Revista TriploV de Artes, Letras & Ciências
N.s . nº 53 . agosto-setembro 2015 - ÍNDICE


GLEDSON SOUSA

Aral
 
Gledson Sousa (Brasil). Poeta e ensaísta.
 

Flor de sal no meio dia

Repousa em ruínas d’água

Rugas brancas corroem verde placenta

Silêncio estende suas mãos de sol

Calando a memória

Tropel de arcanjos cegos secam os ventos

Moldam o futuro em escadas de barro

Peixes desafiam o fim do mundo

Arte é para os fortes

Cantam com suas gargantas de metal pesado

Eles chegaram como mortos

Devorando nossa sede

Ora pro nobis

Ó virgem das águas perdidas

Sujando de óleo nossa fome

Ora pro nobis

Ó virgem dos sonhos perdidos

Vestidos de eficiência e bandeiras

Sangraram nossos rios

Num altar a Moloch

Ora pro nobis

Ó virgem dos rios mortos

Todos os dias acordamos

Aos sons de metais rascantes

No fundo de nossas gargantas acenderam

Lagrimas de absinto

Ora pro nobis

Ó virgem dos dedos de metal

Vento branco espalha

Poeira em forma de navalha

Não há belos montes que escondam

O rosto da morte

Ora pro nobis

Ó virgem amazônida

O que eles escondem esses homens cheios de planilhas

O céu não detém mais a insanidade

Desde que o coração do mundo explodiu

Ora pro nobis

Ó virgem radioativa

Corte

Visto de cima o Amu Darya se assemelha

À bandeira corroída da esperança

O Syr Darya escorre

Em constantes ejaculações

Ao norte

Vistos de cima

Os homens explodem o tempo do mar

Na morna lentidão do medo

Cidades encanecidas descansam

Com a felicidade dos mortos

Plano aberto – em cinemascope

Vastas extensões brancas dão às vozes dos ventos

Uma tonalidade à la Usher

Percorrendo o vazio

Cerimônia fúnebre aos peixes, algas, bactérias, projetos de plâncton, sereias do leste, anêmonas aralianas, cidades fantasmas, nereidas, tormentas d’água, cenas de faroeste uzbeque, a idiotice stalinista, o julgamento da história, a sensatez

Todos em morte lenta

Sem decomposição aparente

Múmias de sal

Close

O Aral está de olhos fechados

No olho do leste velhos navios à espreita

Da água que não virá

No olho do oeste pequenas elevações de lágrimas

Mar em salmoura

No Aral é preciso

Que as lágrimas não tenham sal

Nem toda voz se enuncia

Nem toda dor é cantada

Terra seca é cemitério d’água

Aral, Aral

Teu nome ressoa

Em lápides à tua espera

Destruído o mundo

Nos restará só a palavra

Aral de velhas memórias

Que se desfazem em teu leito

Paisagem de pesadelo

Mar seco rodeado de flores de algodão

Toda cidade triste já teve seu mar

Poesia d’água está em extinção

Aral, Amazonas, Nilo

São Francisco, Cantareira

Todos os rios amarelos, verdes, sem nome

Toda fonte

Toda lágrima e sêmen

Sobre eles avançamos

Com nossas metralhadoras de dinheiro

Deuses antigos, brumas secretas perguntam

O que restará do mundo

Se os homens não beberem de nosso mar

Ó Aral

Tua morte me envelhece mil anos

Morro contigo no poema

Em todas as horas do dia

O calendário é uma mesa

Cheia de facas

Na carne da poesia

Nossas vozes se somam

Às dos mortos, moribundos

Todos os peixes sem nome

Mamíferos insones, serpentes de vidro

Morcegos de doce coração

Lesmas coloridas, borboletas

Com asas de falcão

Sapos, abelhas, trilobitas

É preciso escrever a bíblia

De todos os mortos

É o que nos resta

Melancolia da dor

Em versos sem pernas

 
 
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