Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . índice




Dora Nunes Gago  (Portugal). Professora  de Literatura no Departamento de Português  Universidade de Macau (China). Doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, Mestre em Estudos Literários Comparados, licenciada em Português-Francês.
Publicou os livros: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (1ºed. 2004, 2ª 2005, em co-autoria com Arlinda Mártires); A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, Campo das Letras, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008;  A oeste do Paraíso, contos, (e-book, emmoby ed. (2012);  As Duas Faces Do Dia (Chiado Editora, 2014); Travessias, contos migratórios (Edições Esgotadas, 2014).
Tem colaboração dispersa em  obras colectivas,  revistas e jornais nacionais, assim como artigos publicados em revistas académicas internacionais.
 
DORA GAGO

“Ser a moça mais linda do povoado”*

Luísa fora, em tempos, a moça mais bonita da aldeia. Agora aos oitenta anos, já não restava, nas linhas do seu rosto, qualquer vestígio desse tempo.Mantinha o riso fácil de criança inocente renascida.

A idade e a doença de Alzheimer haviam-na transportado para um reino de infância reencontrada e revivida. Era impossível recordar-se se havia almoçado, jantado, se era dia ou noite. No entanto, acordava a meio da noite a chamar pela mãe quando tinha pesadelos, tratava por avó a funcionária mais velha do Lar da Terceira Idade onde vivia e as outras por “mãe” ou “irmã”, consoante a idade.O difícil era convencê-la de que não podia sair daquele espaço. Constantemente vestia a sua camisa de dormir como se fosse um vestido de gala e dizia que ia ao baile da aldeia, porque estava muito apaixonada pelo seu Jacinto. Achava sempre que nessa noite, ele ia pedi-la em casamento.Então, as suas palavras pareciam oriundas de um CD riscado, pois perguntava constantemente:

-A que horas começa o “Baile da Pinha”? Este ano vou ser “rainha” e o meu Jacinto vai pedir-me em casamento… - e esta lengalenga ia-se repetindo todas as tardes, num tom ora dolente, ora alegre, consoante a vivacidade ou o cansaço…

O filho vinha visitá-la apenas no Natal. Uma visita breve e seca, na qual lhe deixava sempre o mesmo pacotinho de bombons. Ela confundia-o sempre com o marido e dizia infalivelmente:

- Ai Jacinto, estás tão velho!!! Assim já não sei se quero casar contigo. Estás a ficar muito gordo e estragado… Eu que pensava que tu só tinhas mais dois anos do que eu! O que dirá o meu pai, se lhe digo que vou casar com um velho?

O filho, que se chamava Pedro, suspirava, entristecido sem lhe dar resposta, depois passava pelas funcionárias e desejava-lhes, impreterivelmente, “um santo e feliz Natal e um próspero Ano Novo” – frase completamente impessoal que parecia ter sido retirada de um convencional postal de Boas Festas dos mais antigos. Aliás, em Pedro tudo era completamente convencional. Era o típico homem de negócios com tudo certo, definido e estereotipado, desde os dia e a hora em que fazia amor com a mulher (infalivelmente às terças, às 11h03 da noite), até às reuniões de trabalho, a visita natalícia à mãe, o dia dos pagamentos, o dia das cobranças… Toda a sua vida era mecânica e oca, sem qualquer espaço para o imprevisto, para o ocasional, ou para algum acontecimento de teor mais humano que lhe acrescentasse um pouco de sal ao quotidiano.

Cada dia que passava, Pedro se tornava menos humano e mais autómato, mera marioneta manipulada pela rotina, devorada pelos dias, desprovida de sensações ou de sentimentos. Por isso, os dez minutos que tinha calendarizado para passar com a mãe todos os natais, exigiam-lhe um sacrifício hercúleo, só comparado ao dia de aniversário da filha em que tinha por obrigação ir jantar com ela, que estudava ballet em Londres e vinha sempre a Portugal nessa ocasião.

Entre uma mãe demente e uma filha alucinadamente sonhadora, Pedro preferia, sem dúvida, a sua plácida esposa, que desde que tivesse as unhas de gel, a sessão diária no cabeleireiro, o botox necessário e uma outra cirurgia plástica de vez em quando, não o incomodava. Aliás, a constância de Pedro era uma bênção, pois como ele só a ocupava às terças, às onze horas, ela tinha a semana toda para dar, literal e metaforicamente, umas voltinhas com o seu motorista, vinte anos mais novo e dono de um corpinho, de fazer descer os anjos à terra (mesmo que sejam assexuados).

- Ai, ai, que velho que está o meu Jacinto!! Que dirá o meu pai?? E eu que recusei namoro ao Toino dos Cântaros! Se eu soubesse! Agora vou casar-me como um velho... – ficava-se a lamentar Luísa.

Rita, uma das empregadas do Lar,  levava-lhe a medicação e confirmava-lhe, todas as manhãs, que ela ia ser a rainha do baile, o que a deixava doida de alegria, durante trinta segundos, para depois voltar a dizer o mesmo:

- Sabes, mãe? Quero “ser a moça mais linda do povoado”!

E era. E seria sempre, por mais que as teias da doença lhe aprisionassem a alma o corpo e a vida.

 

 

Dora Nunes Gago

 

*Florbela Espanca, “Rústica”, Sonetos, 1990.
 
 
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