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Em 1996, Robbert Dijkgraaf, actual director do Institute for Advanced
Study em Princeton e na altura professor catedrático
de física-matemática
na Universidade de Amesterdão,
escreveu um artigo intitulado
“A
irrazoável
eficácia
da física
na matemática
moderna”
(1).
O título
era um
“trocadilho”:
em 1960, Eugene Wigner, um famoso físico
húngaro,
já
tinha escrito um artigo intitulado
“A
eficácia
irrazoável
da matemática
nas ciências
da natureza”
(2).
Ambos os autores mostram nos respectivos artigos a fertilização
cruzada entre a matemática
e a física
e argumentam que este fenómeno,
do qual existem muitos exemplos conhecidos,
é
“irrazoável"
porque os objectivos são
distintos: a matemática
procura rigor e beleza, a física
pretende analisar e descrever uma parte da realidade. Em termos filosóficos,
esta relação
fértil
para ambos os lados
é
misteriosa.
Também
a poesia tem tudo a ver com rigor e beleza, tal como a matemática,
e
“a
vida”
é
uma realidade que os seres humanos estão
sempre a analisar e descrever. Embora a relação
entre a vida escrita e a vida vivida seja longe de ser directa e simples
- mesmo em diários,
quanto mais na poesia - existe uma fertilização
cruzada entre a poesia e a vida, também
ela
“irrazoável"
mas
“eficaz”,
na minha opinião.
No resto deste texto vou tentar ilustrar brevemente este ponto de vista,
que obviamente não
é
novo nem exclusivo. Para quem achar a comparação
entre a matemática
e a poesia estranha: num estudo recente (3),
neurocientistas mostraram que há
uma parte do cérebro
que
é
activada tanto pela beleza de fórmulas
matemáticas
como pela beleza de obras de arte - neste caso artes visuais e música.
Curiosamente os cientistas também
observaram que a correlação
entre compreensão
e apreciação
estava longe de ser perfeita, porque o cérebro
de alguns participantes não-matemáticos
achava claramente algumas fórmulas
matemáticas
incompreensíveis
mais belas do que outras! Quem
é
que não
leu já
poemas
“incompreensíveis”
e no entanto apreciou claramente a estética
de uns mais que a de outros?
Antes de continuar, quero desde já
esclarecer que para mim a poesia não
tem nenhuma missão,
nenhum objectivo para cumprir. Qualquer
“thing
of beauty”
merece a minha atenção
sem reservas, não
fosse eu matemático
de profissão
(ainda por cima de matemática
“pura”)
e amador das artes (em ambos os sentidos da palavra
“amador”).
Tudo o que pretendo com este texto
é
apenas fazer uma pequena observação
acerca de uma parte da poesia. Mas uma parte substancial e talvez, penso
eu, a parte que entusiasma mais leitores e garante a sobrevivência da poesia fora de círculos
restritos de aficionados incondicionais (é
importante que os haja também,
como os aficionados da matemática
“pura”,
mas isso seria matéria
para outro texto).
Por ser preguiçoso
e gostar de ouvir a opinião
dos outros, decidi deixar principalmente outros, mais conhecedores de
poesia (porque da vida não
há
doutores), falar por mim. Desde 1993, Garrison Keillor tem apresentado o
programa
“The
writer’s
almanac”
na rádio
pública
americana, onde lê
um poema por dia para pessoas
“normais”,
i.e. pessoas que gostam de poesia mas não
são
necessariamente licenciadas em literatura como ele. Na introdução de
“Good poems for hard times”
- uma das três
antologias que editou dos poemas que tem lido ao longo dos anos e que reúne
poemas de poetas célebres
e (quase) desconhecidos, doutores e autodidactas, de todas as etnias, de
ambos os sexos, mortos e vivos, mas sempre interessantes e com qualquer
coisa para dizer ao leitor de uma forma frequentemente inesquecível
- Keillor escreve (a tradução,
com erros e imprecisões,
é
minha):
“O
sentido da poesia
é
dar coragem. Um poema não
é
um puzzle que tu, leitor cumpridor,
és
obrigado a resolver. Existe para te espicaçar, para cerrares os dentes, tomares atenção,
te levantares e brilhares, teres um aspecto vivo, tomares algum
controlo, perceberes o essencial, puxares as meias para cima, acordares
e morreres como deve ser.”
E mais adiante na mesma
introdução:
“Tudo
o que escrevi como estudante universitário,
eu aqui renego e declaro nulo: hoje em dia na poesia só
me interessam franqueza,
clareza e verdade.”
Ou seja, para Garrison
Keillor e os seus milhões
de ouvintes e leitores (4),
boa poesia
é
aquela que tem a ver com a vida que nós,
pessoas normais, vivemos,
às
vezes em circunstâncias
extraordinárias
- guerra, convulsões
sociais, certas doenças
- mas muitas vezes não
- preocupações
com filhos, com pais velhos, fartos do dia-a-dia mas de repente um
momento de beleza que faz com que tudo valha a pena, os altos e os
baixos do amor, com ou sem sexo, a velhice e a aceitação
de sermos finitos e humildes e todos iguais na nossa infinita
diversidade. Esta
é
a eficácia
da vida na poesia, perfeitamente irrazoável
neste jogo de estética,
mas inegável.
