Revista TriploV de Artes, Letras & Ciências .
ns . nº 53 . agosto-setembro 2015 . índice


MAURÍCIO GOMES

Sangue cinza
 

Mauricio Gomes é professor de Literatura e Especialista em Jornalismo Cultural. Seu primeiro livro (Des) Caso com a poesia: Inquietações foi lançado em 2012. Em Portugal, participou de uma coletânea de poemas, o nome do livro é Poética. O seu trabalho poético também está na Revista de poesia e arte contemporânea Mallarmargens. Em 2014 participou do Festival de Poesia Internacional no México e do Festival de poesia da Unesco, também no México. Agosto/15 sairá o livro em bilíngue, português-espanhol, com o título: Sangre Gris, no México. Em junho de 2015, participará do 2ª Encontro de poesia Internacional, novamente no México.

 

Entre meus dedos

Fixamente me olho e não me reconheço
Pétalas sombrias e artificiais caem leves na mesa de vidro
Natureza-morta enfeita a parede da sala 
Vejo pinceladas de pelos brancos na barba mal feita
Cabelos vadios e brancos 
De ver o arco-íris todos os dias
O tempo vem branco
Branco como a bruma sobre as águas do pântano
Leve ao sopro de Zéfiro
Estranhamento geométricos desenhados pela minha face rubra
Estranhas sensações
Um sorriso sem vontades
Uma postura imposta ao sabor do dia
Uma xícara de porcelana com restos de café frio
Farelos de pão, restos de mim jogados na mesa
Não sei de mim depois do café bebido
Não sei de mim depois do pão comido
Formigas terminais caminham para o nada
Uma para
E me olha e não ne reconhece na transitoriedade do meu ser
Rápidos segundos
E eu a esmago entre meus dedos
Assim, meu tempo entre meus dedos
Esmagados

Ela se foi!

Ficou o gosto do seu hálito na minha boca

Ficou o seu cheiro grudado na minha pele

Ela fumava feito puta

Seu trago labareda me tragava

Eu via vaga-lumes surrupiados como lamparinas nas noites de lua minguante

Suas asas eram fogos vindos da boca de um dragão

Ela dançava

Seu ventre imolava a dor do amado mortal

Mexia as ancas alucinadas

Seios expostos como picos inalcançáveis

Alucinógenos movimentos

Ela se foi!

Ficou sua sombra pelos vértices do meu corpo

Ficou sua voz

Entre ouvidos

Gemidos

Sua insustentável percepção do nada

Os lençóis enrugados e amassados pela sua carne fresca e saborosa

Ela se foi!

Ficaram seus olhos da madrugada

Famintos e insaciáveis

Brilhantes como uma selvagem felina

À espreita da presa

Presa pela jugular

Das presas da fêmea

Ela se foi e deixou tudo

Rasgou meu peito

E bebeu um vinho da região do Douro

A taça quebrada na moldura de um Dalí falsificado

E o tanino escorreu feito sangue pelas ancas de Gala

Ela se foi

E me deixou entre cacos e líquidos intensos e aromatizados

 

O pio da coruja

 

Paro!

Desisto do momento!

Desisto da Lua e de Vênus

O meu tempo parou!

Meus olhos

Não encontram os ponteiros

Do tempo

Paro!

Paranoia

Paro!

Paroxetina

Desisto do dia

Bílis negra negra negra

Colisão com a minha dor

Noite visceral

Pio da coruja

Pia um dó

De dor latente

Pia um lá

Lá na minha alma

Parado, fico!

Sem ação

Sem vontades

Sem desejos

Sem orações

Sem Deus

A coruja pia

Na pia do meu banheiro

Solta suas notas nos meus ouvidos

Martelam sol

Martelam ré

Martelam meus devaneios.

Paro!

Desejo Thanatos

Suavemente, ele me toca

Seu sopro é gélido

Quero a quietude da noite

Quero apenas um dia para morrer

E depois acordar

Preciso agora

O tempo se dissipou

O relojoeiro é cego

O tic tac da coruja

Amortece a morte

A moira tece

O meu manto sepulcral

Um corte rápido aliviaria

Um projétil rápido aliviaria

Paro!

Paronomásias

Eros amanhã

Thanatos, agora

O pio da coruja é como uma bigorna

Atravessa meus ouvidos

Vibrações que aceleram minha vontade

Agora!

