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		Ansiedade, angústia, velhas companheiras, irei 
		despedir-me de vós. Sempre senti demais. Alma gentil, talvez, a mínima 
		brisa, um sobressalto. E, depois, na vida quer-se tantas coisas e são 
		tantas as dificuldades. Andam todos ao mesmo e cada um tem direito a 
		lutar por si e para os seus. Nem adianta não querer. Há mil 
		responsabilidades que decorrem da obrigação para com os outros. Desejar 
		a inércia é um sonho tão impossível como ser imperador do mundo e 
		comandar a humanidade a um destino de paz. O desassossego é, amigos, 
		condição precípua de viver em comunidade. 
		Sempre a paixão d'imobilismo, indolência vital nas 
		coisas da vida. Sempre. Como é boa a manhã florida. Afastar toda a 
		preocupação com o que quer que seja. Não pensar. Experimentar a quase 
		imponderabilidade que provoca a aragem suave e cálida no esplendor da 
		luz em seu zénite e a clareira, um idílio campestre onde nada nos poderá 
		ameaçar. Não naquele momento porque um sortilégio telúrico nos diz: «és 
		eterno, incorruptível e o cosmo mesmo contém uma alegria quieta que 
		tocará todas as fibras do teu ser, lhe insuflará vida e sorri em formosa 
		conjugação com as inumeráveis criaturas do orbe». Porém, tal só dura 
		aquele exacto instante e quando as forças da corrupção retomam o 
		controlo, as exigências mesquinhas de todas aquelas quotidianas coisas 
		que, constantemente, urgem, saberás que o sonho, a beatífica ilusão não 
		perdura, que está mais distante que a mais distante estrela de uma 
		galáxia esquecida no primeiro tempo de tudo. Volta a imersão no 
		turbilhão dos afazeres, aquele aperto que te intima «faz!», quando a 
		última vontade que se tem é fazer. O que quer que seja. 
		Foi assim que vivi. Contrariado e amargo na acção 
		porque ninguém me deixou em paz nem eu a podia procurar como devia. 
		Também queria conseguir isto ou aquilo. Cheguei a ter variada ambição. 
		Às vezes intensa como febre malsã. Obsessão que preenchia de falso valor 
		ou importância mas se o espaço intrapsíquico era pleno de uma 
		necessidade o tempo passava pautado pelo sucesso ou malogro de tais 
		empreendimentos. No meu íntimo sabia que toda a vanglória de nada 
		importava. Contudo, quem liga aos recessos mais fundos de seu 
		inconsciente? Devia ter largado tudo cortado os laços com o século para 
		empreender a busca pela inércia total e boa de quem contempla a 
		sempiterna vacuidade? Hoje, nos derradeiros momentos antes do final 
		estertor sei que sim. Quando era novo ainda poderia ter professado o 
		ditoso caminho rumo à iluminação pura, envelheceria sábio. Talvez 
		emulando a planta que se contenta no seu vigor de seiva. Agora, neste 
		fim em que só acumulei desperdício contento-me com um breve lapso de 
		indigência radical que só está ao alcance do moribundo. Em um instante 
		sou imortal, não o próximo que é o último, aquele outrossim que o 
		antecede. Sim, quando se antevê o fim, aquilo que restar antes significa 
		a imunidade total da presciência. Será esse o atributo dos deuses? Não 
		que fossem para sempre, apenas que fossem na exacta circunscrição de um 
		transparente destino? Sabendo quando iam, puderam ficar plenamente ao 
		ponto de granjearem a funda admiração dos homens. Eis, outro modo de 
		eternidade, aliás, prosaico: permanecer na memória de tão vívida imagem, 
		retiniana obsessão, aquela que anule a potência d'olvido que, a bem 
		dizer, é gerada pelo medo. Pois, transcendi-o. Soube ultrapassá-lo pela 
		via da penúria, essa de nada querer. A dor atroz anula a distância 
		porque tudo me é inacessível, a falência dos órgãos dispensa-me do seu 
		cuidado coisa que até aqui, como todos, também fiz. A quase cegueira 
		poupa-me às distracções das populosas imagens, até a memória com grandes 
		pedaços d'ausência retém o que me é essencial, resume-me, a biografia é 
		de novo leve, sem tantos pormenores que, por circunstância, de tão 
		embaraçosos não interessam reter. Simplificação tão benévola que apague 
		os momentos da falsa euforia, da esperança frustre, da breve alegria que 
		antecedeu cada fracasso. E se a soma deles for, afinal, o produto desta 
		biografia esquecê-los é derrotá-los, combater o medo e lográ-lo é uma 
		última vitória. Não que vindique a vida pois para isso há que tornar a 
		vivê-la mas naqueles instantes de decisão optar por outra senda, 
		porventura aquela que levará a melhores horizontes. É pena que se não 
		possa experimentar, voltar atrás, repetir. Um tempo-catraca que, 
		constante, t'empurra não permite a tentativa provisória, uma 
		possibilidade anulável assim que se percebe que essa direcção só te 
		levará ao adensar da errância, da confusão e perda. Contra esse carácter 
		definitivo só há o antídoto de uma superior irreversibilidade. E essa 
		suprema, como calculais, só pode ser a morte. Assim, é tão total e 
		abrangente que a sua mera proximidade altera o equilíbrio da luz e da 
		sombra comum à vida. Há um recorte mais definido, uma distinção 
		hipernítida entre o que importa e o que é acessório. Inverte mesmo a 
		ordem anterior. Se no firme tempo da tua existência quotidiana os 
		assuntos mais importantes porquanto continham um gérmen maior de 
		felicidade possível eram os mais leves, agora, olhando o meu fim, é a 
		gravidade do momento que exige uma peculiar pedagogia e contém uma 
		singular exaltação.  
		Quisera um momento onde não houvesse nem terror nem 
		tortura, maldição de estar vivo. E esses encontrei-os agora. 
		 
