1
Recrio os lugares;
Como o pintor barra a tela com as cores da espátula, camada após camada;
o horizonte e a paisagem têm o mesmíssimo grave e místico palpitar do
silêncio.
2
Peço-te que vivas em mim, tu, tudo o que não sei mas pressinto na única
certeza que virás. Peço-te que vivas em mim; como um regato desliza ao
logo do rochedo e no gélido pego se derrama, no singelo frio que faz.
3
Desenhei, na sofreguidão das cores, no tumulto do sonho e tudo, em meu
redor, foi um remoinho de azáfama da existência. Derrubei caules de
amizades e de certezas... ergo, agora, a humildade do dia claro que, aos
pés da sóbria lucidez, deponho.
4
Deixássemos nós fluir, da ponta dos dedos, os gestos, as carícias
dedilhando a demora de uma ausência maior... e tudo à nossa volta
desabrochava como um terreno baldio, ao Sul.
Deixássemos nós fluir, na gaiatez de um sorriso, na cumplicidade das
horas que já não são dia e ainda não são noite... e seríamos um e apenas
um; eu mar como se fosse céu e tu céu como se fosses mar e seríamos, meu
amor, a imensidão do azul.
5
Desprendem-se memórias como as folhas outonais se despenham dos ramos,
pelo murmúrio da aragem. Não caem por inteiro, na rígida verticalidade
da insegurança, antes oscilam no tremular da sensualidade, sobre a
epiderme do espaço.
Desprendem- se as memórias, como estrelas cadentes que há muito já não
existem...
Ainda de pedra e cal, a última certeza de nós dois, que persiste; vívida
como dantes; o nosso derradeiro abraço.
6
Não te escondas atrás do sofrimento; deixa raiar, em ti, o dia ainda
tenro, ainda imberbe, como sobre as pétalas da rosa a luz do meu país ao
Sul desenha os espelhos onde a aurora se descreve.
Vem a terreiro da tua alma, na oferenda mais sublime da amizade, pois
que a dádiva maior é sermos “nós-nos-outros”. Por isso, é so por ti que,
em mim, reparo nesta passage pela vida; tão sublime e breve.
7
Suspendessem todos os pássaros o voo prometido...
Regressassem à nascente todos os rios...
Suspirassem todos os vendavais...
E dir-te-ia que não te amo.
Ris-te?
Por ti, todas as metáforas
Nunca serão demais.
8
O amor tem relógio próprio;
Nem de sol, nem suisso.
Contam-se as horas, os minutos, os segundos pela ausência.
Descobre-se a eternidade pelo primeiro amor, o verdadeiro, na
adolescência.
9
Prouvera deixar a voz da minha alma na epiderme dos lábios do meu
povo...nesse gesto quase ainda-não, na hesitação do olhar com que te vi
a primeira vez. Deixar a minha alma tal como as folhas se despregam do
céu do arvoredo... e bastar-me-ia que murmurasses o meu nome e
desnudar-me- ia de silêncio; amar-te-ia desconhecendo o que era o medo.
10
Falo, hoje, de mim fazendo o caminho inverso. In versus, redescubro-me
inseguro, incerto se valerá a pena falar de mim. A ostensiva nudez pode
revelar- nos a estopa da vergonha. Rio-me do poeta. Do tempo
alucinogéneo do sonho porque todo o sonho não passa da mentira mais
fingida. Regresso-me e não me conheço... falo, hoje, de mim como se não
fosse eu o que o desencanto foi a maior esperança que a vida me
ofereceu.
11
Morre-se por aqui, na letárgica maneira de um pássaro sem interesse pelo
voo. Sustentamo-nos do ar rarefeito, na raridade do sonho possível de um
oceano que espera ser desvirginado pela quilha da descoberta. Morre-se
por aqui. É todo um país que esgravata a pátria lodosa do silêncio...
todo um país em mim; como braço de um náufrago e a alma escancarada e
muda, sem um grito, aberta.
12
Começo pelo que menos importa em tudo o que nos importa. Um voo de ave,
de fugida, visto pelo canto do olho... eis e ternidade dos brevíssimos
intantes... o resto, o resto, meus amigos, um poema ainda escorrendo o
sangue, flagelado; mumificado em letra morta.
