Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências .
ns . nº 54 . outubro-novembro 2015 . índice


 
Trinta e quatro anos depois,
o romance ganha segunda
edição e traz prefácio de
Marcos Faerman censurado

à época da ditadura militar
.
 

ADELTO GONÇALVES

‘Os vira-latas da madrugada’: a luta da memória contra o esquecimento - entrevista de Rivaldo Chinen*

 
 
SÃO PAULO - Foram poucos os livros de ficção que tiveram o golpe militar de 1964 como pano de fundo. Os vira-latas da madrugada, de Adelto Gonçalves, publicado, em 1981, pela Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, é um deles. E só agora, 34 anos depois, ganha uma segunda edição pela Associação Cultural LetraSelvagem, de Taubaté-SP, trazendo um acréscimo até aqui desconhecido: o prefácio escrito pelo jornalista Marcos Faerman (1943-1999), que chegou a ser impresso na primeira edição, mas que foi arrancado página a página por pressões de “forças ocultas”, já que à época a editora estava sob intervenção do então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Livro que encantou e representou a geração que lutou contra o golpe militar de 1964, o romance havia se tornado uma raridade buscada com sofreguidão em sebos e sites de obras impressas. E ainda tem tudo para encantar também as novas gerações.
 

 

Adelto Gonçalves, 63 anos, é jornalista desde 1972, com passagens pelos jornais A Tribuna, de Santos, O Estado de S. Paulo e Folha da Tarde e pela Editora Abril. É doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (usp). Seu trabalho de doutorado Gonzaga, um poeta do Iluminismo, sobre Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), foi publicado em 1999 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro.

Em 1999, com bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), desenvolveu em Portugal projeto sobre a vida e a obra do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), publicado em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa, sob o título Bocage – o perfil perdido.

Foi professor de Jornalismo, Literatura Portuguesa e Língua Portuguesa em várias universidades privadas.

É autor também de Mariela morta (Ourinhos, Complemento, 1977, contos), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002, romance), Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997, ensaios e artigos), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012, estudo biográfico e antologia) e Direito e Justiça em Terras D´El Rei na São Paulo colonial: 1709-1822 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015, ensaio histórico).

 Para anunciar a segunda edição e rememorar a trajetória da primeira edição de Os vira-latas da madrugada, o autor concedeu a seguinte entrevista:

 

Como é ver o seu romance republicado 34 anos depois?

Eu nunca mais havia relido o livro, o que fiz só agora para acompanhar a revisão para a segunda edição. E acabei me surpreendendo, ao descobrir o que eu era, ou seja, o adolescente que escreveu aquele romance. Fui tentado a reescrever algumas passagens, corrigir alguns pequenos erros de gramática ou mesmo retirar algumas expressões em nome do ideal do politicamente correto de hoje, mas, por fim, optei por deixá-lo praticamente como apareceu em 1981, mantendo o tom coloquial e "espontâneo" da narrativa, que mais se aproxima da naturalidade das personagens do beira-cais. Para quem não sabe, é preciso dizer que o romance é uma história de amor vivida no bairro do Paquetá, zona das boates e das casas de prostituição do porto de Santos, por dois jovens, um malandrinho do cais e uma jovem prostituta. A trama atravessa o período em que aconteceu o golpe militar de 1964, que foi especialmente duro e marcante naquela cidade portuária.

 

Como você teve a ideia de escrever o romance?

Em 1964, eu tinha 12 anos de idade e assisti ao golpe militar da janela de minha casa. A morada de meus pais era ao Largo Teresa Cristina, 27, defronte para o prédio do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, localizado à Rua General Câmara, cuja lateral direita dava para a praça. Foi por ali que chegaram os soldados da Polícia Marítima, do comandante Seco, ostensivamente armados. Da janela, vi como alguns daqueles homens de uniforme azul com metralhadoras em punho e longos bastões — que no cais eram mais conhecidos como “pés de mesa” — escalaram o muro dos fundos do sindicato, assumindo posições estratégicas. Depois, ouvi o estilhaçar de uma vidraça do edifício do sindicato, talvez rompida por uma granada de efeito moral ou uma pedra. E, então, percebi algumas poucas cabeças que se desenhavam nas vidraças: eram os dirigentes do sindicato acuados, provavelmente à espera de notícias que pudessem vir de Brasília sobre um eventual esquema de resistência ao golpe. Mais tarde, ainda da janela, pude perceber uma aglomeração na Rua General Câmara com o Largo. Então, tomei coragem e desci à rua e vi quando alguns daqueles homens que estavam acuados na parte de cima do sindicato desceram as escadarias, sob a mira de armas, e entraram numa espécie de “corredor polonês” aos tapas e pescoções em direção a um caminhão coberto. Entre eles, lembro-me de ter visto Manoel de Almeida, que era o presidente do sindicato, e Rafael Babunovitch, diretor. Com outros diretores e alguns associados solidários, seriam conduzidos para o navio-prisão, que por muitos dias ficaria ancorado em frente ao porto de Santos com sua presença ameaçadora, tal como uma forca na praça principal de uma pequena cidade. Aqueles acontecimentos ficaram-me na memória e me levaram, anos mais tarde, quando eu tinha 17 ou 18 anos de idade, a escrever num caderno escolar os primeiros apontamentos para um romance. Tanto Almeida como Babunovitch, “o homem de bochechas vermelhas” e que “parecia ter uma batata quente na boca quando falava”, são personagens que aparecem disfarçados, ao lado de tantos outros, naquele romance que reescrevi, dez anos mais tarde, à época em que era subeditor de Política na redação do jornal O Estado de S.Paulo.