		Quisera aquele instante mneumogénico de onde 
		s'exudisse um sentido.  
		E esse encontrei-o agora.  
		Quisera aquela exalação que contivesse todas as 
		outras. Mas livre do pânico d'agitar uma vez mais; e outra; o pulmão. 
		 
		E essa encontrei-a agora.  
		Quisera o êxtase sem tumulto. A euforia sem a 
		demora da queda. A unidade sem a desventura do múltiplo e a 
		multiplicidade sem o desejo dilacerante do uno.  
		E esses, todos, encontrei-os agora. 
		Tudo isto concentrado é epifania porém com um único 
		lamento, aquele resto que é inelutável questionação: porquê? Porque o 
		motivo mais alto se alcança só no fim? A superior certeza, ao invés de 
		princípio orientador de um nóvel porvir, é derramada na vida quando esta 
		s'esvai. Centelha d'indescritível fulgor é conatural condição ao 
		estertor. E como nada restará nem sequer o olvido – que este esplendor 
		deixando-se enunciar não se deixa dizer – tem de ser experiência vivida. 
		Talvez por isso até postule um deus. Há que guardar arquivo disto e como 
		esta superlativa ventura só pode ser partilhada com a potesta da 
		divindade, ela tem, a fortiori, de ser; para que algo fique e 
		para s'escapar ao tormento de que quando se chegou ao cume, sem 
		horizonte à excepção do fim, nada poder ver.  
		Um ínfimo instante mais e serei a contemplar a aura 
		de luz que a coorte angélica espalha até à fímbria da mais baixa esfera 
		terrena.  
		Será que não é a concentração máxima das potências 
		da vida o que mata? E, assim, só se chega ao apogeu por decesso? 
		Definha-se por excesso de força. Rebenta-se de incontido esplendor. 
		 
		Bem entendido que esta plenitude é muito diferente 
		dos verdores de juventude. Essa é alegria por vir, esta é serenitude já 
		decessa.  
		É uma última batalha esta a de vencer o medo, é a 
		derradeira expressão de uma individualidade, é o máximo apogeu das 
		potências vitais quando se deparam com a radical anulação delas. Um 
		fulgor único, irrepetível, só possível pela necessidade do seu término 
		e, por isso, já sem a necessidade de poupar as forças. Qualquer chama 
		antes do decesso brilha com mais intensidade em especial se se decidiu a 
		uma final incandescência. E a consciência como labareda ciente de si, 
		ainda pode escolher se se apega à sobrevivência e se esvai num lento e 
		triste estertor ou se opta por queimar, em hecatombe de si, os 
		resquícios combustíveis para uma final exalação. Dir-vos-ei que é esta a 
		única escolha e que portanto nem é real opção mas uma exigência 
		intrínseca de toda a sentiência. É esta quando se abdica do futuro. 
		Quando toda a expectativa é pregressa, quando as forças da corrupção 
		ainda em vida tornam demasiado evidente que se está perante o fim o que 
		resta senão a ventura de um desafio às trevas negríssimas que se 
		avizinham? E esse pode ser um texto como este, pode ser um salto 
		naqueles abismos que sempre cobiçámos mas que por serem abismos e 
		mortais não ousámos adentrar, pode, enfim, ser uma libertação prazentosa 
		de todas as preocupações, uma antevisão da mais pura alegria serena da 
		nulação da vacuidade. Não mais a angústia do tempo. Não mais as 
		necessidades da vida. Nunca mais o medo e a determinação, tantas vezes 
		humilhante, da sobrevivência do corpo, ou do seu conforto ou, mesmo, das 
		exigências do espírito, dos seus tédios, do desassossego de ser. 
		 
		É extrema esta felicidade: que assunto interessa, 
		ainda, perante a anulação da morte?
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