13
Avulso e marginal, todo o meu canto é disperso, pois que o ruído de um
verso é sinfonia, afinal.
14
Uso o fruto, no usufruto da demora; o fruto é a flor em plena aurora e a
madrugada o som que, ao longe, escuto.
15
Deixem-me lançar ao mar os barcos floridos rutilando candeias... são os
meus sonhos, mortos, que inventam, no ludo do céu, o som carpideiro de
imensas luas cheias.
16
Eis a dimensão exacta da surpresa; a barreira transposta sem que o
saiba. Há um negro surrealismo todo a babar- se de luz como a montanha
em degelo. Eis a dimensão exacta da surpresa; como se a vida nos viesse
dar bofetada e nós apontássemos para os óculos que não temos... eis a
dimensão exacta da surpresa; a de nos fazermos pela arte e pela arte
ouvirmos a cidade como se de um búzio vazio se tratasse.
Esboço-me, a tinta da china, e o pranto dilui- me como se fosse uma
aguarela em viuvez... eis a dimensão exacta da surpresa; sou uma sombra
sem objecto, uma e outra vez.
17
Ando por dentro de mim como se andasse dentro de uma sala às escuras. A
amplitude nocturna das coisas relembram- me cidades desertas e praias
sem peugadas sob o toldo estrelado da abóbada celeste... ando por dentro
de mim com um ar de espanto, como o luar a encher o jardim, como se todo
ele fosse feito de afecto. Ando por dentro de mim, como se os nomes
reais fossem canções à espera de uma voz ou uma vida afogada na poesia,
para que seja insólito e distinto e meu semblante e um sortilégio de luz
os salões sem mobílias. Ando por dentro de mim como se fossem breves as
manhãs e tudo quisesse ser, em demasia. Rasgo janelas nas muralhas e o
frio irrompe como um abraço ou uma entoação em busca de um suspiro. Ando
por dentro de mim, como pelas franjas das arribas ou as lambidelas de
incêndios... com o único propósito de, num milagre avulso, me
reencontrar; em pleno dia.
18
Deixarei as palavras para outra serventia que não a dos poemas. Um dia
destes, falar-te-ei deste vício de ser feliz sem o saber, como a
frescura da sombra em pleno Agosto, como a suavidade do cetim e os olhos
a transbordar de paisagens. Soletro as vozes interditas e uso todos os
meios para que o eco seja a luz, no seu retorno, sobre as paredes
caiadas, ao Sul...
Deixarei as palavras para outro destino que não seja o verso. Uma noite
destas, pedir-te-ei segredo sobre tudo o que não disse nas entrelinhas,
como um espelho aguardando a tua imagem, para que nos chegue o repouso
das horas inquietas, perante o vulcanismo da alma alagando, de lava,
tudo o que nos lava o desespero. Deixarei as palavras par outro desígnio
que não seja a insularidade das estrofes... retratar- me-ei num verso
alongado, como ínsula, tesoura
do sonho talhando um rasgo no imenso oceano da agonia. Um destes
meios-dias, erguer- me-ei para lá das palavras como destino possível,
para lá da curva do caminho.
Serei tudo o que quiser. Não te dizia?
19
Falar- te- ei das cartas escritas mentalmente no envelope da solidão.
Sou o remetente indeciso ao canto inferior direito, por escrever a mim
mesmo, no mergulho raso, de alma, ao rés do chão.
20
Retrato-vos um poema cabisbaixo por dentro do sangue, como pausas entre
os passos de um mendigo espreitando ao postigo do
momento. Retrato- vos um poema, extramente caligráfico, por
dentro da água interior dos nomes. Digo- vos “madrugada” e os ossos
iluminam- se, como vielas por onde a criançada inunda de gritos a
correria estridente para que a alegria se faça anunciar. Retrato- vos o
poema... mas convém que o não contempleis de frente; é bruxaria.
21
Desfaço os degraus para que a alma se eleve a pulso... apago um rosto de
silêncio para que o perfil das pequenas glória reavive as faces do traço
sinuoso dos caminhos. E trato-vos por “irmãos” vós, os tresloucados, com
multidões dentro dos sentidos... e mesmo assim, tão anónimos, tão
sozinhos.