 

Já naquela época, tão jovem, você tinha conhecimento do que acontecia na vida política do País?

Eu não sabia por que aqueles acontecimentos se davam, mas a minha solidariedade era para com aqueles que eram agredidos a caminho do caminhão. Em 1961, eu havia me formado na escola primária do Sindicato dos Operários Portuários, com 10 anos de idade. Eu ingressara na escola não porque meu pai trabalhasse na Companhia Docas, mas porque ela ficava perto de casa e um amigo da família, portuário, havia se proposto a me apresentar como seu sobrinho. De modo que houve um arranjo para superar as normas, já que a escola, a princípio, só poderia ser cursada por filhos de portuários. E o meu pai era dono de um pequeno armazém de conserto de sacaria de café na Rua Tuiuti, 34, à beira do cais do Valongo. Fosse como fosse, saí daquela escola como um de seus melhores alunos. Ao final de 1961, o então presidente da República, João Goulart (1919-1976), fez uma visita ao sindicato e, na ocasião, cumprimentou uns três ou quatro daqueles alunos que haviam recebido medalha de aplicação ou de honra ao mérito. Eu fui um deles. Lembro-me ainda hoje do cumprimento dado pela mão suarenta do presidente. Em 1964, eu cursava o segundo ano ginasial no Colégio Comercial Coelho Neto e assistira, indiferente, à pregação de uma professora que costumava angariar adeptos para as manifestações que a União Cívica Feminina organizava contra o governo Goulart. Até porque não nutria nenhuma simpatia por aquela gente...

 

Além do casal Pingola-Sula, que vive a história de amor em meio aos acontecimentos políticos de 1964, há outros personagens marcantes no livro. Quais são?

O meu editor, o escritor Nicodemos Sena, ficou impressionado com o domínio que o narrador de Os vira-latas da madrugada demonstra ter do seu assunto, descrevendo com segurança, desenvoltura e riqueza de detalhes os movimentos e caracteres físicos e psicológicos das personagens do beira-cais de Santos.  E pressupôs que eu tivesse feito uma detida e cuidadosa pesquisa, a exemplo dos grandes repórteres que praticavam o jornalismo literário. Confessou-se surpreso quando soube que o autor havia realizado essa proeza com tão pouca idade. À época, eu ainda nem havia feito o curso de Jornalismo, mas lera e relera um conto-reportagem que o escritor João Antônio (1937-1996) escrevera sobre o cais de Santos para a revista Realidade, lembra? Depois, você, Chinem, me apresentaria ao João Antônio em São Paulo, recorda? Ficaríamos amigos... Mas a verdade é que quase todas as personagens de Os vira-latas da madrugada foram inspiradas em pessoas com as quais eu convivia no beira-cais. E os diálogos foram reproduzidos da maneira como aquelas pessoas falavam ali no dia-a-dia do cais. Relendo o livro, vejo que há referência ao advogado Esmeraldo, o ex-prefeito Esmeraldo Tarquínio (1927-1982), que seria nosso colega de faculdade. E até ao velhote que ficava na janela do 27 da praça, que, na verdade, era o meu pai. Muitas personagens carregam os nomes daqueles que me inspiraram, como o vagabundo Plínio, o aleijado Gentil, e Braz, o porteiro do lupanar do 275 da Rua General Câmara. Outros foram disfarçados, como Rosa, a louca. Já outras personagens são imaginadas, como o malandro Quirino, ex-marítimo, e o escultor João de Angola. Já o ex-marujo Marambaia, que promovera vários motins a bordo, então coletor de apostas de jogo de bicho no bar Estrela da Manhã, embora seja inspirado no foguista Bahia, é uma espécie de alter ego do autor, um anarquista desiludido com a humanidade, que enlouquece, toca fogo num bonde e arrasta estudantes em passeata até levá-los a invadir a sede da prefeitura de Santos, imaginando que estava tomando o poder no País, à espera da chegada de uma imaginária Coluna Prestes, que viria de Mato Grosso. O final do livro é marcado por um manifesto deixado por Marambaia, que seria lido na praça por Teodorico, um tipo considerado lunático. Nesse manifesto, Marambaia dizia que “a capacidade de discordar é a única possibilidade que a humanidade tem de não ser levada irremediavelmente para o abismo obscurantista”. 