 

Preferências refutáveis

 

Prefiro o frio
Com suas nuances e sutilezas de portas e janelas fechadas
Prefiro o calor
Com sua virilidade suada e a boca sedenta e a pele ígnea
Prefiro o outono
Com suas pinceladas nas costas das nuvens e suas tardes angelicais
Prefiro a primavera
Botões explodem cores e espalham vertigens pelo ar
Prefiro amar
Com suas incertezas, ilogismos e delicadezas
Prefiro sentir
Todo o meu corpo
Prefiro sorrir
De mim e do outro espelho
Prefiro chorar
Lágrimas reais como ácidos no meu rosto não mais juvenil
Prefiro fogo
Com seus dedos sarças incandescentes
Prefiro água
Depois de ter bebido a última gota
Prefiro o eu
Depois do espelho
Prefiro o sim
Quando tenho a certeza de contradizê-lo
Prefiro o não
Quando todos têm razão
 

 

Sou sol ou...

O sol aqui está definido sobre a plástica das nuvens de outono.
O que sou?
Rio descontroladamente com esta pergunta.
O que sou?
Posso ser a presa à espreita da morte
Sou a inexplicabilidade do pó nos meus poros
Posso ser aquele ébrio abraçado ao poste da esquina de sua casa
Posso ser a puta usada e gozada na carne fria
Posso ser a irreversibilidade do tempo
Posso ser o cão sarnento diante do diabo 
Posso ser a palavra rasgada e sangrada na boca do suicida
Ah, o eu de milênios anda cego e malabarista 
Se desviando da foice de adamântio 
Posso ser a mosca na carne podre
Posso ser a lágrima do poeta notívago terminal sem vontades de palavras
De olhares brancos na folha branca
Sem nuvens brancas 
Pareidolias,
Ah, imagens incandescentes miram meus olhos 
Vejo gafanhotos,
Tigres brancos feridos pelo sopro do vento
Vejo anjos sem asas e não me vejo
Posso ser ser
Posso ser ser
Posso ser sermão no claustro de um mosteiro hindu
Posso ser o osso encontrado pelo caminho sem direção 
Queria ser aquele que esquece o gosto amargo da lambida do amante
Queria ser aquela assassina elegante 
De salto agulha na goela da vítima
Matando a memória que grita e implora ensurdecida
Os ecos ecoam pelos ladrilhos daquela rua reta e Rusga de gatos negros e ladrões e famintos
De restos de pernas, braços e bocas e cabelos e dentes e corações
Ah, posso ser tudo o que não é
Ah, posso ser todos que não são
Ah, posso ser tão somente o outro
E não ser o eu mim 
Transformo-me além da dor e da minha dor
Transubstancio o meu mijo acima do céu negro
Estou além da carne carniceira carnificina carcomida 
E a chuva desce ácida pelos campos de girassóis
E pingam torrentes 
E pingam nas carnes se desfazendo e se decompondo
Pelas areias que escorrem pela pele rachada e envelhecida do asfalto
Posso ser os lábios ardentes e incandescentes da freira beneditina
Ao olhar Jesus Cristo nu na cruz da parede do seu claustro claustrofóbico
Posso ser o corpo não batizado não ungido não ritualizado 
Posso ser a folha seca de outono no calor de um ninho de pintassilgo
Posso ser o que eu não sou
Posso ser o que o outro não é
Posso ser a mão que abriu a porta do inferno
Posso ser os olhos miseráveis do Cristo flagelado
na solidão do calvário segundos antes de morrer
Posso ser o corpo terminal na complexidade do fim
Posso ser o sereno no rosto da viúva que uiva lasciva
Posso ser o poeta desconhecido
Anônimo lâmina afiada cortando o fogo da palavra
Seu grito sai pelas frestas do meu eu 
E do meu outro eu
Sou!
 

 

A noite é de quem?