Repito, talvez não
para todas as pessoas, mas para milhões
de ouvintes e leitores de poesia pelos vistos
é
assim. Poemas que
“mexem”
com as pessoas são
muitas vezes poemas baseados na ou inspirados pela
“vida”
- seja o que isso for,
“a
vida”,
porque só
temos milhares de milhões
de exemplos presentes e passados e todos diferentes. Também
é
a eficácia
da poesia na vida, senão
esses milhões
de pessoas não
ouviriam nem leriam poesia.
Mas obviamente, para que essa mensagem
“franca,
clara e verdadeira”
tenha algum impacto no ouvinte ou leitor
é
preciso alguma técnica,
enraizada nas ideias e opções
estéticas
do poeta. Qualquer pessoa alguma vez acordada num domingo de manhã
por uma testemunha de Jehovah sabe que mensagens transmitidas num tom
seco e sem imaginação
irritam em vez de despertar interesse e azulejos na casa de banho com
conselhos
“sábios”
só
despertam a perversidade imaginada de mil e uma maneiras, enquanto o
corpo faz o que tem para fazer.
É
da técnica
e da estética
que depende a eficácia
da poesia na vida, também
ela irrazoável
muitas vezes porque o poeta
“só”
queria escrever um
“bom
poema”
e não
(necessariamente) consolar ou animar alguém.
A defesa desta parte do artigo confio a um poeta algarvio, uma vez que a
nossa tertúlia
se passa em Faro.
Em
“Poesia,
Liberdade Livre (1962)”
(5),
António
Ramos Rosa escreve que o valor da poesia
“reside
não
no que nos diz ou explica sobre a condição
humana, não
nas ideias, crenças
ou atitudes que propõe,
mas em nos tornar presente essa mesma condição fundamental, possibilitando a cada leitor o acto
de recriação
poética.”
Isto parece-me uma versão
secular, sem conotações
de deus e mandamentos etc., do velho adágio
bíblico
(parafraseando):
“a
palavra deve viver em nós”.
A parte mais interessante da frase de Ramos Rosa, para mim,
é
a
última,
acerca da
“recriação
poética”.
Um poema não
é
um texto que transmita informação
de uma pessoa para outra, como um manual de instruções,
por exemplo.
É
antes uma semente que uma pessoa lança
e germina noutra, e em pessoas diferentes germina de maneiras
diferentes. Há
qualquer coisa de mágico
neste processo, como um desconhecido pode partilhar com outros
desconhecidos não
a sua vida mas a vida deles próprios,
não
o que tinha na cabeça
quando escreveu o poema mas o que elas próprias
têm
na cabeça
quando o lêem.
Eu já
tinha sugerido: todos iguais na nossa infinita diversidade. Em termos de
“hardware”
deve haver explicações
neurológicas,
mas em termos de
“software”
a poesia continua espantosa. Vejamos um exemplo do próprio
Ramos Rosa (do livro
“Viagem
Através
de uma Nebulosa”,
1960), sem comentários
adicionais:
Não Posso Adiar o Amor
Não posso adiar o amor
para outro século
não
posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o
ódio estale e crepite e
arda
sob montanhas cinzentas
e
montanhas cinzentas
Não
posso adiar este abraço
que
é
uma arma de dois gumes
amor e
ódio
Não
posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e
a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro
século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração
Para terminar, e para que ninguém
tenha a sensação
de que estou a inventar coisas, quero citar dois antologistas
holandeses. Quando os redactores profissionais C. J. Aarts e M. C. van
Etten aceitaram o convite da editora
“Ooievaar
Pockethouse”
para fazer uma antologia de poesia neerlandesa, assinaram o contrato
cheios de entusiasmo mas sem terem lido as letras miúdas.
O contrato dizia que tinham que reunir os poemas neerlandeses mais
conhecidos, mais populares e não
aqueles que eles achavam os melhores, os mais representativos,
os mais inovadores, ou simplesmente os de que eles,
profissionais com o gosto apurado por muitos anos de leitura e de estudo
da poesia, gostavam mais. Ou seja, o critério
era quantitativo e não
qualitativo, o público
já
tinha decidido, os redactores só
tinham de ir
à
procura de citações
em antologias existentes, reproduções,
reedições
etc. e fazer contas. E como se sabe, o sufrágio
universal na democracia
é
uma conquista muito importante para que uma grande parte da humanidade
viva mais ou menos contente e mais ou menos em paz, mas não
é
necessariamente o instrumento certo para determinar o que vale a pena
nas artes (prometo não
falar da televisão
nem das grandes editoras e livrarias). Mas o que escrevem Aarts e Etten
no fim da introdução
de
“Domweg
gelukkig in de Dapperstraat”
(6)
em 1990, depois da terem completado a sua tarefa ao mesmo tempo inglória e hercúlea?
(trad. minha):
“Afinal
não
foi tão
mau. Para dizer a verdade, até
estamos orgulhosos desta antologia. E orgulhosos de si
(leitor anónimo
e geral - M. M.). Você
tem, salvo muitas excepções
(7) um gosto nada mau. Esta antologia contém
muitos poemas bonitos.
…
…
Isto
é
a sua antologia.”
Até
hoje, e já
foram publicadas muitas outras com outros critérios
de escolha, esta antologia
é
uma das mais apreciadas por todos os amantes da poesia neerlandesa,
profissionais e amadores.
Eis a irrazoável
eficácia
da vida na poesia e da poesia na vida. Q.E.D.
Marco
Mackaaij. (2014)
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