|
|
|
REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 51 | abril-maio | 2015
|
|
|
JÚLIO CONRADO
Eugénio Lisboa:
memórias de uma vida cheia
Entrevista
|
|
|
|
|
|
EDITOR |
TRIPLOV |
|
ISSN 2182-147X |
|
Contacto: revista@triplov.com |
|
Dir. Maria Estela Guedes |
|
Página Principal |
|
Índice de Autores |
|
Série Anterior |
|
SÍTIOS ALIADOS |
|
Apenas Livros
Editora |
|
Arte - Livros Editora |
|
Domador de Sonhos |
|
Agulha - Revista
de Cultura |
|
Revista
InComunidade |
|
|
|
Eugénio Lisboa tem
vindo nos últimos anos a escrever e a publicar as suas memórias num
notável esforço para contar uma história de cidadão do mundo que viveu
as vicissitudes do seu tempo com grande intensidade, irreverência e
sempre apaixonadamente. Natural de Lourenço Marques (hoje Maputo), aí
decorreram as suas infância e adolescência no seio de uma família
modesta mas muito solidária e daí partiu para a Metrópole com a
finalidade de cursar engenharia e cumprir o serviço militar.
Em Lisboa, no
Instituto Superior Técnico, completou a sua formatura em engenharia
electrotécnica e, em Mafra, foi à tropa. Pelo meio, a devoção literária
equiparável à paixão pelas ciências exactas, designadamente a
matemática, estaria na origem dos altos voos realizados numa e noutra
das especialidades (ensaísta, crítico, gestor, engenheiro, conselheiro
cultural, professor de literatura, etc.) conjunto a que não faltou o
reconhecimento académico (Doutor Honnoris Causa pelas Universidades de
Nothingam e Aveiro), e diversas condecorações e prémios – o mais recente
dos quais foi o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação
Portuguesa de Escritores/ Município de Castelo Branco 2012/2013, pela
edição de Acta Est Fabula – o
seu livro de memórias, neste caso o I
volume .
Julguei oportuno
ouvir Eugénio Lisboa para o Triplov, colocando-lhe algumas questões
cujas respostas, enriquecedoras, dão uma ideia da importância deste
depoimento no qual a odisseia pessoal se cruza frequentemente com factos
e “atmosferas” que caracterizam de maneira muito viva e informada o país
que fomos num tempo histórico que também, em diferente contexto,
partilhei.
|
|
|
JC -
O
Eugénio, como já referi, foi distinguido recentemente com o Grande
Prémio de Literatura Biográfica pela sua obra
Acta Est Fabula. Fale-me do
que representa para si um prémio desta índole e do que pode significar
num país onde “biografia” e “memórias” não são géneros particularmente
cultivados e menos ainda venerados. |
|
|
EL - Os prémios, como
tudo, são controversos. Tolstoi recusou o Nobel que lhe iam dar, Shaw
recebeu o diploma e a medalha, mas recusou o dinheiro e Sartre, diz-se,
recusou o diploma e a medalha, mandando, no entanto, um recado
subterrâneo, a informar que aceitaria o dinheiro. Il y en a de toutes
les couleurs. Cocteau aconselhava-nos, não só, a não aceitarmos prémios,
mas, até, a fazermos por não os merecer. Puro radicalismo, para épater le bourgeois: é ver se não
aceitou a Academia, que também pode ser vista como um prémio. A verdade
é que, ao ver-se a lista dos escritores que o Nobel ou o Goncourt
deixaram de fora (verdadeiros gigantes), para, em vez deles, premiarem
autênticas mediocridades, já esquecidas ou em vias de sê-lo, não se pode
deixar de ficar céptico, em relação ao valor dos galardões, mesmo dos
mais prestigiados.
Como não sou ingrato
nem radical e como o júri do prémio que me foi atribuído era constituído
por gente séria e competente – com o ligeiro inconveniente de serem
todos meus amigos – confesso que fiquei feliz. Sobretudo por o livro
galardoado ser um dos meus livros que particularmente acarinho: o 1º
volume das minhas memórias. Se o prémio ajudar a levar para mais longe
os momentos mágicos da minha infância e adolescência, em Lourenço
Marques, ninguém ficará mais contente do que eu.
