Na sequência
do assassínio de Sidónio Pais, a quem Fernando
Pessoa chamou
Presidente-Rei, por ter assumido funções
ditatoriais, com desprezo pelo Parlamento e pela
Constituição,
e por ter cometido a imprudência de se rodear de
políticos monárquicos, as forças leais a D.
Manuel II, então exilado e desconhecedor do que
se passava, restauraram a monarquia em vários
pontos do país, sob a liderança de Paiva
Couceiro.
Durou a restauração
monárquica vinte e cinco dias, de 19 de janeiro
a 13 de fevereiro de 1919, tendo por isso ficado
conhecida por Monarquia do Quarteirão. Monarquia
do Norte é nome que lhe advém de a sede do poder
e principais acontecimentos se centrarem no
Norte, caso de Chaves, com os seus defensores
republicanos, e especialmente no Porto, onde foi
derrubada; Traulitânia e Reino da Traulitânia
são designações que se referem às sevícias
infligidas aos republicanos pelos partidários de
Paiva Couceiro.
Esta
contra-revolução foi a última e mais importante
tentativa de os monárquicos restaurarem o trono,
desde a implantação da República, a 5 de outubro
de 1910.
Ora o derrube da
Monarquia do Norte exigiu reação dos
republicanos, deliberações, estratégias,
movimentações de tropas em campo, ainda que tão
frágeis como o Batalhão Académico, que trazemos
à baila por um dos seus soldados, José Gomes
Ferreira, excelente poeta, se ter
voluntariado nele para uma militarmente discutida «jornada
de Monsanto», em Lisboa. Não obstante, tal como
anotámos em artigo anterior, Magalhães Lima, nas
suas memórias, Episódios da minha vida, refere-se ao capitão
Sarmento da Guarda Real (Guarda Nacional
Republicana, criada antes da República como
Guarda Real, e mais tarde chamada Polícia
Municipal) como se, sozinho, Sarmento Pimentel tivesse
derrubado a contra-revolução. José Gomes
Ferreira corrobora o que depois do derrube deve
ter permanecido como romântica aura de heroísmo
no espírito dos republicanos que de novo se
sentiam livres:
Mas a
breve guerra civil terminou com a entrada das
tropas republicanas no Porto, após a
revolução de 13 de Fevereiro de Sarmento
Pimentel [...]
José
Gomes Ferreira, A memória das palavras
"A revolução de Sarmento Pimentel", escreve
José Gomes Ferreira, sem pestanejar, exatamente
como Magalhães Lima. Um só homem contra os
exércitos de Paiva Couceiro! Aliás, o
próprio Sarmento Pimentel, nas suas Memórias
do capitão, conta como, dois dias depois do
sucedido, ia ele subindo pacatamente a rua de
Santo António, vê os ardinas a anunciarem a
altos berros uma estampa do Capitão Sarmento
Pimentel, vendida "a tostão para acabar!".
Litografia com desenho de Cristiano de Carvalho,
seu amigo, que se vendera nas ruas como manteiga. O herói
estampava-se na memória do povo e na nossa ganha
cada vez mais consistência.
Muitos anos depois, os jornais
relembravam a revolução de 1919, não poupando
elogios e carinho ao capitão. Na página
3 de O Primeiro de Janeiro de 13 de
fevereiro de 1969, por exemplo, lemos, num
artigo intitulado
«Um dia histórico»:
"Cerca do meio-dia, o
capitão Sarmento Pimentel, comandante do esquadrão de cavalaria
da guarda, mandou tocar a formar companhias, o
que logo foi feito.
Formadas as forças,
aquele destemido oficial dirigiu-se-lhes,
dizendo: VOU INICIAR UM MOVIMENTO REPUBLICANO NO
PORTO. QUEM QUISER QUE ME SIGA! VIVA A
REPÚBLICA!"
Nesses dias ainda Sarmento Pimentel não
recuperara da pneumónica que o manteve meses no Hospital
Militar, de acordo com documentação do Arquivo
do Exército, coligida no Convento de Chelas. Daí que
tremelicasse como o roseau pensant de
Pascal em cima do cavalo, ao bradar à multidão,
agora nas palavras que familiares retiveram,
mais sucintas do que as letras impressas: "Quem
for português, que me siga!"