22
Deixa- me avivar- te as flores desbotadas do teu riso, como se tombassem
flocos de neve nos carreiros espartilhados entre valados. A montante e a
juzante de mim, sangra a noite numa clausura de palavras onde
permanence, ainda agrilhoado, o poema. Deixa- me avivar- te a rosácea do
espanto para que o sol te trespasse pela primeira vez... pois que partir
é renascer na cadência dos sons, no marulhar das marés.
23
Quanto a tudo; estamos conversados. De nada vale acrescentar o que seja
a tudo o que já seja.
Falemos, pois, do brilho inicial e dos deuses antropófagos que comem os
poetas de bandeja... quanto a tudo; estamos conversados. Que valia
poderá, ainda, ter no coração uma cotovia que nos chame à oração ao
final da tarde? Quanto a tudo; estamos conversados.
Que a lua, atrás da cumeada, nos vem dizer que irrompe, que ainda arde.
24
Empresto o corpo à pira das palavras, no acto pagão de adorar a
subtileza da noite. Inundam-se-me os sentidos e a modulação dos
vacalizos do silêncio escorre ao longo do corpo, como suor salgado de
lágrimas. Empresto o corpo à sagração das paredes sem sombras pois que a
noite é, ela mesma, a sombra-mestra.
Estalam- se os momentos como campos gretados pela secura... empresto o
corpo pois que é de mim mesmo que ainda ando à procura.
25
Falar-te- ia do espaço entre os dedos quando acenamos adeus. Nos nossos
olhos existiria o movimento suave do grão de trigo caindo de uma
espiga... iríamos, por aí, sem destino algum que não fosse o desejo de
partir.
Entender-me-ias nos meus silêncios criadores de um poeta em desespero;
sentar-nos-íamos no degrau do nosso sorriso, como os velhos que mendigam
o sol à porta de casa, indiferentes ao vento friorento de Fevereiro.
Falar-te- ia do que sabes na mútua tragédia deste sonho, para que me
entendesses, agora e sempre, como teu irmão de alma, e companheiro.
26
I
Vem, perturbar- me ó subtil equilíbrio de uma imagem. Traz- me, de
volta, essas minúsculas sílabas de luz como se a liberdade fôssemos nós,
desatados, mas pelo avesso. As mãos como se fossem rochedos. Diz- me,
tal como me dizias em silêncio, que ainda te recordas dos pequenos
pedaços de conchas ao longo do mar, lembrando dentes de crianças. E os
meus versos serão curtos, sincopados, como um punhado de areia que se
escapa por entre os dedos.
II
Unidos pela luz, pela sombra, pelas mãos, pela água... sustentamo-nos de
vazio e fragmentamos os gestos, para que se desenhe em nós o espaço
lembrando cidades apenas, ainda como esboços...
III
O grito que não volta, é a pedra que lancei no buraco negro dos poços.
IV
Interceptamo- nos na coincidência das palavras por que há universos
siameses em nossas almas; é o nosso cordão umbilical que amarra a lua à
pedra do caminho.
27
Convém que sejamos imensos, como o infinito.
Convém que façamos memoriais evocando a ausência da poesia...
E que tudo se estilhace e permaneça como luz incerta e anémica, ao final
do dia.
28
Trazem, de rastos, a poesia; a existência no plano do espírito, como se
uma labareda de sonho esfriasse perante a repulsa visceral dos dias.
Desenham patamares de renúncia e tudo se estratifica como estantes,
prateleiras, onde, dos livros, apenas resta a poeira do tempo e o
desassossego da alma... nada mais, apenas as dedadas como indícios de
que a vida passou por aqui... trazem, amortecidos, os sentidos na
transfiguradora ausência de um rosto magro e olhos esbugalhados como
cálices de onde a vida passa a ser ser/vida.
29
Há pessoas esquivas, como versos que não chegam; bichos medrosos que nos
bufam de longe, com medo que lhes retratemos a alma. Há pessoas
esquivas, com imagens de lascívia ou divindades a lembrar as grades da
prisão... penso nessas pessoas, nesses versos. Solitariamente sozinho,
eis- me aqui, e elas, onde estão?
