REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 51 | abril-maio | 2015

 
 

 

 

MARCO MACKAAIJ

A irrazoável eficácia da vida na poesia

e da poesia na vida *

 

Marco Mackaaij nasceu nos Países Baixos em 1970 e vive em Portugal desde 1995. É casado, tem dois filhos e é professor de Matemática na Universidade do Algarve .”E Se Não For?” é o seu primeiro livro

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Em 1996, Robbert Dijkgraaf, actual director do Institute for Advanced Study em Princeton e na altura professor catedrático de física-matemática na Universidade de Amesterdão, escreveu um artigo intitulado A irrazoável eficácia da física na matemática moderna (1). O título era um trocadilho: em 1960, Eugene Wigner, um famoso físico húngaro, já tinha escrito um artigo intitulado A eficácia irrazoável da matemática nas ciências da natureza (2). Ambos os autores mostram nos respectivos artigos a fertilização cruzada entre a matemática e a física e argumentam que este fenómeno, do qual existem muitos exemplos conhecidos, é irrazoável" porque os objectivos são distintos: a matemática procura rigor e beleza, a física pretende analisar e descrever uma parte da realidade. Em termos filosóficos, esta relação fértil para ambos os lados é misteriosa.

 

Também a poesia tem tudo a ver com rigor e beleza, tal como a matemática, e a vida é uma realidade que os seres humanos estão sempre a analisar e descrever. Embora a relação entre a vida escrita e a vida vivida seja longe de ser directa e simples - mesmo em diários, quanto mais na poesia - existe uma fertilização cruzada entre a poesia e a vida, também ela irrazoável" mas eficaz, na minha opinião. No resto deste texto vou tentar ilustrar brevemente este ponto de vista, que obviamente não é novo nem exclusivo. Para quem achar a comparação entre a matemática e a poesia estranha: num estudo recente (3), neurocientistas mostraram que há uma parte do cérebro que é activada tanto pela beleza de fórmulas matemáticas como pela beleza de obras de arte - neste caso artes visuais e música. Curiosamente os cientistas também observaram que a correlação entre compreensão e apreciação estava longe de ser perfeita, porque o cérebro de alguns participantes não-matemáticos achava claramente algumas fórmulas matemáticas incompreensíveis mais belas do que outras! Quem é que não leu já poemas incompreensíveis e no entanto apreciou claramente a estética de uns mais que a de outros?

 

Antes de continuar, quero desde já esclarecer que para mim a poesia não tem nenhuma missão, nenhum objectivo para cumprir. Qualquer thing of beauty merece a minha atenção sem reservas, não fosse eu matemático de profissão (ainda por cima de matemática pura) e amador das artes (em ambos os sentidos da palavra amador). Tudo o que pretendo com este texto é apenas fazer uma pequena observação acerca de uma parte da poesia. Mas uma parte substancial e talvez, penso eu, a parte que entusiasma mais leitores e garante a sobrevivência da poesia fora de círculos restritos de aficionados incondicionais (é importante que os haja também, como os aficionados da matemática pura, mas isso seria matéria para outro texto).

 

