i
CORRO
pelas ruas com o coração
de uma
andorinha no peito
uma andorinha
que morreu
no último
inverno
e agora
ressuscita sob o feitiço
dos teus
beijos clandestinos
beijos
húmidos como a redondez
dos frutos
negros
ii
O SANGUE escorreu, aceso
daquele
pescoço degolado
onde estava
deus? alguns dizem
que se tinha
ausentado
( talvez de
férias ? )
em baixo:
ratazanas e baratas
bebiam
daquele sangue desgloriado.
iii
-
Michelangelo Merisi -
QUANDO
naquela manhã Caravaggio acordou de sonhos
irrequietos,
correu pelos becos da Cidade Eterna
todo nu e
irado.
a cabeça
estremecia-lha. e gritava. e espumava.
espumava da
boca como os cães raivosos.
nessa mesma
manhã, seriam 10 horas, numa rixa de rua,
degolou um
jovem e muito belo cavaleiro.
a partir dai
a sua pintura não mais foi a mesma.
a clareza
sensual e a pureza desapareceram das suas telas.
agora reinava
uma luz nova,
uma luz
original, poderosa e demoníaca.
há quem diga
que era a luz da ira de deus
que o
perseguia e não mais o deixou em paz.
com 38 anos
Caravaggio morreu (sob circunstâncias
misteriosas)
talvez decapitado pela mão do próprio deus.
iv
- A gaiola -
A LUA é um escarro verde
a janela está
aberta
o pássaro
terrível emerge
do fundo do
pomar
e entra no
sexo da mulher
que está
sentada numa cadeira em fogo
com uma
criança cega
ao colo,
sentada
depois
atravessa o sonho do homem
com um
chilreio
um chilreio
vermelho - estridente
por fim
desfaz-se em cinza
e agora a
loucura escorre
pelas paredes
do quarto
escorre
vermelha e ácida
escorre
vermelha ácida e verde
e o velho
poeta ajoelha - se
crava pregos
na porta da cave
para que deus
não possa escapar.
v
- Jazsus -
E DAI a alguns dias enterraram-lhe o dedo
no buraco do
lado esquerdo
( esta era a
prova que faltava.. )
um liquido
mole como a dureza escorreu
um cheiro
pestilento inundou o espaço
depois –
comeram e beberam
e levantado
as taças exclamaram: JAZSUS!
vi
- Primavera -
ERA
um quarto obscuro
do tecto
escorria um liquido branco
em baixo uma
mesa redonda
com pé de
galo
sobre ela:
uma laranja, uma faca
um peixe
morto e um batom
sentado à
mesa: o velho poeta
a quem tinham
podado os dedos
para que
voltasse a florescer.
( Março 2015,
Jena )
vii
- Primavera 2
-
DEITEMOS este cadáver
decapitado ao
Aqueronte
pois deus
nunca existiu
foi um mau
sonho
uma rósea
monstruosidade
é preciso a
morte
o seu
relâmpago higiénico
para que a
primavera subsista.
( Março 2015,
Jena )
viii
ESTA NÁUSEA que se faz em mim.
este vómito
tremendo.
o nojo que
estes tipos me provocam.
as suas
palavras funcionais.
o seu hálito
muito moralista.
a imunda
higiene.
digo: nem o
meu ódio merecem.
nem o meu
desprezo.
isso já seria
valorizá-los.
passo. viro a
cabeça. escarro.
ix
VESTIRAM-LHE uma túnica branca
puseram-lhe
uma coroa de louros
no altivo
pescoço uma gravata
pentearam-lhe
as barbas búdicas
depois
colocaram-no
ao centro da
praça como as estátuas
à volta
acenderam tochas
adoraram-no e
disseram: eis o HOMEM!
um dia
chegaram os outros
enraivecidos
,o sangue novo aceso
e
alvejaram-no e derrubaram-no
e
arrastaram-no pelas ruas
como Aquiles
fez com Heitor
( assim a
história se vai repetindo
ad aeternum )
x
ESTA noite rasgarei o meu peito.
com uma
navalha de ponta e mola
arrancarei o
meu coração.
a cabeça
engrinaldada.
uma mortalha
cobrindo a nudez.
assim
descerei aos teus aposentos.
sim. amar -
te - ei sem coração.
serei febril.
serei cruel.
mas, quando
mais tarde olhares
para o lado
esquerdo, verás o meu coração
ardendo,
manso e
dourado,
como o
pássaro canoro.
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