30
Salvem- se os náufragos, uns aos outros. Lancemos braços nas
extremidades das quais, como promontários sacros, existem mãos abertas e
dedos dispostos a salvar.
A vida?
Este oscilar espumado e feroz. Salvemo-nos, pois, mutuamente, que
existir é descoberta diária a recordar- nos a sepultura do mar.
31
Por muito que descreva as claras madrugadas, viver por aqui é um
desconserto de tudo o que contemplo.
Viesse Cesário sentar- se a meu lado e o redor mostrar-se-ia tão
primitivo como no início dos dias.
Por muito que descreva o Amor, amar por aqui é um soneto de Espanca a
rir- se, por detrás das mãos, do trágico fingimento de nos suicidarmos
no dia em que nascemos...
Já não descrevo nada...
Vejam como esvoaça, da minha alma, um corvo... como se fosse o clarim da
madrugada.
32
As palavras são as galdérias de todas as esquinas. Cruzam a perna no
convite ao poema e é pela nesga do que não dizem que nos indicam o
quarto bafiento de uma pensão; o verso inicial.
Depois... lavamo-nos, secamo-nos em toalhas manchadas de outros sonhos.
Saimos e enfrentamos, como numa pega de caras, o mundo. Olho sobre o
ombro; nem me lembro se paguei o aluguer à solidão.
33
José (Escada), também sobre o meu ombro pousa um pássaro que me debica
os lábios. A ave que, em surdina, me beija de ternura é a desse coração
envolto em penas, nas penas do meu voo por não saber ainda quem, de
facto, sou. As penas, José Escada, amigo “passarófilo”... ainda ando à
procura.
34
Tragam- me a dimensão maldita dos lugares que existem só por si.
Façam-me que os possa vir a ser; em revoadas, sem aviso, como se fosse
pó.
35
Perco o meu nome pelo país adiante, com a rapidez com que as chamam
devoram e se alimentam das agulhas dos pinheiros. Há estalidos de mim, o
calor fugaz e a brevíssima luz a anunciar a neve,ainda morna, das
cinzas... perco o meu nome pelo país adiante, como por cidades estranhas
onde deixei os passos dos quais nem o empredrado se recorda. Elevam- se
os pinhais, como punhais, para que todos os sonhos se recolham, à hora
do ocaso, nas grutas dos meus olhos, como morcegos videntes trazendo, de
todas as coisas, as asas recolhidas nas pregas do silêncio. Perco o meu
nome pelo meu país adiante, como pelo labiribnto de sebes de cameleiras
deixando cair por terra, do regaço da verdura, o milagre das rosas
desfolhadas.
Arrecademos, pois, o regresso do meu nome como se fosse as fontes de
onde nascem todas as palavras...para que descreva, no céu, o
incêndio-mor, chamado entardecer.
36
Fosse eu imune ao sortilégio de um puro coração... e ser-me-ia bem mais
leve o fardo de existir.
Fosse eu imune ao bruxedo do exílio por dentro... e salvar-me-ia da
miséria da vida, como rodapé da existência.
Fosse eu imune às dádivas do espanto perante; sortilégio, bruxedo e
miséria...
E não sofreria tanto.
37
É pela raiva que tento conquistar o destino, o lugar que me é merecido.
Olho a vida como morrão de cigarro... e rio- me que nem um perdido (à
socapa), rio- me até às lágrimas... mas de ouvido.
38
Jamais serei poeta de roupão e de pantufas; antes botas de cabedal
ressequido, com esterco de pássaros colado à sola... pedem os outros os
louros, eu peço aos dias uns parcos versos, por esmola.
39
Há um ponto de vista na cegueira nas letras cabisbaixas dos doutos
onanistas do meu país. Ah, prefiro mil vezes, pelo olhar, o prazer
ejaculatório, de me rever num campo lavrado e de me sentir raiz.
40
"A PULGA DE SÓCRATES"
I
Ó supremo e magistral desígnio de ser pulga
neste país; uma mordidela e eis- me nos anais da História...