Por ser preguiçoso e gostar de ouvir a opinião dos outros, decidi deixar principalmente outros, mais conhecedores de poesia (porque da vida não há doutores), falar por mim. Desde 1993, Garrison Keillor tem apresentado o programa The writers almanac na rádio pública americana, onde lê um poema por dia para pessoas normais, i.e. pessoas que gostam de poesia mas não são necessariamente licenciadas em literatura como ele. Na introdução de Good poems for hard times - uma das três antologias que editou dos poemas que tem lido ao longo dos anos e que reúne poemas de poetas célebres e (quase) desconhecidos, doutores e autodidactas, de todas as etnias, de ambos os sexos, mortos e vivos, mas sempre interessantes e com qualquer coisa para dizer ao leitor de uma forma frequentemente inesquecível - Keillor escreve (a tradução, com erros e imprecisões, é minha): O sentido da poesia é dar coragem. Um poema não é um puzzle que tu, leitor cumpridor, és obrigado a resolver. Existe para te espicaçar, para cerrares os dentes, tomares atenção, te levantares e brilhares, teres um aspecto vivo, tomares algum controlo, perceberes o essencial, puxares as meias para cima, acordares e morreres como deve ser.  E mais adiante na mesma introdução: Tudo o que escrevi como estudante universitário, eu aqui renego e declaro nulo: hoje em dia na poesia só me interessam franqueza, clareza e verdade.  Ou seja, para Garrison Keillor e os seus milhões de ouvintes e leitores (4), boa poesia é aquela que tem a ver com a vida que nós, pessoas normais, vivemos, às vezes em circunstâncias extraordinárias - guerra, convulsões sociais, certas doenças - mas muitas vezes não - preocupações com filhos, com pais velhos, fartos do dia-a-dia mas de repente um momento de beleza que faz com que tudo valha a pena, os altos e os baixos do amor, com ou sem sexo, a velhice e a aceitação de sermos finitos e humildes e todos iguais na nossa infinita diversidade. Esta é a eficácia da vida na poesia, perfeitamente irrazoável neste jogo de estética, mas inegável. Repito, talvez não para todas as pessoas, mas para milhões de ouvintes e leitores de poesia pelos vistos é assim. Poemas que mexem com as pessoas são muitas vezes poemas baseados na ou inspirados pela vida - seja o que isso for, a vida, porque só temos milhares de milhões de exemplos presentes e passados e todos diferentes. Também é a eficácia da poesia na vida, senão esses milhões de pessoas não ouviriam nem leriam poesia.   

 

Mas obviamente, para que essa mensagem franca, clara e verdadeira tenha algum impacto no ouvinte ou leitor é preciso alguma técnica, enraizada nas ideias e opções estéticas do poeta. Qualquer pessoa alguma vez acordada num domingo de manhã por uma testemunha de Jehovah sabe que mensagens transmitidas num tom seco e sem imaginação irritam em vez de despertar interesse e azulejos na casa de banho com conselhos sábios só despertam a perversidade imaginada de mil e uma maneiras, enquanto o corpo faz o que tem para fazer. É da técnica e da estética que depende a eficácia da poesia na vida, também ela irrazoável muitas vezes porque o poeta só” queria escrever um bom poema e não (necessariamente) consolar ou animar alguém. A defesa desta parte do artigo confio a um poeta algarvio, uma vez que a nossa tertúlia se passa em Faro.

 

Em Poesia, Liberdade Livre (1962) (5), António Ramos Rosa escreve que o valor da poesia reside não no que nos diz ou explica sobre a condição humana, não nas ideias, crenças ou atitudes que propõe, mas em nos tornar presente essa mesma condição fundamental, possibilitando a cada leitor o acto de recriação poética. Isto parece-me uma versão secular, sem conotações de deus e mandamentos etc., do velho adágio bíblico (parafraseando): a palavra deve viver em nós. A parte mais interessante da frase de Ramos Rosa, para mim, é a última, acerca da recriação poética. Um poema não é um texto que transmita informação de uma pessoa para outra, como um manual de instruções, por exemplo. É antes uma semente que uma pessoa lança e germina noutra, e em pessoas diferentes germina de maneiras diferentes. Há qualquer coisa de mágico neste processo, como um desconhecido pode partilhar com outros desconhecidos não a sua vida mas a vida deles próprios, não o que tinha na cabeça quando escreveu o poema mas o que elas próprias têm na cabeça quando o lêem. Eu já tinha sugerido: todos iguais na nossa infinita diversidade. Em termos de hardware deve haver explicações neurológicas, mas em termos de software a poesia continua espantosa. Vejamos um exemplo do próprio Ramos Rosa (do livro Viagem Através de uma Nebulosa, 1960), sem comentários adicionais:

