ACTRIZ 1
O que custa mesmo é o
sinal da partida,
o momento de arrancar.
Sentes o impulso
inadiável de partir, de seguir viagem,
mas a dor de te
separares de alguém que precisa de ti
não te larga.
E então quando esse
alguém é uma criança,
uma criança tua,
que vai chorar de
tristeza ao ver-te partir,
com a carita colada à
parede de vidro transparente
do aeroporto.
Tu sabes que ela vai
chorar
porque ela já chora
quando tu lhe dás o último abraço
da despedida.
E esse rosto molhado não
te sai do cérebro
na hora nervosa da
descolagem.
O avião não espera.
E tu choras também,
já sentada a olhar para
a língua gestual das hospedeiras,
que te falam das
máscaras de oxigénio
e te alertam para a
necessidade de as ajustar primeiro no nariz da
criança que te acompanha,
em caso de
despressurização.
Mas tu não trouxeste
criança nenhuma.
Não a podias trazer para
a missão perigosa que abraçaste.
Imaginas, em terra, a
tua filha,
sozinha com os avós,
a acenar aos soluços
para este pássaro metálico
que lhe leva a mãe para
outro continente.
O que custa mesmo,
acreditem, é o sinal da partida.
ACTRIZ 2
A tua fala é um bom
começo
ACTRIZ 1
É sempre difícil
escolher o ponto de partida.
ACTRIZ 2
Também acho.
Mas aqui não há outra
solução.
A mãe que se separa da
filha fica partida em duas.
ACTRIZ 1
Agrada-me viver esta
história, sabes?
É intensa e dilacerante.
ACTRIZ 2
Tudo o que dizemos pode
e deve ser confundido
com factos reais que
sucederam.
ACTRIZ 1
Fiquei tão entusiasmada
quando o/a (nome próprio de quem escreveu o
texto ou de quem o encena) me convidou
para integrar o
espectáculo.
Falou-me pelo telefone
passava já das duas da
manhã.
ACTRIZ 2
É próprio do/a (nome
próprio de quem encena ou produz o espectáculo)
telefonar para casa das pessoas
fora de horas.
Faz da noite dia.
Já estou acostumada.
ACTOR
Aposto que estavam ambas
a falar de mim!
ACTRIZ 1:
Duas mulheres que
conversam sozinhas
não quer dizer que
estejam a falar de um homem ausente.
ACTOR
Quis ser engraçado
mas não resultou.
ACTRIZ 1
O humor não é o teu
forte.
E isto não é uma
comédia.
ACTOR
Eu sei, colega,
Tens razão.
ACTRIZ 2
Mas já que apareceste
agora,
aproveita a ocasião e
apresenta-nos.
É a função para que
foste convocado.
O público precisa
conhecer-nos.
Neste tempo do teatro,
que fazemos nosso.
Tempo de actores que são
rapsodos,
rapsodos actores,
rapsodos dramáticos.
Palavras de cena com
figuras épicas
de trágico fôlego
e vocação lírica.
No tempo de agora,
que peça é a nossa?
Fala, Corifeu!
ACTOR/CORIFEU SEM CORO
As peças com coro
pertencem ao passado.
Hoje os coros são mudos,
mas eu falo.
Não deram nome próprio à
figura que interpreto.
E também não respondo
pelo nome civil do actor
que está aqui
diante de vós, como é
próprio dos actores,
exposto e escondido
pela personagem:
a minha é ser o corifeu.
Um corifeu sozinho,
um corifeu sem coro.
Mas hei-de ser outras
figuras
que a acção exija.
Assim se poupa no
elenco.
Os tempos estão difíceis
para a vida e para a
arte.
Não são tempos de vacas
magras,
são de vacas
esqueléticas, anorécticas,
num pasto em deserto
acelerado.
Mas não venho falar-vos
do impacto ambiental da pecuária
nem maçar-vos com a
crise financeira
e a dívida pública.
Para isso já basta os
dias que nos cabem em sorte
ou falta dela.
Temos aqui duas
mulheres.
A filha chama-se
Rosângela.