 

Nua

Negra

Noite

Corpo tatuado

Andrógina

Vaga sozinha

Na imensidão do Cosmos

Perambula entre o céu e a terra

Entre desertos e povoados

Seus braços multiformes

Abraçam espinhos e rochedos

Silenciosa

Seus dedos deslizam pelas águas oceânicas

Alcançam o Nilo e consolam o Ganges

Entra sorrateira nas frestas das janelas

E deita como uma prostituta entre os lençóis

E roça sua pele negra nas coxas dos amantes

Sente o tremor das peles suadas

E o momento do gozo

Pastoso e branco

Escorrendo pela sua face sombria

Peregrina sem caminhos

Sem fé

Pagã

Levemente, entra pelos vitrais dos templos milenares

E balança seus cabelos negros

Refletidos com a luz dos círios

E rompe o silêncio com sua volúpia

Sacrilégios aos santos e anjos

Profana a arte de Rembrandt e El Greco

E lambe a face de Cristo

Seus ombros  caem nas terras virgens

E atravessam rios como lençóis enrugados

E vigia o pescador, sozinho

À espera da fisgada

À espera de um conto para contar

Segue

Com seu destino

Traçado pela explosão

Pela confusão

E distorção

Há milênios

Segue

Vai, sem caminho

Sem ninho

E com sua veste negra

 Abraça as mariposas

Confusas e difusas

E se joga nas asas dos morcegos

Uiva com os lobos das estepes, solitários lunáticos

Pirilampos brincam com seus cabelos

E vagam luzes aos arredores dos vilarejos

Ah, Noite!

Espectral

Negra

Ausente de luz

Senhora de todas as cores

Seu véu

Cobre meu corpo nu

Despido de pavor

De dor

Me recolho ao seu umbigo

E volto ao seu ventre

Negro

Negro

Negra

 

O mal é a outra face do bem

 

O mal não sente dor

Ele

Racha o asfalto

Rompe as vidraças bizantinas das catedrais

Pula muros com arames farpados

Entra pelas frestas dos portões troianos

Busca

 A carne pegando fogo

O riso de Aristóteles

O mal não sangra

Ele

É a ferrugem das grades dos encarcerados

Come a terra adubada por carnes nas valas desconhecidas

Bebe dos rios poluídos por excrementos

Se lambuza dos chorumes e da podridão da carne se desfazendo ao sol

O mal não chora

Ele

Rasga a carne maltratada

Lança o projétil

Dá o primeiro beijo

Berra e baba e goza

Descansa nas sarjetas cheirando a crack e cocaína

Enforca os olhos cansados

Despe a virgem imaculada

Sem pudor, atravessa o templo e lambe as lágrimas de Cristo

Urina nas lamentações dos árabes e judeus

Goza ardentemente nas camas adúlteras

O mal é político

O mal é a outra face do bem.

 

A sombra da névoa

 

Os paralelepípedos daquela cidade fantasma

Com seus desejos tectônicos

Poros que exalam agonias e gritos e silêncios

Fraturados

Pelas peles negras

Ao sol

À noite

À chuva

Não sentem mais  o peso dos corpos

Todos morreram

Dentro da rocha

O tempo racha

Rasga os interstícios da sordidez

Rasga as tramas da solidez

Da solidão daquele vilarejo

A porta feita com madeira lei

Daquela igrejinha

Encravada no alto daquele morro

Está aberta

Entre teias de aranha

E aranhas que tecem e destecem o tempo

Só há ecos da voz do vento

Que saem pelos buracos das janelas

E vão ao encontro da natureza

Morta

Folhas secas

Ressecadas pela amargura dos moradores

Adubos da aridez do tempo

Espalhadas pelos túmulos daquela cidadezinha

Rasgos de arrependimentos atravessam as lápides

E singram pelas vias como navios sem bússolas

E veias enrugadas pelos magmas

Deslizam como sangue

E estremecem a cidade fantasma

E estremecem os paralelepípedos

Tudo ali é sombra da névoa vinda das montanhas asfixiadas pelo abismo

O sopro da morte é o pó da estrada

Sugando as vidas que pulsavam naquela cidadezinha

E caminha sem pressa coberta pela névoa de asas noturnas

Sua sombra carrega o peso das cabeças arrancadas

Sem beatitudes

Sem clemências

 

Tornar-se mulher!

Nasceu!
Menino ou menina?
Varão?
Macho?

Não!
Seu nome é feminina.
Menina,
Vagina.

Quem é?
Quem sou?
Tornar-se!
Paradigmas!

Eva!
Pandora!

Escravizadas!
Maltratadas !
Humilhadas !
Submissas !
Violentadas!
Estigmatizadas!