ó supremo e magistral desígnio (dos dípteros "salteadores" parasitas do
homem e de outros animais, que pertencem ao grupo dos suctórios e que
são agentes (e no cu lá dores) de algumas graves doenças...
II
SALVÉ, Ó PULGA DE SÓCRATES!!
testemunha dos "selfies" ridículos e parolos em frente à porta da
cadeia, como se fosse junto ao templo de Diana...
salvé, ó pulga! bafejada pela sorte de ter partilhado a choldra com
ele...
Qual Antero, Espanca, Natália, Sophia ou o tal Camões; meros e
insignificantes mortais perante a tua "realeza" de seres pulga, sim
pulga maiusculada.
Salvé, ó pulga, endeusada como na antiguidade clássica as estátuas em
festivais de Maio...
III
ó supremo parto do texto jornalístico, do pasquim diário que, pela
manhã,
alastra a pátria de ponta a ponta que aponta as tragédias de " faca e
alguidar!...
ó magistral libertação da verve da prisão de ventre do escrevinhador...
IV
Hossana! Haja pulga atrás da orelha da " cega, surda, muda" apelidada de
JUSTIÇA...
haja pulga nos bancos; novos, velhos, de segunda mão da feira da ladra e
do ladrão, e nas cadeiras dos magistrados, e nos camarotes régios
desportivos em " black out " de verdade...
V
Salvé, ó pulga eborense, que nos redimiste da futilidade dos dias e
deste bússola, como bufa enfunando as velas da caravela da corrupção...
O Régio que se lixe... que este povo só vai por onde a " carneirada"
for.
A Eufémia (parideira) que se não tivesse posto em frente da metralha de
um bronco e de bigode até aos joelhos... só por exigir o que era devido
a um povo...
VI
ó supremo e magistral desígnio de ver nas alvas pernas de Sócrates as
tuas cagadelas, como retratos fidedignos dos cérebro de tantos (de) puta
(dos)!!
Salvé, ó pulga maiusculada!!
traz- nos, nos teus saltos acrobáticos, o ratio dos gráficos do défice,
e a curva de mercado capitalista a dobrada; não à moda do Porto cerviz
perante a " Merdakel"; espatilhada no fato de corte único, cortando-nos
a fundo, na austeridade europeia de onde surge, às claras, o novo
feudalismo do povos ao Sul.
VII
Salvé, ó pulga de Sócrates, e não de um Coelho mais esperto que os
ratos... que fugiu à época de caça da Segurança Social durante cinco
anos...
Salvé, ó pulga dedilhando nos pelos das pernas de Sócrates, a cítara e o
fado da endémica ladroagem, e dá-nos, como CONSTITUIÇÃO, " A ARTE DE
FALACIAR TODA A CELA"...
VIII
Ó supremo e magistrado desvio em paraísos fiscais de que nos contas, ó
pulga, enquanto nos sugas -bem menos que os governos- e nós, por aqui,
envergonhados, coçamo-nos, sorrimos e dizemos:
-É a histórica brotoeja.
41
I
Olhos secos, como as pedras, com o mar lá dentro no imbrincado de
reflexos; como por dentro de galáxias existe o sistema planetário dos
abismos. Olhos secos, como relógios parados, sem o tiquetaque do coração
com o único sentido e nexo primordial sem antes nem depois. Olhos secos,
por muita que seja a chuva sobre os campos; olhos de estio, como
epílogos extensos na última carta de um amor que nunca tivemos... os
meus olhos, como pedras, que sonham ter a gravidade dos rochedos e a
leveza dos remos.
II
Difusos devaneios, como é indeterminada a sensação de vazio; eis-me como
derradeira alternativa de mim mesmo. Que nos mostra o sonho senão o
verso do concreto, a face para a ordem geográfica de todos os sentidos?
Ipsis verbis; os olhos como pedras para que vejam todos o rosto onde
havia o sinal de ânimo, de elmos, grevas e de arneses... Olhos secos,
como pedras; tantas vezes.
42
Existir; eis a premissa da épica respiração sob a influência dos deuses.