A mãe é mulher com nome
estranho,
um nome de índio
tropical,
um belo nome:
Arajaryr.
Apetece repetir quando o
dizemos em voz alta,
como é próprio do
teatro:
- Arajaryr!
Mãe e filha nasceram no
Brasil, Rio de Janeiro.
Duas actrizes
portuguesas fazem hoje os seus papéis,
por isso o português que
falam não tem o açúcar musical
do Novo Mundo.
Tudo começou um dia numa
festa carioca
de família.
Através da sua melhor
amiga,
Arajaryr conhece um
homem fora do comum,
um general português no
exílio que transforma a sua vida
e apressa a sua morte,
sem ele o querer,
sem ela o saber,
embora o adivinhe.
A ele chamam-lhe o
general sem medo,
pela sua coragem como
ninguém teve
em enfrentar o ditador.
Ela há-de ser a mulher
sem medo,
por decidir acompanhá-lo
com convicção
e entusiasmo genuíno.
ACTRIZ 1 / ARAJARYR
Corifeu sem coro, tu já
estás a falar por mim!
Não vais contar dessa
maneira
a minha história.
Se assim for, eu vou-me
embora.
Não estou cá a fazer
nada.
ACTRIZ 2 / ROSÂNGELA
Nem eu, Corifeu.
Se queres fazer
monólogo,
tens a cena só para ti,
e eu vou à minha vida.
ACTOR/CORIFEU SEM CORO
Pronto, pronto, eu já me
calo.
Não se zanguem comigo,
por favor.
O pior para um actor
é ter os colegas em cena
contra ele.
É vosso o gesto e a
palavra.
Rosângela chega de
viagem
e fala para a mãe
neste teatro.
ROSÂNGELA
Tu estás à minha espera
já em cena
e eu venho de viagem.
Talvez traga malas nas
mãos,
ou talvez não.
Venho carregada de
perguntas, mãe.
Este é um encontro
impossível.
Tu morreste tinha eu
sete anos de idade.
Daí este teatro, este
espectáculo.
As actrizes que somos
tornaram possível o
nosso encontro de hoje.
A mãe e a filha
separadas
pela tua vida e pela tua
morte
voltam a juntar-se
num Abril improvável.
Já tudo aconteceu
mas nem tudo é sabido
sobre o teu assassinato.
Faltava haver o nosso
encontro.
Em teatro não existe o
impossível.
CORIFEU SEM CORO
Diz-lhe, Arajaryr
Diz à tua filha o que te
fez deixá-la no Brasil
para partires à
aventura.
Rosângela precisa de
ouvir da tua boca
as razões de uma
escolha,
a tua escolha.
ROSÂNGELA
Sim, Corifeu.
Mas eu não venho aqui
para julgar a minha mãe.
Nem sou juíza para
condená-la
em tribunal de família.
Quero apenas conhecê-la
melhor,
já que tão cedo fiquei
sem a sua presença
no palco dos vivos.
A criança que eu era não
podia ainda
perceber o que movia
esta mulher
que me pôs no mundo.
Nem a família à minha
volta a entendia.
Os meus avós seus pais
temiam sempre por ela.
Por que havia de lhes
ter nascido uma filha com tanta paixão?
- diziam eles -tanto
idealismo, tanto espírito de missão?
Arajaryr queria libertar
Portugal da ditadura
e deixara a filha presa
à mãe ausente.
É muito mais difícil
para uma mulher e mãe ser heroína política.
Vim a percebê-lo muitos
anos mais tarde.
E o meu pai não ajudava
nada.
Ressentido, com o
azedume de homem trocado por outro,
sempre a deitar para
cima de ti
toda a culpa do mundo.
A distorcer a tua imagem
nos meus olhos de menina.
E tu estavas longe.
Não podias defender-te.
.
CORIFEU/ PAI DE
ROSÂNGELA
A tua mãe fugiu com
outro e abandonou-te.
Abandonou-nos, a ti e a
mim.
Eu não preciso dela, mas
tu precisas.
Os filhos precisam de
ter mãe.
Virou costas à cidade
onde nasceu.