Libertadas!
Valorizadas!
Reconhecidas!
Respeitadas!
Reconstituídas!

Simplesmente, tornar-se!

Simplesmente, cromossomas XX!

Quem explica?
Quem decifra?
Quem acredita?
Quem desmistifica?
Quem?

Sua vida sangra entre as pernas
Sua vida sangra entre os tempos.
Escorre seu fado.
Veio a quê?
Nasceu para quê?
Sustenta sua dor e ampara toda dor.

Espasmos!
Espasmos!
Colicamente, segue seu caminho,
Sua aceitação,
Sua predestinação:
Tornar-se!

Seu corpo:
Só desejo?
Só cheiro de sexo?
Só copular?
Só gritos e sussurros?
Só lascívias?
Só luxúrias?
Só pecados?

Seu nome é culpa.
Seu nome é marca.
Seu nome é mercadoria.
Seu nome é sexo.
Seu nome é puta.
Seu nome é conscupicência.
Seu nome é devassa.
Seu nome é bruxa.

Estigmas! Estigmas!

Igreja – Família – Estado
Quem carrega a eterna mentira?
Quem inventou a mulher?

Somente ela pode parir.
Somente ela pode fazer-se outra.
Fiat lux!

Nasceu!
Menino ou menina?
Varão?
Macho?

Não!
Somente um ser que nasce para tornar-se mulher.

 

Enigmas matemáticos

Não quero ser decifrado

Nem na minha post mortem

Carrego o descaso do tempo

Impregnado feito mármore no meu corpo

O vento que toca uma sinfonia

Um réquiem crepuscular

Para confundir minhas pálpebras

E os pelos do  meu corpo

Um corpo já destituído de cruzes

Calcificado

Pelo calcário que escorrega pelos poros

E entra pelas artérias

Movimenta-se

Pó branco e líquido vermelho

Calcificam minha matéria

Objetiva-se!

Enrijeça meu bombear

Numa explosão vulcânica

Lavas lançadas

Escorrem feito  um rio caudaloso

À procura das margens

À procura dos vértices

Meu corpo cobre

Encobre os segredos

Segregados e sacrossantos

Meu corpo samurai

Ritualizado

No fim, o seppuku

No fim, um poema escrito

No fim, um absinto

No fim, uma adaga

No fim, um corte em cruz

Meu corpo sem anticorpos

Se despe e

Repele esta ausência de superfície

Pele interia arrancada

A dor que atravessa

E rompe o silêncio que me apavora

Rompe esta opacidade da dor

Grito da carne

Dilacerante

Vai sem direção

Qual fantasma

Que atravessa a matéria

E incorpora outra vida

Meu corpo

Ser suicida

Carne trêmula de pavor

Das bigornas de bronze

Rompendo os metais

Rompendo  as batidas do coração

E a noite com seus guindastes

Abrindo frestas nas paredes do meu corpo

Meu corpo

Sem compassos

Códigos milenares

Indecifráveis

 

Sou um verme que come a própria carne

 

Exijo de mim culhões!

Força bruta-pedra

Enjaulada

Faminta.

O mundo é um embuste

 E uma canalhice

Uma farsa grotesca

Uma aporia

É preciso bater ou levar porrada

E se preciso for, matar.

Rupturar com a inocência

Invadir os olhos silentes

Chacoalhar o perigo

 E dar o preciso precioso veneno

E dar o último beijo na sombra do infinito

A última transa

O último gole de absinto

O último toque fraturado

A última dor dilacerada

 E rompida pela desgraça do dia

E comer da carne sem sentido

Beber da taça envelhecida

E satisfazer os meus fetiches

E matar e arrotar pantagruelicamente

E morrer com desejos fálicos

 E corrompidos.

Sou fraco!

Não consigo participar desta entropia  sem sentido

Nem do paraíso perdido

Nem do Jardim das Delícias

Não consigo!

Só sei ser só

Na miserabilidade da vida cheia de fetiches

Na janela, espero pelo horizonte que não vem

Na janela, minha mal sucedida tentativa de sentir a carne podre que não faz sentido neste corpo

Só levo porradas e porradas

Sou uma criação vil

Um verme que come da própria carne

Aporias, nada mais!

 
 
EDITOR | TRIPLOV
Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
 
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