 
* Rivaldo Chinem foi repórter da Folha de S. Paulo, revista Veja e de O Estado de S. Paulo, tendo colaborado na imprensa alternativa (Opinião, Movimento, Versus e Repórter). É autor de Terror Policial, com Tim Lopes (Global); Sentença: padres e posseiros do Araguaia” (Paz e Terra); Imprensa alternativa: jornalismo de oposição e inovação (Ática); e Marketing e divulgação da  pequena empresa (Senac), entre outros. 

 

Há um certo maniqueísmo nas personagens, ou seja, os pobres são todos bons e os ricos, maus...

De fato, esse maniqueísmo foi apontado pela professora Maria Angélica Guimarães Lopes, em resenha que publicou na Revista Iberoamericana, da Universidade de Pittsburgh-EUA, em 1985, que sai agora como posfácio na segunda edição do livro. Ela diz que no romance há “malandros simpáticos e prostitutas de coração de ouro”, lembrando que o universo do livro, com sua organização e códigos próprios, lembra o de Jubiabá, de Jorge Amado (1912-2001), os livros de Plínio Marcos (1935-1999) e João Antônio e até o Querelle, de Jean Genet (1910-1986). Mas destaca a doçura do autor ao manipular as personagens, dizendo que, não fosse isso, este seria um livro soturno e desesperador. De fato, há muitas mortes no livro, a de João de Angola (que morre atropelado ao ganhar a sorte grande), de Quirino, torturado no navio-calabouço, de Irene, sua amante, a striptease do Old Kopenhagen que se suicida em meio a um ensaio na boate, e a de Marambaia (executado pelas forças da ditadura militar). De certa forma, o livro é também profético, pois denuncia os pelegos dos sindicatos, aqueles que faziam um discurso em nome dos trabalhadores, mas o que queriam mesmo era se dar bem na vida...

 

Talvez por isso a primeira edição do livro, depois do lançamento, voltou à gráfica e teve o seu prefácio arrancado...

O romance ganharia em 1980 uma menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego da Livraria José Olympio Editora e seria publicado no ano seguinte. Tantos anos depois, também seria vítima da ditadura militar. Lançado na sede da editora no dia 30 de abril de 1981, juntamente com outras obras premiadas pela comissão julgadora, o livro trazia um prefácio em que o jornalista Marcos Faerman dizia que aquele “romance de sons delicados e histórias tristes” não agradaria “àqueles que venceram em 1964”. Considerava-me ainda um dissidente brasileiro, a exemplo do tcheco Milan Kundera, que dizia que a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. Àquele lançamento coletivo, estiveram presentes os ex-ministros Darci Ribeiro (1922-1997) e Eduardo Portela, o compositor Tom Jobim (1927-1994), cuja irmã Helena ganhara o prêmio principal do concurso, e ninguém menos que Luís Carlos Prestes (1898-1990), o Cavaleiro da Esperança, por sinal, também personagem ocasional do romance. Como se sabe, naquela noite, houve uma bomba que explodiu no RioCentro antes da hora e fez gorar uma tragédia que poderia ter provocado muitas vítimas. Talvez esse episódio tenha levado a editora a pensar duas vezes. Até porque, em dificuldades financeiras, estava sob intervenção do então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Por isso, a edição foi recolhida à gráfica e o livro distribuído sem o prefácio. Guardo comigo, porém, um exemplar que traz o texto impresso.

 

À época do lançamento, lembro-me que o livro fez sucesso, ganhando bastante destaque na imprensa, não é mesmo?

Saiu reportagem em Estado de S.Paulo, assinada pelo poeta e jornalista Moacir Amâncio, e o professor Cláudio Lembo, que seria governador de São Paulo, escreveu uma resenha na Folha de S.Paulo. Marcos Faerman, irritado com a censura, publicou trechos do prefácio no semanário Movimento, de São Paulo, da imprensa alternativa. Depois, como professor da Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, para ajudar seus alunos, ele fez uma lista daquelas que considerava as obras-primas do jornalismo literário. A lista é encabeçada por A sangue frio, de Truman Capote, e reúne Honrados mafiosos, de Gay Talese, segundo da lista, México rebelde, de John Reed, sétimo, e Casa de Loucos, de João Antônio, nono. Nessa relação que hoje circula em vários sites, Os vira-latas da madrugada aparece em 10º lugar, antes de vários clássicos da literatura universal.

 
 
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Maria Estela Guedes
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