E deixou o Brasil para
seguir esse velho militar
e as suas conspirações
delirantes.
A loucura desse
português somada à loucura dela
vai ditar o fim dos
dois.
Filha, grava o que te
digo nessa tua cabecinha:
a tua mãe já nunca mais
volta para nós.
Vai acabar os dias do
outro lado do mar.
ROSÂNGELA
Eu não queria perceber o
meu pai,
com as suas palavras de
susto.
E não o percebia mesmo.
Era jovem demais.
E não era essa a imagem
que tu me davas de ti, mãe,
Nas cartas e postais que
me enviavas e que a avó me lia,
emocionada.
Eu gostava tanto de a
ouvir ler o que escrevias para mim.
E depois eu ditava-lhe
as respostas para ela enviar para ti.
Tinhas sempre endereços
diferentes.
Mas a seguir sentia-me
sozinha.
Chorava à noite com
saudades tuas.
E também eu te culpei
por essa solidão, mãe.
Fui injusta, eu sei,
mas culpei-te, por me
teres deixado aqui,
uma órfã com a mãe viva
noutro continente.
ARAJARYR
O teu pai fez guerrilha
contigo.
Mentiu-te, omitindo o
passado.
Pois quando eu saí do
Brasil com o Humberto,
já estava divorciada do
teu pai.
Eu não vivia mais com
ele.
E mesmo que houvesse
continuado em meu país,
nunca voltaríamos a ser
de novo um casal.
ROSÂNGELA
O pai acusava-te de
teres fugido de nós
na companhia de um homem
casado,
avô de netos.
ARAJARYR
Isso é verdade e é
mentira ao mesmo tempo.
Os caminhos da vida
afastaram o general
da sua família.
O fascismo lusitano
obrigou-o a exilar-se
para escapar à prisão, à
tortura e à morte.
Morto ou preso, Humberto
nada podia fazer pelo país.
Ele candidatou-se a
presidente de Portugal em 58.
Afrontou o ditador
dizendo que o demitia assim que fosse eleito.
Recebia banhos de
multidão em todo o lado onde ia.
Era espantoso.
Não mostrava medo de ser
morto pelas balas
de algum atirador
contratado.
Tenho pena de não ter
testemunhado essas jornadas
por esse pobre Portugal
que nele viu
a promessa possível
de um futuro diferente.
As portas dos lugares
cobertos, pertença do estado,
fechavam-se para o
receber.
Melhor para ele.
Pois nenhum desses
lugares poderia jamais albergar
os milhares de apoiantes
que acorriam a saudá-lo.
Oceanos de gente como o
país acabrunhado
nunca havia visto.
Só a rua
a céu aberto
e as praças das
cidades
podiam alojar
tanta gente junta
Tu vês isso,
filha, nas fotografias que ficaram
dessa campanha
que sacudiu Portugal de lés a lés.
Quando eu
perguntava ao Humberto se nunca sentiu pavor
em ser baleado
quando falava às multidões,
nas janelas,
nas varandas, empoleirado nos automóveis,
ele apenas ria
e dizia-me:
CORIFEU/
HUMBERTO
Ó Arajaryr.
Eu sou piloto
aviador.
E o aviador
convive a toda a hora com o perigo
da morte
iminente,
mal levanta
voo.
Os aviões não
eram o que são hoje
quando eu
comecei.
E mesmo agora,
as máquinas são falíveis
e todo o céu é
traiçoeiro,
mesmo sem
nuvens no horizonte.
As leis da
gravidade são implacáveis.
E a atmosfera
calma transforma-se de repente
em tempestade
aérea.
Quando falei de
peito aberto frente ao povo,
no país de
Salazar,
estava a cruzar
os ares como dantes
no meu jeito
intrépido.
Mas o avião era
feito de palavras e de ideias
e o motor os
meus pulmões,
para darem voz
audível àquilo que eu clamava
com toda a
energia que me habita
e faz mover as
hélices da esperança.
ARAJARYR
Humberto era
assim, filha,
tal como eu o
vi pelos meus olhos,
desde o
primeiro dia, nessa festa carioca
onde nos
conhecemos:
um herói
destemido e sem idade,
que vinha
libertar uma terra triste.