Há forças-motrizes dos limites onde se divizam os caminhos a tomar, ao
longo do poema. Existo e leio-te no contacto descontraído e lúdico, para
que renasças em mim como ideia geral de tudo. Depois, repito a forma de
te olhar assinalando em ti recorrências ou dúbios recantos do
entendimento. Existo por me reconhecer, para salientar relevos nos
“comos” e nos” porquês”. Existir; eis a premissa
De atmosferas poéticas... sem previsões para ao dia seguinte.
43
Sondo o interior da matéria poética, na hierarquia de emoções, como
presença normativa do alto sentido simbólico. No crivo do silêncio,
ostento-vos o sonho postiço, como pepita, desfiando a destrinça dos
gestos, desafiando o cascalho das horas, os seixos dos instantes...
Sondo, a superfície das formas pela íntima coerência e, todavia, à
cabeça do poema, suspenso, continua ainda a guilhotina da demora, como
visões distantes.
44
Mar interior; fruto das lágrimas pelas grutas de tenras memórias e
anciãs tragédias de me ficar por aqui. Todos os polissíndetos de mim
repicam e ecoam; e, e, e...
Olho as mãos e aqui estou; descontínuo nas rigidez das pirâmides.
Mar interior; fruto da morbidez sem tempo progressivo para que os pontos
se atinjam e os “nós” sejam apenas “eu”.
45
A pequena luz do fósforo cria a brevidade das sombras como fénix
renascida. Tudo nitidamente fantasmagórico e demonáco, como a
melancholia descrita nos olhos vítreos dos pássaros. Sou como um poema
bruxeleando, mas poema. Que importa pois morrer na humilde coluna de
fumo...para que o breu do silêncio me adormeça no regaço?
46
Não me amedrontam os prados sem
fim da Holanda; esse verde até perder de vista. Não me amedronta
a planura meticulosamente cultivada... amedronta- me, sim, a inteira
perdição de não atingir tudo... como uma fogueira pagã numa noite de
Verão.
47
Meditemos, pois, sobre as razões da mudança como leitura de búzios ou de
cartas, viciadas, nas aparas de papel dos dias varridos para um canto.
Meditemos, pois, sobre as coisas simples e tenebrosas que a terra é
enorme e apenas somos felizes no lugar que conhecemos. Meditemos, pois,
no fervor alheio de olhos revirados na catárse de orações... Meditemos,
pois. Se tens os pés na terra... e onde os pões.
48
Vasculho, ainda, as relíquias das folhas outonais. Como não tem
chovido...ei-las hirtas, firmes enrijadas de étimas cores e rebordos de
aço.
Vasculho, ainda, as relíquias de dias escaldantes... como qaundo dormia
entre os teus braços; sem esperança nem cansaço.
49
Uma nódoa esbranquiçada como o sol mortiço num céu de Inverno, ou o
sinal de prazer num lençol amarrotado... Há um aroma de cravos nos meus
dedos ex- cravos de ti que todo o alcance das escadas de pedra me
apontam o teu olhar, como um punhado de brasas. Tudo é comum; a palma da
mão sem quaisquer linhas que não seja a linha do Sul que me transporta
para os vinhedos nas arribas das falésias. A minha vida é uma mancha que
se alarga, como os olhos húmidos, no sonho de engolir o mar por inteiro.
50
Se eu te falasse da palidez da madrugada, acreditar-me-ias?
Se eu te falasse dos alçapões que nos levam às galerias no útero da
terra como se fossem vergéis dourados de margaridas e salpicos
sanguíneos de papoilas, acreditar-me-ias?
Olhemo- nos, em silêncio, que em nossa alma crepita a poesia subversiva,
para gerar o grito lacinante de um trovão...
51
As flores têm, na sua beleza, a ideia feliz de morrer em breve. Tal como
eu, vagabundo ou descobridor de cidades... talvez fosse melhor nada
disto ser par distorcer os cordames da memória, pela qual, ainda hoje,
me invades.
52
Benditos sois vós, os bafejados pela obscura vida interior de
inspirações repentinas, vós tendes a glória das derrotas e dos sacros
impulsos.