Começamos a entender a tonalidade romântica
de Sarmento Pimentel, o seu estatuto de herói
solitário, apesar de José Gomes Ferreira ter
vindo a traçar um caminho usualmente considerado
neo-realista, não muito diverso daquele
que trilha Sarmento Pimentel nas
Memórias do capitão, por muito
ultra-romântico que seja o capítulo dedicado a
uma sua juvenil namorada que morreu tuberculosa. O
registo usual de Sarmento Pimentel é realista e
clássicos os seus fundamentos. Temos assim um
herói romântico na memória histórica portuguesa,
algo distinto da pessoa que escreveu textos
realistas, próximos da pena e da ideologia de
camaradas como José Gomes Ferreira.
Pena que
a PIDE e a Censura tenham cortado pela raiz
a hipótese de Sarmento Pimentel vir a constituir
obra escrita de vulto. A sua obra mais relevante
foi política e militar. Além das Memórias do
capitão, só deixou artigos dispersos, a
entrevista com Norberto Lopes, assinada por este
mas cuja autoria também se deve atribuir ao
entrevistado, Sarmento Pimentel - Uma
geração traída, e uma massa grande de
correspondência com os seus contemporâneos
ilustres em vários quadrantes, pois ao longo da
vida, embora exilado, foi reforçando
o seu prestígio com a criação de instituições
de valor (co-fundou a Casa de Portugal, em São
Paulo e o Partido Socialista), o que lhe
conferiu grande autoridade, exercida à
distância através da palavra, sobretudo junto
dos emigrados políticos no Brasil.
Em 1919, José
Gomes Ferreira era um jovem de 20 anos, camarada
de Letras de Sarmento Pimentel, se bem que a
pena de ambos ainda estivesse no ovo e nada nos
permita pensar que se conhecessem pessoalmente. O poeta dedica um capítulo de A memória das
palavras à Monarquia do Norte e sua
participação nela. Deixa-nos algumas
notas históricas bem valiosas, a exemplo desta:
“aqueles senhores de colarinhos engomados
e chapéus de coco que não vacilaram em
transportar canhões a pulso até à Rotunda nos
dias sagrados de Outubro de 1910”.
Ora aqui está uma
informação que responde a perplexidades minhas
face às manobras militares de Machado Santos nos três dias "sagrados" da
implantação da República. A dado
passo, andaria o cadete João Sarmento Pimentel
pela Avenida da Liberdade a colher
informações para o líder da revolução, Machado
Santos, quando este, na Rotunda, vê aproximar-se um
destacamento inimigo, segundo o seu próprio
depoimento n'
A Revolução Portuguesa: relatório de Machado
Santos: 1907-1910. Como à evidência não dispunha de
armas de defesa, mandou pedir «uma peça». De que quartel
mais próximo veio o canhão? - não sei dizer. -
Quem o transportou e como pelas ruas da cidade?
- também isso eu ignorava. Sabia, porque a
situação obriga a imaginar a cena, que o destacamento
de tropas monárquicas ficara ali à
espera que chegasse a peça, sem pelos vistos
nenhum movimento ofensivo. Chegada
a peça (quanto tempo depois era outra incógnita),
foi disparado um tiro (para o ar, atrevemo-nos a
declarar). Disparado o tiro, o batalhão inimigo,
que ali o aguardara sem atacar nem arredar pé,
virou costas e abandonou o terreno.
Fica agora claro que os
senhores de colarinho engomado e chapéu de coco
é que foram ao quartel mais próximo - o do Carmo
ou de Artilharia 1, em Campo de Ourique -,
buscar o canhão, o empurraram a pulso, e nesta
manobra não podem ter consumido menos de duas
horas, tempo durante o qual os monárquicos
aguardaram sem se mexer. Concluindo: Machado Santos não o sabia, mas as
tropas estavam todas do seu lado, sem destrinça
entre republicanas e monárquicas. Se o 5 de
Outubro foi uma guerra sobretudo civil e
razoavelmente pacífica, já as seguintes
fizeram sangue, prisão e muito exílio.