Mas o resultado
das eleições foi uma fraude.
Pois tudo
indicava que seria ele o vencedor.
ROSÂNGELA
E por que não
venceu ele?
Se a maioria
das pessoas estava do seu lado!?
Como são as
coisas da vida, mãe,
demasiado
injustas.
Se ele tivesse
sido eleito presidente nessa altura,
nunca viria
exilado para o Brasil.
Nunca te teria
conhecido nessa festa.
Nunca terias
partido com ele.
Nunca me havias
de deixar solitária.
Talvez
morresses velhinha de morte natural
no século XXI.
Ou talvez ainda
estivesses viva,
com quase cem
anos,
aqui à minha
beira,
e a beber água
de coco.
A longevidade é
mais amiga das mulheres.
ARAJARYR
Rosângela,
minha filha,
as eleições num
país em ditadura são uma farsa.
A contagem dos
votos foi falsificada.
Humberto perdeu
oficialmente as eleições.
E quem ganhou
foi o candidato escolhido por Salazar.
Depois disto, a
liberdade do Humberto estava a prazo.
Ele não podia
estar parado e conspirava.
E depressa
percebeu que a PIDE o viria prender a sua casa,
mais dia menos
dia.
Antes que isso
acontecesse,
CORIFEU/HUMBERTO
refugiei-me em
Lisboa na embaixada do Brasil,
Foi a minha
mulher, a Maria Iva, que me convenceu.
Ela temia por
mim, e dizia-me:
O Brasil não te
vai virar as costas.
É um filho
gigante do pequeno Portugal.
E tu és o
presidente a quem roubaram a república.
Precisas de te
acolher em solo seguro.
E consta-me que
o embaixador é um homem íntegro.
Eu segui o
conselho dela.
Tornei-me
refugiado na capital do meu país.
Por suprema
ironia, a embaixada do Brasil
ficava mesmo ao
lado da sede da PIDE.
Do meu quarto,
no silêncio da noite, através das paredes,
eu conseguia
ouvir os gritos de horror dos presos
a serem
torturados.
Como podia eu
dormir tranquilo
perante aquele
sofrimento?
Esperei meses
ali fechado na embaixada.
Mas o Novo
Mundo acabou por conceder-me asilo político,
graças ao
embaixador Álvaro Lins,
que lutou por
mim contra os ministros dos dois países
e saiu
vencedor.
Ficámos amigos
incondicionais.
ARAJARYR
E Humberto voou
para a América do Sul,
mas veio
sozinho.
A esposa
juntar-se-ia a ele durante algum tempo,
na cidade
maravilhosa,
para logo a
seguir regressar a Lisboa,
onde viviam as
duas filhas, o filho e os netos que nasciam.
Mas o Humberto
não era homem para solidões monásticas.
Precisava de
uma mulher a seu lado.
Uma mulher de
palavra e fluente nas palavras
- eu falava
várias línguas.
Uma parceira
que partilhasse os seus anseios
de combatente.
Os seus sonhos
de futuro para o país, para o mundo.
E depois de
trabalhar por oito meses como sua secretária,
percebi que
essa mulher era eu:
Arajaryr – uma
brasileira contra Salazar,
este foi o
título das minhas memórias,
escritas numa
idade jovem
dedicadas a ti,
filha, quando as pudesses ler,
e para todos os
demais no futuro,
como se eu
soubesse
que não iria
viver para além dessa idade,
tal era o
terreno perigoso que pisava,
ao abraçar a
causa do general sem medo.
ROSÂNGELA
Esse general
deu sentido à tua vida.
Alistaste-te na
sua guerra.
Foste o seu
lugar-tenente.
Fizeste sua a
missão dele.
Mas se Humberto
tivesse derrubado o ditador,
como ele tanto
queria,
e viesse a ser
o primeiro presidente
da democracia
portuguesa,
achas que faria
de ti a primeira-dama?
Não
continuarias somente a ser a outra, a concubina,
a secretária
pessoal do general vitorioso?
