Luísa fora, em tempos, a
moça mais bonita da aldeia. Agora aos oitenta
anos, já não restava, nas linhas do seu rosto,
qualquer vestígio desse tempo.Mantinha o riso
fácil de criança inocente renascida.
A idade e a doença de
Alzheimer haviam-na transportado para um reino
de infância reencontrada e revivida. Era
impossível recordar-se se havia almoçado,
jantado, se era dia ou noite. No entanto,
acordava a meio da noite a chamar pela mãe
quando tinha pesadelos, tratava por avó a
funcionária mais velha do Lar da Terceira Idade
onde vivia e as outras por “mãe” ou “irmã”,
consoante a idade.O difícil era convencê-la de
que não podia sair daquele espaço.
Constantemente vestia a sua camisa de dormir
como se fosse um vestido de gala e dizia que ia
ao baile da aldeia, porque estava muito
apaixonada pelo seu Jacinto. Achava sempre que
nessa noite, ele ia pedi-la em casamento.Então,
as suas palavras pareciam oriundas de um CD
riscado, pois perguntava constantemente:
-A que horas começa o
“Baile da Pinha”? Este ano vou ser “rainha” e o
meu Jacinto vai pedir-me em casamento… - e esta
lengalenga ia-se repetindo todas as tardes, num
tom ora dolente, ora alegre, consoante a
vivacidade ou o cansaço…
O filho vinha visitá-la
apenas no Natal. Uma visita breve e seca, na
qual lhe deixava sempre o mesmo pacotinho de
bombons. Ela confundia-o sempre com o marido e
dizia infalivelmente:
- Ai Jacinto, estás tão
velho!!! Assim já não sei se quero casar
contigo. Estás a ficar muito gordo e estragado…
Eu que pensava que tu só tinhas mais dois anos
do que eu! O que dirá o meu pai, se lhe digo que
vou casar com um velho?
O filho, que se chamava
Pedro, suspirava, entristecido sem lhe dar
resposta, depois passava pelas funcionárias e
desejava-lhes, impreterivelmente, “um santo e
feliz Natal e um próspero Ano Novo” – frase
completamente impessoal que parecia ter sido
retirada de um convencional postal de Boas
Festas dos mais antigos. Aliás, em Pedro tudo
era completamente convencional. Era o típico
homem de negócios com tudo certo, definido e
estereotipado, desde os dia e a hora em que
fazia amor com a mulher (infalivelmente às
terças, às 11h03 da noite), até às reuniões de
trabalho, a visita natalícia à mãe, o dia dos
pagamentos, o dia das cobranças… Toda a sua vida
era mecânica e oca, sem qualquer espaço para o
imprevisto, para o ocasional, ou para algum
acontecimento de teor mais humano que lhe
acrescentasse um pouco de sal ao quotidiano.
Cada dia que passava, Pedro
se tornava menos humano e mais autómato, mera
marioneta manipulada pela rotina, devorada pelos
dias, desprovida de sensações ou de sentimentos.
Por isso, os dez minutos que tinha calendarizado
para passar com a mãe todos os natais,
exigiam-lhe um sacrifício hercúleo, só comparado
ao dia de aniversário da filha em que tinha por
obrigação ir jantar com ela, que estudava ballet
em Londres e vinha sempre a Portugal nessa
ocasião.
Entre uma mãe demente e uma
filha alucinadamente sonhadora, Pedro preferia,
sem dúvida, a sua plácida esposa, que desde que
tivesse as unhas de gel, a sessão diária no
cabeleireiro, o botox necessário e uma outra
cirurgia plástica de vez em quando, não o
incomodava. Aliás, a constância de Pedro era uma
bênção, pois como ele só a ocupava às terças, às
onze horas, ela tinha a semana toda para dar,
literal e metaforicamente, umas voltinhas com o
seu motorista, vinte anos mais novo e dono de um
corpinho, de fazer descer os anjos à terra
(mesmo que sejam assexuados).
- Ai, ai, que velho que
está o meu Jacinto!! Que dirá o meu pai?? E eu
que recusei namoro ao Toino dos Cântaros! Se eu
soubesse! Agora vou casar-me como um velho... –
ficava-se a lamentar Luísa.
Rita, uma das empregadas do
Lar,
levava-lhe
a medicação e confirmava-lhe, todas as manhãs,
que ela ia ser a rainha do baile, o que a
deixava doida de alegria, durante trinta
segundos, para depois voltar a dizer o mesmo:
- Sabes, mãe? Quero “ser a
moça mais linda do povoado”!
E era. E seria sempre, por
mais que as teias da doença lhe aprisionassem a
alma o corpo e a vida.
Dora Nunes Gago
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