Benditos sois vós, pelos círculos exteriores no epicentre da alma e nas
paixões avassalantes de um suicídio por amor...
Vós tendes o desespero!
Benditos sois vós, malabaristas das palavras e frestas largas de
tristeza a rir- se de si mesma.
Eis-me aqui, vosso coroador de árvores fulgentes; como dias de sol em
demasia, intensos, para que os não olheis de frente.
Eu vos coroo com a persiana das mãos sobre os olhos para que vos devolva
a visão e não cegueis pelo magnetismo da inércia que vos cola às paredes
da nulidade...
Benditos sois vós, poetas meus irmãos, que ressuscitais de um cravo
vermelho alagando de esperança um país à beira povo...cantando o novo
sonho, pelas ruelas da cidade.
53
Volto sempre ao mesmo.
Como se uma música lancinantemente feliz disferisse a lança da tristeza.
Volto sempre ao mesmo.
Por ser um homem comum carregando, sobre os ombros, a pesada
cruxificação, em vão, pela Língua Portuguesa.
54
Fica no rés do chão a minha cela. Onde aprisiono imagens e lembranças...
Do coração, sobe, ao piso da cabeça; a jovialidade dos poemas, como
sobe, de dois em dois degraus, a algazarra das crianças...
55
Há rios baixos por onde se vislumbra o lodo.
Tal como em mim, mero lírico poeta, a disse/dessecar-me todo.
56
Passo noites e dias nos quartos da memória como em pensões, lisbonenses,
ou espeluncas de bafio.
Venho às janelas dos nmeus olhos como se, por Março, se anunciassem as
exéquias do frio.
Passo noites e dias nos varandins ao Sul; arranco os olhos da alma,
lanço-os ao céu...
Percebem agora por que sou, constantemente (por dentro e por fora) todo
azul?
57
Pudéssemos nós morrer de vez em quando, como quem faz a sesta após
caracolada a um de Maio...
Regressarmos com os vapores da Sagres (neste mini país) no sangue e na
falta de equilíbrio da passarela de Gusmão...
Pudéssemos nós morrer uma vez por outra para que aprendéssemos o
verdadeiro sentido da vida mas... seríamos deuses... e ser deus não me
apetece, não!
58
PORTUS CALE
I
(Açores)
Há corações fumegantes como as caldeiras das sete cidades. O meu...
lembra um tabuleiro de xadrez onde a rainha se amancebou do peão.
Corações fumegantes como o vapor das saunas nórdicas e os odores dos
fogareiros a carvão.
Há corações de borralho...
De cinzas aindas mornas, sou um vulcão extinto, meu amor quando
retornas?
II
(Trás os montes)
Havia uma casa de pedra, sem portas nem janelas.
Achei que me encontrava sem saber, ao certo, ao vê-las por que era eu
uma delas...
III
(Alentejo)
Sei dos meus poemas como sobreiros em carne viva e de todas as ralações
do mundo; dos impérios (des) feitos em cacos e das ideologias como
manteiga no focinho do cão, guardando o monte...
Sei dos meus poemas como o cante dolente e barroco por precisar da
solidão e desconforto.
E se, por vezes, finjo estar dormindo... durmo envolto na samarra em
pleno Verão; e digo-vos que estive “dormimorrendo” mas morrer, por
agora, ainda não.
IV
(Algarve- po(r)lar)
Pintei, no céu, uma porta enigmática que daria, se tudo tivesse corrido
de acordo com o projecto, a uns quantos lanços de escada que me levariam
para salas que nunca existiram por si só.
Pintei, no céu, numa paisagem de leitura linear... e vejam, aqui ando eu
às apalpadelas; detesto o vosso riso perante o meu (des) norte:.
-Vejam, um poeta...tenham dó!!
59
Redestruo os lugares, como escultor que mutilasse as desproporções de
David ou decidisse amputar do regaço da Pietá o cristo morto...
O horizonte e as paisagens têm o cereníssimo palpitar ensurdecedor dos
minhotos arraiais, de um povo triste, ou das marafadas cigarras nos
estevais... ali para os lados do Rio Torto.
s.b.messines
(7-1 a 4-3 de 2015)
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