ARAJARYR
Infelizmente,
filha, Humberto foi morto
e eu com ele.
Não tivemos
vida para que esse problema se pusesse.
Fomos ambos
assassinados pela polícia de Salazar,
bem perto da
fronteira de Espanha.
em Villanueva
del Fresno, província de Badajoz.
A PIDE
armou-nos uma cilada suja,
atraídos para
um logro,
apanhados por
essa corja
como coelhos
indefesos
na rede dos
carrascos.
CORIFEU SEM
CORO
Fizeram
finalmente um filme em Portugal,
sobre o duplo
homicídio onde morreste.
Operação Outono,
assim se chama,
assim a PIDE
chamou à operação assassina.
Expõe ao
detalhe a emboscada que vos roubou a vida.
A tua
personagem parece-se contigo.
A actriz usa os
teus óculos de aros grossos, como era moda
então,
e o teu
penteado anos sessenta.
Mas trataram-te
mal no filme, Arajaryr.
Quase não tens
falas
e apenas serves
para servir café ao general
e às suas
visitas de conspiração política.
Nem sequer
podes mostrar a inteligência que era tua.
És somente um
acessório feminino e mudo,
a gueixa
discreta e burocrática
do general
malogrado.
Nem cenas ali
há de intimidade,
para te dar
destaque erótico.
És mesmo só a
secretária por ofício.
Ah! Já me
esquecia!
Também penduras
os casacos às visitas, no filme,
quando entram
em casa.
Já o general é
interpretado por um actor estadunidense
que não fala um
boi de português.
E por isso é
dobrado pela voz de outro fulano
do princípio ao
fim do filme.
Soa estranho.
Mas valeu ter
sido feito.
Tem bons
desempenhos num elenco numeroso.
E o cinema é
mais portátil que o teatro.
Mete-se numa
pendrive
e lá vai ele.
Chega a mais
gente do que nós, minhas colegas.
E nós
precisamos muito de memória vigorosa
nestes tempos
ciberdominados,
cibercontrolados,
ciberdependentes.
ARAJARYR
Perdidos,
perdidos,
caçados na
armadilha
dos humanos
chacais
em campo
aberto.
Humberto ao
percebê-lo puxa do revólver.
Agarram-lhe no
pulso para desviar os tiros.
Cinco balas
atingem o vazio.
Depois é o
general o atingido.
Tento ir em vão
ao seu auxílio.
Que posso eu
fazer contra os lacaios da morte?
Perco um sapato
na corrida inglória,
um sapato que
um deles há-de atirar mais tarde
para um ribeiro
do Alentejo.
Grito de horror
e tapam-me a boca.
Agarram-me
enquanto vejo Humberto a receber golpes mortais,
na fronte e no
tronco,
no maxilar que
se fragmenta,
e ele cambaleia
e tomba
e a seguir na
nuca,
fracturada
com o embate
mortal de coronha metálica
da pistola sem
balas.
A vida cessa no
corpo de Humberto.
O sangue dele
ensopa-me o vestido.
O meu irá
juntar-se ao dele.
Partida, de
partida,
estou partida.
Sou espancada.
Atiram-me
violentamente para o chão.
Sou
estrangulada com uma barra metálica
que me destrói
as quatro vértebras do pescoço.
E jamais serão
encontradas,
pasto de algum
cão do mato.
A tua imagem,
filha,
é a última que
conservo na mente.
Dizem que se assiste ao
filme da vida
no instante em
que se morre.
És tu que eu
vejo quando os olhos me morrem.
Triste de me
separar de ti
tão brutalmente
cedo.
Por muito que
eu ame Humberto,
és tu, minha
filha,
a protagonista
do meu último filme.
ROSÂNGELA
Há meio século
que isto aconteceu:
a cilada
sangrenta que vos roubou a vida.
Humberto e
Arajaryr deixam o exílio da Argélia
onde então
estavam.
E partem
iludidos por um plano assassino.
A partida
derradeira.
A minha mãe
escreve-me o seu último postal,
com o carimbo
espanhol de Badajoz,
13 de fevereiro
de 65.