Mais adianta José
Gomes Ferreira, que o Café Gelo, esse Café Gelo
onde começa a surgir uma geração surrealista
específica, de onde tinham saído, décadas antes,
os regicidas, o Café Gelo também neste
período assistiu a atos de subversão,
como a queima de um retrato de
Sidónio Pais.
Sidónio Pais, não muito tempo antes da sua
morte, chamara a Belém Sarmento Pimentel, devido
à fama que este já granjeara, não só nos
sagrados dias da implantação da República e no
front, mas também no sul de Angola,
onde os alemães tinham penetrado e cometido um
morticínio, perto das cataratas de Ruacaná
(Cunene), fronteira com a Damaralândia, na
famosa Naulila. Comandou
ali um destacamento de Cavalaria 9 e outro de
boers, tendo sido condecorado pela sua valentia
e mérito militar no reconhecimento de vários
pontos. Se a Monarquia do Norte foi derrubada
por Sarmento Pimentel, a Sidónio Pais se deve o
comando das forças que tal permitiram. Palavras
de Sidónio Pais a Sarmento Pimentel, reportadas
nas Memórias do capitão, e informo que
este é um livro publicado no Brasil:
«Tenho as minhas dúvidas
de que os monárquicos não me roam a corda. Por
isso mesmo peço a Você que aceite o comando do
Esquadrão de Cavalaria da Guarda Republicana do
Porto que eu considero, e os burgueses da
liberal cidade também, garantia da República. E
Você sabe, ou acredita que eu tenho a causa da
Pátria e da República como a causa do nosso povo
que publicamente jurei defender.»
E foi assim que, Guarda
Real/ Guarda Nacional Republicana disposta para
a batalha, Sarmento Pimentel irrompeu na messe
de oficiais, no Porto, onde pacatamente se
banqueteavam os líderes da Monarquia do Norte,
disparando, não a Parabellum que empunhava na
mão trémula da gripe espanhola, sim estas
palavras igualmente fatais:
“Os senhores estão
todos presos!”
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No Arquivo do
Exército, entre outros documentos relativos às
ações do então capitão de Cavalaria João
Sarmento Pimentel (ver dois deles, em baixo), existe uma súmula biográfica que
refere mais uma condecoração, atribuída agora
pela sua iniciativa no derrube da Traulitânia. E
outra prova afetuosa de gratidão foi a oferta de uma Espada de Honra
pela Cidade do Porto, hoje conservada, supomos,
na Biblioteca Municipal de
Mirandela, onde se encontra igualmente o seu
espólio.
Vejamos então o
que fundamentou a atribuição de medalha a
Sarmento Pimentel, para depois perguntarmos por
que motivo a queria ele recusar:
«Tomou parte num
movimento revolucionário, de 13FEV19, iniciado
espontaneamente no Porto com forças da Guarda
Republicana a que o Oficial pertencia, movimento
esse com que o povo daquela cidade pretendeu
derrubar o governo monárquico que em 19JAN19
proclamara a monarquia no norte do país.
Por esse motivo
foi condecorado com a Medalha de Prata da classe
de bons serviços (O.E. nº 22 – 2ª Série de 5 de
OUT 19).
(É interessante
recordar que logo que a referida condecoração
lhe foi concedida, requereu o Oficial, ao
Ministro da Guerra, autorização para recusar o
dito galardão. Sobre esse requerimento, que foi
indeferido, existe um despacho do General
Comandante de Divisão [...])».
Uma observação se impõe: Sarmento Pimentel
foi realmente o motor do movimento que repôs a
República, daí que até o Estado Maior do
Exército o reconheça e o condecore.
Último comentário. Ele
requereu autorização para recusar a medalha, requerimento justamente
indeferido, porque a modéstia o obrigava a
recusar. Apesar de mal se aguentar nas pernas,
doente como ainda estava, bastou entrar na messe
e prender os oficiais trauliteiros que ali se
encontravam, afinal Estado Maior das hostes de
Paiva Couceiro, para acabar com aquela
contra-revolução, que considerava uma
fantochada, com um «quixotesco 'Regente' mais
seu acaciano governo na dianteira», como
satiriza nas Memórias do capitão. Para
ele, que estivera em Naulila e na Flandres,
aquela Monarquia do Norte era só uma partida de
Carnaval.
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