiram(en)te todas mias devidas e do q(ue) remaser fazam en[de] t(re)s partes e as duas partes agiã me(us) filios e mias filias e departiãse ent(r)’(e)les igualm(en)te. Da t(er)ceira o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de Santiago e o bispo do Portu e o de Lixbona e o de Coĩbria e o de Uiseu e o d’Euora fazã desta guisa: q(ue) u q(ue)r q(ue) eu moira q(ue)r en meu reino q(ue)r fora de meu regno fazam aduzer meu corpo p(er) mias custas a Alcobaza. E mãdo q(ue) den a meu senior o papa #MMM m(o)r(auidiis), a Alcobaza #MM m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, a Santa Maria de Rocamador #MM m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario a Santiago de Galicia #MM #CCC m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, ao cabidoo da Séé da Idania mill(e) m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, ao moesteiro de San Gurge #D m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, ao moesteiro de San Uicẽte de Lixbona #D m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario, aos caonigos de Tui mill(e) m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario. E rogo q(ue) cada un destes añiu(er)sarios fazam sẽp(re) no dia de mia morte e fazam t(re)s comemorazones en t(re)s partes do ano e cada dia fazam cantar una missa por mia alma por sẽpre. E ssi eu en mia uida der estes añiu(er)sarios, mãdo q(ue) orem por mi come por uiuo ata en mia morte e depos mia morte fazam estes añiu(er)sarios e estas comemorazones assi como suso e nomeado, assim como fazem en’os out(ro)s logares u ia dei meus añiu(er)sarios. E mãdo q(ue) den ao maestre e aos freires d’Euora #D m(o)r(auidiis) por mia alma, ao comendador e aos freires de Palmela #D m(o)r(auidiis) por mia alma. E mãdo q(ue) o q(ue) eu der daq(ue)sta mãda en mia vida q(ue) non’o busque nenguu depos mia morte. E o q(ue) remaser daq(ue)sta mia t(er)cia mãdo q(ue) segia partido igualmẽte en cinq(ue) partes das quaes una den a Alcobaza u mando geitar meu corpo. A out(ra) ao moesteiro de Santa Cruz, a t(er)ceira aos Tẽpleiros, a q(ua)rta aos Espitaleiros, a q(ui)nta den por mia alma o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de Santiago e os cinque bispos q(ue) suso nomeamos segũdo Deus. E den ende aos omees d’ordin de mia casa e aos leigos ||a|| q(ue) eu nõ galardoei seu servizo assi com’eles uirem por guisado. E as out(ra)s duas partes de toda mia meiadade segiã departidas igualm(en)te ent(re) me(us) filios e mias filias q(ue) ouuer da raina dona Orraca assi como suso e dito. E mãdo q(ue) aq(ue)ste auer dos me(us) filios q(ue) o teniã aq(ue)stes dous arcebispos cũ aq(ue)stes cinq(ue) bispos ata q(uan)do agiã reuora. E a dia de mia morte se alguus de me(us) filios ouuerẽ reuora, agiã seu auer. E dos q(ue) reuora nõ ouuerẽ mãdo q(ue) lis teniã seu auer ata q(uan)do agiã reuora. E mãdo q(ue) q(ue)n q(ue)r que tenia meu tesouro ou me(us) tesouros a dia de mia morte q(ue) os de a departir aq(ue)stes dous arcebispos e aq(ue)stes cinq(ue) bispos, assi como suso e nomeado. E mãdo ainda q(ue) se s’asunar todos nõ poderem ou nõ q(ui)serẽ ou descordia for ent(r)’(a)q(ue)stes a q(ue) eu mãdo departir aq(ue)stas dezimas suso nomeadas, ualia aq(ui)lo q(ue) mãdarẽ os chus muitos p(er) nõbro. Out(ro)ssi mãdo daq(ue)les q(ue) mia mãda an a departir ou todas aq(ue)lias cousas q(ue) suso sũ nomeadas q(ue) si todos nõ se poderẽ assunar ou nõ q(ui)serem ou descordia for ent(r)’(e)les ualia aq(ui)lo q(ue) mãdarẽ os chus muitos p(er) nõbro. Mando ainda q(ue) a raina e meu filio ou mia filia q(ue) no meu logar ouuver a reinar se a mia morte ouuver reuora e meus uassalos e o abade d’Alcobaza sen demorancia e sen (con)t(ra)dita lis den toda mia meiadade e todas as dezimas e as out(ra)s cousas suso nomeadas e eles as departiã assi como suso e nomeado. E ssi a mia morte meu filio ou mia filia q(ue) no meu logar ouuer a reinar nõ ouuer reuora, mãdo empero q(ue) aq(ue)stes arcebispos e aq(ue)stes bispos departiã todas aq(ue)stas dezimas e todas aq(ue)stas out(ra)s cousas assi como suso e nomeado . E a raina e me(us) uassalos e o abade sen demorãcia e sen (con)t(ra)dita lis den toda mia meiadade e todas as dezimas e as out(ra)s cousas q(ue) teiuerẽ, assi como suso e dito. E ssi dar nõ li as q(ui)serem, rogo [o]s arcebispos e os bispos com’eu en eles (con)fio q(ue) eles o demãdem pelo apostoligo e p(er) si. E rogo e prego meu senior o apostoligo e beigio a t(er)ra ante seus pees q(ue) pela sa santa piadade faza aq(ue)sta mia mãda seer (con)p(ri)da e aguardada, q(ue) nenguu nõ agia poder de uinir (con)t(ra) ela. E ssi a dia de mia morte meu filio ou mia filia q(ue) no meu logar ouuer a reinar nõ ouuer reuora, mãdo aq(ue)les caualeiros q(ue) os castelos teen de mi en’as t(er)ras q(ue) de mi teem os me(us) riquos omees q(ue) os den a esses meus riq(uo)s omees q(ue) essas t(er)ras teiuerẽ. E os meus riquos omees den’os a meu filio ou a mia filia q(ue) no meu logar ouuer a reinar q(uan)do ouuer reuora, assi como os dariã a mi. E mandei fazer treze cartas cũ aq(ues)ta tal una come outra, q(ue) p(er) elas toda mia mãda segia (con)p(ri)da, das quaes ten una o arcebispo d(e) Bragaa, a out(ra) o arcebispo de Santiago, a t(er)ceira o arcebispo de Toledo, a q(ua)rta o bispo do Portu, a q(ui)nta o de Lixbona, a sexta o de Coĩb(ri)a, a septima o d’Evora, a octaua o de Uiseu, a nouea o maestre do Tẽplo, a dezima o p(ri)or do Espital, a undezima o p(ri)or de Santa Cruz, a duodecima o abade d’Alcobaza, a t(er)cia dezima facer guarda[r] en mia reposte. E forũ feitas en Coinbria iiijº dias por andar de Junio, E(ra) Mª CCª Lª ijª.

 
 
EDITOR | TRIPLOV
Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
PORTUGAL
Página Principal
Índice por Autores
Série Anterior
 
www.triplov.com
Apenas Livros Editora
Revista InComunidade
Agulha
Revista de Cultura
Triplov Blog
www.triplov.com