O dia em que
foi morta.
Esse postal que
a minha avó não largava das mãos,
tomada de angústia, a
incerteza
de lhe haverem
matado a
filha
algures no
extremo ocidental
da distante
Europa.
Como se o
postal guardasse ainda o sopro vital
da mão amorosa
que o havia escrito
com tantas
saudades nossas.
13 de
fevereiro.
Sempre eu
haveria de detestar o número treze.
ARAJARYR
Argel,
Casablanca, Rabat, Tetuão,
Ceuta,
Algeciras, Sevilha, Badajoz.
Argel,
Casablanca, Rabat, Tetuão,
Ceuta,
Algeciras, Sevilha, Badajoz.
Argel,
Casablanca, Rabat, Tetuão,
Ceuta,
Algeciras, Sevilha, Badajoz.
As escalas de
avião que nos levam ao lugar da morte.
A PIDE
montou-nos um cenário completo à nossa volta,
e nós somos
engolidos por ele ao fim de dois anos.
Havia um falso
professor português em Itália,
que dizia ter
contactos com gente do exército luso.
Militares
dispostos a fazer a revolução
para derrubar a
ditadura
liderados por
Humberto.
Marcaram-nos
encontro em Espanha,
junto ao posto
fronteiriço
onde iria ter
connosco
um desses
aliados de revolta.
Camino de Los
Malos Pasos
Camino de los
Malos Pasos.
Camino de Los
Malos Pasos
Devíamos ter
atendido ao nome de um lugar
assim chamado.
Devíamos ter
receado que esses desconhecidos
poderiam ser os
enviados
do nosso maior
inimigo.
E apenas
diziam, por isso,
aquilo que nós
queríamos tanto ouvir.
Mas Humberto
era sem medo e queria acreditar na boa nova
que lhe traziam
esses seus compatriotas,
seus
executores.
O entusiasmo
dele,
por julgar
próxima
a revolução
ansiada,
não deixou que
suspeita alguma viesse
turvar-lhe a
confiança.
ROSÂNGELA
Mas tu
pressentias algo estranho.
Tu não estavas
confiante na veracidade desse plano.
Acompanhaste o
Humberto, temerária,
até àquele
lugar,
descampado e
ermo.
Mas havia uma
descrença a assaltar-te, mãe.
Eu sei que
havia.
ARAJARYR
Como é que
sabes isso, filha?
Tu não estavas
lá.
E eu nada podia
escrever sobre uma operação secreta
num singelo
postal
com as
paisagens da Extremadura.
ROSÂNGELA
Não foi pelo
teu postal que eu o soube.
Mas sim num
texto de sentida homenagem,
escrito por um
exilado em Londres, vosso amigo,
cronista da
BBC,
o António de
Figueiredo,
que foi
delegado do general para os assuntos africanos.
Ele evoca-te a
ti e ao Humberto com palavras nobres
que me fizeram
chorar muito quando as li
a primeira vez.
Vamos ler aqui
um naco dessa prosa.
Eu sei que o
teatro não é uma conferência,
nem uma lição
de História,
nem caixa
jornalística.
Mas eu acho que
devemos ler agora
um pouco do que
ele escreveu,
numa idade
anciã.
O artigo foi
incluído em anexo ao volume
das tuas
memórias
publicadas pela
filha de Humberto,
a Iva Delgado,
onde eu descobri uma amiga,
uma cúmplice
para a minha sede de memória tua.
Estão aqui as
folhas.
Dividi o
excerto por nós os três.
ACTRIZ 1
Não acho mal
pensada
a ideia
dramatúrgica
da tua
personagem.
Hoje em dia é
comum vermos actores de livro aberto,
rapsodos em
alta voz
a ler
simplesmente no espaço da cena.
Os protocolos
do teatro são escritos em areia
que o nosso
sopro move e modifica.
CORIFEU SEM
CORO
Se vamos ler,
devemos usar o microfone.
O teatro actual
não passa sem o microfone.
Necessita
amplificar as vozes
para que possam
ser ouvidas para além do ruído
que nos rói as
cabeças consumidas, consumistas.
