cena II
semi-obscuridade. duas grandes marionetas ao fundo.
alguns relâmpagos iluminam os quatro cantos
do espaço cénico.
marioneta 1
(voz
masculina) - no princípio era eu
marioneta 2
(voz
masculina)
-
e
eu…
marioneta 1 - reconheci um outro eu
marioneta 2 - no princípio
marioneta 1 - a minha memória
rompia por entre molduras a visão triturada por um corpo quente
marioneta 2 - no princípio
marioneta 1 - as memórias portáteis não eram parasitas da existência
acompanhavam, com o seu significado secreto, a melodia de um corpo
que vibra a meu lado
marioneta 2 - no princípio
tambores. várias
figuras cruzam o palco. caem. levantam-se.
voltam a cair. segue-se um trovão. escuro e um longo silêncio.
luz.
marioneta 2 - no princípio era a luz. e da luz…
marioneta 1 - irrompeu um marinheiro.
ouve-se a voz da segunda veladora de
“o marinheiro”
de
fernando pessoa. só
depois entra em cena o marinheiro
que, entre os lábios, transporta um cravo
voz da 2ª
veladora -
“Sonhava
de um marinheiro que se houvesse perdido numa
ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves
vagas passavam por elas... Não
vi se alguma vez pousavam... Desde que,
naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não
tinha meio de voltar
à
pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria
que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma
outra pátria, uma outra espécie de país
com outras espécies de paisagens, e outra gente,
e outro feitio de passarem pelas ruas e de se
debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria,
e ele nunca deixava de sonhar, de dia
à
sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava,
orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite,
estendido na praia, de costas e não
reparando nas estrelas”.
marinheiro
(como se
meditasse)
- o meu olhar cavalga ondas
suaves como pele
e tu
sacias a minha fome nos copos
nas madrugadas de esperança
entra bosch
na cadeira de rodas
bosch
(a medo)
- tu?
marinheiro
(sem ligar)
- sim.
bosch
(decidido)
- porquê?
marinheiro
(num largo sorriso e num quase grito)
- porque
fui levado
à
atroz conclusão de que o seu olhar
jamais
navegará
o meu sorriso
que...
sentirei o seu andar nas minhas mãos
bosch
(nervoso)
- e…
a maçã?
o marinheiro leva a mão ao bolso e dele retira uma maçã
marinheiro
(forte)
- aqui está
bosch
(indiferente)
- interessante
marinheiro
(mais forte)
- aqui está
ela ante os nossos olhos como se fora um continente
livre
inundado pelo vinho
e
fabulosos bordeis
bosch
(a medo)
- que vais
fazer?
marinheiro
(num tom
decidido e forte)
- toma-a…
bosch
(no mesmo tom)
- que vais fazer?
marinheiro
(com
autoridade)
- coloca-a na cabeça
bosch
(mais nervoso que nunca)
- eu…
marinheiro
(num grito)
- vá!
ouve-se de novo a voz da segunda veladora
voz -
“Durante anos e anos, dia a dia, o
marinheiro erguia num sonho contínuo
a sua nova terra natal... Todos os dias punha
uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já
tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas
lembrava-se já
de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos
numa baía do norte, e como era suave
entrar, noite alta, e com a alma recostada no
murmúrio da
água
que o navio abria, num grande porto do sul onde
ele passara outrora, feliz talvez, das suas
mocidades a suposta…”
bosch
coloca a maçã
sobre a cabeça. o marinheiro dispara um tiro. bosch cai - morto. o
marinheiro guarda o revólver. ri. dirige-se ao público
marinheiro
(explicativo)
- não se vislumbra o orifício
de saída
a bala deve ter ficado
alojada no seu cérebro
caiu
e a maçã
que estava sobre a cabeça rolou pela sala
... na mesa havia quatro garrafas vazias de genebra
e
na sua fronte um orifício de sete milímetros
de diametro
um buraco circular
e
escuro
por onde entrou o projéctil repleto de literaturas
o marinheiro sai. entra mercedes benz aos gritos
mercedes - porquê?...
mercedes benz empunha uma navalha e espeta-a no peito.
morre. ouvem-se aplausos e assobios.
sobrepondo-se ao som de fundo - uma valsa -
ouve-se um trovão. só
depois, muito depois, o marinheiro cruzará
o espaço
cénico e lançará
o
cravo - que transportou na boca - sobre os
corpos que jazem no chão.
fim
cascais - julho de 2015
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