 

 

Não Posso Adiar o Amor

 

Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

 

Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio

 

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o rneu amor

nem o meu grito de libertação

 

Não posso adiar o coração

 

 

Para terminar, e para que ninguém tenha a sensação de que estou a inventar coisas, quero citar dois antologistas holandeses. Quando os redactores profissionais C. J. Aarts e M. C. van Etten aceitaram o convite da editora Ooievaar Pockethouse para fazer uma antologia de poesia neerlandesa, assinaram o contrato cheios de entusiasmo mas sem terem lido as letras miúdas. O contrato dizia que tinham que reunir os poemas neerlandeses mais conhecidos, mais populares e não aqueles que eles achavam os melhores, os mais representativos, os mais inovadores, ou simplesmente os de que eles, profissionais com o gosto apurado por muitos anos de leitura e de estudo da poesia, gostavam mais. Ou seja, o critério era quantitativo e não qualitativo, o público já tinha decidido, os redactores só tinham de ir à procura de citações em antologias existentes, reproduções, reedições etc. e fazer contas. E como se sabe, o sufrágio universal na democracia é uma conquista muito importante para que uma grande parte da humanidade viva mais ou menos contente e mais ou menos em paz, mas não é necessariamente o instrumento certo para determinar o que vale a pena nas artes (prometo não falar da televisão nem das grandes editoras e livrarias). Mas o que escrevem Aarts e Etten no fim da introdução de Domweg gelukkig in de Dapperstraat (6) em 1990, depois da terem completado a sua tarefa ao mesmo tempo inglória e hercúlea? (trad. minha): Afinal não foi tão mau. Para dizer a verdade, até estamos orgulhosos desta antologia. E orgulhosos de si (leitor anónimo e geral - M. M.). Você tem, salvo muitas excepções (7) um gosto nada mau. Esta antologia contém muitos poemas bonitos. Isto é a sua antologia. Até hoje, e já foram publicadas muitas outras com outros critérios de escolha, esta antologia é uma das mais apreciadas por todos os amantes da poesia neerlandesa, profissionais e amadores.

 

Eis a irrazoável eficácia da vida na poesia e da poesia na vida. Q.E.D.   

 

       

 

        Marco Mackaaij. (2014)  

 
   
 

[1] Robbert Dijkgraaf, “De onredelijke effectiviteit van de fysica in de moderne wiskunde”, Ned. Tijd. v. Nat. 62/11 (1996) 255-257.

[2] Eugene Wigner, “The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences,” in Communications in Pure and Applied Mathematics, vol. 13, No. I (February 1960).

[3] Ver “The Neuroscience of Mathematical Beauty”, by Scott Barry Kaufman, Scientific American, May 7, 2014.

[4] 2.4 milhões de ouvintes, segundo um relatório de American Public Media http://www.apmstations.org/programs/research.php?pgm_code=twa

[5] Esta citação fui roubar ao livro “A poesia contemporânea portuguesa” de Fernando Guimarães (2002) - já tinha dito que era preguiçoso.

[6] “Simplesmente feliz na Dapperstraat” - a Dapperstraat é uma rua normalíssima em Amesterdão e o verso é um dos mais conhecidos da poesia neerlandesa.

[7] A expressão habitual é “salvo raras excepções”, em neerlandês também, mas traduzi literalmente o que os autores escreveram porque foi deliberado. 

 

 

  * Esta é uma versão um pouco mais estruturada e elaborada de umas palavras que improvisei como introdução no segundo encontro da tertúlia algarvia chamada “À tertúlia”, no dia 19 de Junho de 2014, no restaurante “A Venda” em Faro. O tema do encontro era “A poesia e a vida”. Este texto não é nem pretende ser um artigo académico, tal como a tertúlia não é nem pretende ser uma série de encontros académicos, embora académicos sejam muito bem-vindos tal como todos os outros interessados.    
 

 

© Maria Estela Guedes
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