As vozes
precisam destas muletas sonoras,
para se fazerem
ouvir
na multidão dos
olhos desatentos
e dos dedos
frenéticos
presos aos
ecrãs pequenos
que nos ligam
ao mundo
e nos desligam
de nós mesmos.
Os microfones
são a sombra funérea
das máscaras
perdidas
do teatro
antigo.
ACTRIZ 1
(Leitura
com microfone.)
«Por si só
[Arajaryr] não seria temida como inimiga do
regime. No entanto, a PIDE odiava a ideia de que
Delgado não estava só e abandonado, e portanto
odiava a corajosa brasileira que até troçara
publicamente, num artigo, dos agentes daquela
polícia que tinham sido “duas vezes ludibriados”
[por ambos], à entrada e à saída de Portugal
(…).
ACTRIZ 2
O próprio
processo judicial comprova que se Delgado foi
assassinado como o mais destacado inimigo do
salazarismo, e hoje sabemos que também o era do
regime franquista, Arajaryr foi assassinada
porque se vivesse seria a mais temível
testemunha do crime. Esta perversa certeza dos
assassinos, quanto ao papel testemunhal de
Arajaryr, é, afinal, o mais explícito
reconhecimento da sua dedicação e força de
carácter. Como história de amor na vida real, o
sacrifício de Arajaryr transcende a esfera
política e acrescenta à luta de Delgado a
dimensão universal dos grandes dramas humanos.
(…)
CORIFEU SEM
CORO
A
monstruosidade do crime e a impunidade de que se
rodeou, antes e depois da Revolução do 25 de
Abril de 1974, são aspectos que chocaram e
chocam ainda os que se dedicam à defesa dos
direitos humanos. O drama é tanto mais pungente
quanto Arajaryr era mãe e deixou órfã uma menina
de sete anos. E é tanto ou mais dramático quanto
o que na literatura antiga ou moderna se
escreve, pois não foi uma questão acidental, ou
uma mera surtida policial.
ACTRIZ 1
A ‘operação
Outono’ foi uma autêntica montagem de caça ao
homem, crime premeditado pelos serviços do
Estado português com grandes envolvimentos e
gastos, tendo sido posteriormente montado não só
o encobrimento a grande escala, por exemplo, com
a destruição a maçarico dos automóveis
envolvidos, como uma autêntica campanha que
envolveu um outro assassínio – o de carácter –
pelo denegrimento sistemático da figura do
General Delgado.
ACTRIZ 2
Os factos
aconteceram, não foram produto do acaso. As
vítimas não foram apenas um general português e
a sua secretária brasileira, mas todos aqueles
que mantinham a esperança de ver derrubado o
regime de Salazar, bem como todas as mulheres
que como mães compreendem o que é matar-se uma
jovem mãe. Foi uma tragédia que deve unir a
memória dos povos português e brasileiro na luta
comum pela dignidade humana.
CORIFEU SEM
CORO
Fui amigo do
General, admirei a sua coragem e grandeza que o
tornaram um símbolo da liberdade, e conheci a
infeliz Arajaryr cuja beleza moral e física era
real. Para mim, ambos são figuras inesquecíveis
da história contemporânea de Portugal e do
Brasil.
Humberto
Delgado foi com justiça trasladado para o
Panteão Nacional. Mas Arajaryr Campos, tal como
o anónimo “soldado desconhecido”, bem merece ser
reconhecida como uma heroína esquecida da
dedicação e abnegação femininas por um homem e
por uma causa.»
ACTRIZ 2
António de
Figueiredo.
Excerto do artigo
«O sorriso inteligente». In
Arajaryr Campos.
Uma brasileira contra Salazar.
Edição de Iva Delgado. Lisboa: Livros Horizonte,
2006, páginas
155
e
156.
ACTRIZ 1
Acham que
estamos a contribuir para isso?
CORIFEU SEM
CORO
A contribuir
para quê?
ACTRIZ 1
Para o triunfo
da memória.
Para o
reconhecimento póstumo de Arajaryr Campos.
Terá o nosso
teatro a força de fazê-lo?
ACTRIZ 2
Creio que sim.
A memória do
mundo passa também
pelo teatro de
hoje
que fazemos
juntos.
Caso contrário,
não estaria aqui,
convosco,
com os
espectadores que vieram
e tornaram
possível
mais uma
partida.
CORIFEU SEM
CORO
Humberto
acreditava no teatro.
O primeiro
confronto seu
com os poderes
do Estado Novo,
de que ele fez
parte,
foi projectado
numa peça de teatro.
Um enredo
aeronáutico
de romance e
espionagem
escondia o seu
conflito pessoal
com a
hierarquia.
Estreou em
Lisboa no Teatro da Trindade,
na véspera de
Natal de 42.
Foi a única
peça que escreveu.
O texto
permanece inédito.
Chamava-se
simplesmente:
Asas.
ACTRIZ 1/
ARAJARYR
Humberto quis
dar-nos asas.
Foi um bravo
Prometeu com Ícaro à mistura,
sem Hércules
algum que o salvasse no Cáucaso.
E para nós,
filha,
haverá algum
mito antigo
que se compare
connosco?
ACTRIZ 2 /
ROSÂNGELA
Talvez o mito
de Deméter e Perséfone.
Mas somos o
inverso dele.
A deusa mãe
Deméter
e a deusa
filha, Perséfone.
No mito grego,
é a filha que é roubada à mãe
pelo deus dos
mortos que dela se enamora.
Aqui é a mãe
que foi raptada à filha.
Mas no mito
antigo a filha regressa sempre
para junto da
mãe na Primavera.
E deixa o
marido sozinho no reino dos mortos.
Que Primavera
resta para nós, mãe?
ACTRIZ 1/
ARAJARYR
A Primavera
deste instante.
Foi o que
tentámos fazer na meia hora
deste espaço
habitado.
Uma imitação da
Primavera.
A reunião de
mãe e filha
no teatro,
onde mortos e
vivos se confundem
na ficção que
engana o tempo,
imitando a
duração dele.
E o teatro
repete a invenção da vida
num tempo além
do tempo,
o tempo do
espectáculo.
CORIFEU SEM
CORO
E neste
momento,
é necessário
qualquer coisa
semelhante a um
epílogo.
Rosângela,
queres tu dizer as últimas palavras?
ROSÂNGELA
Eu prefiro que
seja a minha mãe a dizê-las.
Esta peça é
mais dela do que minha.
Eu estou aqui
por ser a sua filha.
Fala tu,
Arajaryr!
ARAJARYR
O nosso
assassinato
foi o princípio
do fim de Salazar.
Um fim
vagaroso.
Havia algo de
sinistro no seu rosto,
semelhante a um
vampiro.
Basta ver as
fotos.
Eu trouxe
algumas.
E os vampiros
custam a morrer
porque se
nutrem do sangue dos vivos.
De vivos como
eu e o Humberto.
Os nossos
cadáveres são descobertos
por jovens
extremenhos
e exumados a 25
de Abril de 65.
Nossos restos
mortais mal enterrados
anunciavam sem
sabê-lo
uma data
luminosa.
Nove anos
exactos havia este globo de girar
até à Revolução
dos Cravos,
a que já não
assistimos,
mas de que
fomos precursores.
Três anos
passaram sobre a nossa morte.
E em manhã de
Agosto,
o velho ditador
cai da cadeira
quando lê o
jornal.
O hematoma na
nuca,
formado pela
queda,
rouba-lhe as
faculdades,
torna-o em
fantoche do poder
e mata-o dois
anos depois.
É curioso isto,
vejam,
a macabra
coincidência,
digna de uma
dessas séries televisivas
de investigação
criminal.
O golpe mortal
dos homicidas,
que tiraram a
vida a Humberto
foi a coronhada
na nuca.
E agora é
também na nuca
que Salazar é
ferido com o golpe da queda.
Eu gosto de
imaginar que foram os nossos dois fantasmas,
o meu e o de
Humberto,
a tirar-lhe a
cadeira
sob o sol de
Agosto.
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