JC -
As
suas memórias espraiam-se por cinco volumes (previstos) dos quais foram
publicados três. Há mesmo um salto do I para o III, ficando por editar o
II, “salto” que foi objecto de uma explicação do autor ao leitor. Apesar
dessa justificação, gostaria que a replicasse sumariamente nesta
entrevista para os leitores que a não conhecem mas que pode esclarecer
uma questão, que lhe está ligada: a sua obra
Acta Est Fábula foi um
projecto longamente amadurecido e os materiais preparados durante anos
para quando fossem precisos, a pensar na posteridade, ou materialização
de um desejo recente de pôr cá fora a sua experiência de vida? Ou os
textos de Indícios de Oiro,
nos quais há basta matéria autobiográfica e que são apresentados como
não “tendo tido um script que
precedesse a sua redacção”, seriam já o embrião das memórias, ainda que
projecto não explicitamente assumido?
EL -
Escrever memórias, passados os oitenta, é um atrevimento.
Planeá-las em cinco volumes é pura loucura. Ninguém me podia assegurar
que viveria o tempo suficiente para os escrever todos. Por isso quis
garantir que escreveria, pelo menos, sendo possível, os volumes I e III,
que cobririam o total da minha vida em África: os anos de 1930 a 1947 e,
depois, os anos de 1955 a 1976. Em África nasci e lá me fiz e ali gozei
os melhores anos da minha vida. Estas dívidas devem ser pagas. Foi por
isso – e só por isso – que saltei do 1º para o 3º. Depois, continuei em
frente: publiquei, no ano passado, o 4º e estou agora mergulhado na
redacção do 5º, a sair no final deste ano, se tudo me correr bem. O 2º
será o último a escrever: é importante e será o mais difícil de fazer.
Não tenho documentos (não sou grande guardador de papel e houve
diásporas pelo meio), terei portanto de recorrer só à memória.
Quanto à posteridade,
não gasto muito tempo a pensar nela e não fio dela fazer a justiça que
me não façam os contemporâneos. Não vejo razão para pensar que a
posteridade será mais justa e mais inteligente do que a
contemporaneidade. Mas gostaria, é claro, que o registo dos meus
momentos privilegiados durasse um pouco para além da minha vida na
terra. Procurei torná-los vivos, dando-lhes tudo aquilo que tenho. O
resto já não depende de mim.
Não, não guardei nada
a pensar na posteridade. Não pertenço a essa paróquia. Sou um
desarrumado e um despreocupado. Não consigo encontrar coisas que me são
preciosas. Para escrever o 4º volume, tive que passar semanas nos
Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a folhear as
informações de serviço, que enviei da embaixada de Londres para Lisboa.
Não guardara nada comigo. A correspondência que possuía (trocada com
figurões) já não está cá em casa – mandei-a para a Biblioteca Nacional
porque de lá ma pediram (Jorge Couto, quando era director). Se não,
estaria para ali, na garagem, guardada em caixas. Faço questão de
sublinhar que não a vendi – dei-a.
Há um tempo, já, que
pensei em escrever as minhas memórias, pelas razões que assinalei. Ao
fim e ao cabo as pessoas, cá, sabem pouco da vida em África, nas
embaixadas e no polo norte… Como diz, há textos meus, publicados, que
são de pura autobiografia. Mas quis agora fazer uma coisa mais
abrangente, mais concertada, mais minuciosa, que desperdice menos
pepitas… Aqueles outros textos podem, de facto, ser considerados,
objectivamente, como embrião destes cinco volumes, mas não foram
escritos com esse propósito: aconteceram apenas, ao abrigo das
solicitações do momento.
|
|
|
|
1937 - Infância em Moçambique. Com o irmão, Fernando, falecido
em 1944. |
|
|
|
|
|
1957. Em Moçambique, regressado de uma viagem à Rodésia do Sul. |
|
|
|
JC -
A
anedota é conhecida mas o seu caso é exemplar. Nunca perguntes a um
alemão quanto tempo leva a escrever um livro. Pergunta-lhe que
quantidade de esforço foi preciso despender para o conseguir. Eugénio
Lisboa não é alemão mas é um trabalhador incansável. Dobrada a casa dos
oitenta a sua escrita tem a frescura, a lucidez e a acutilância de um
“jovem” quarentão. Como o consegue?
EL - Tentando ser
claro e verdadeiro. A mulher do grande pioneiro da imunologia – Sir
Peter Medawar – perguntou-lhe um dia o que visava ele, no seu estilo,
quando escrevia os seus admiráveis ensaios de cariz científico.
Respondeu com uma só palavra: “Clarity.” A vivacidade translúcida de
Voltaire, de Stendhal, dos grandes clássicos, em geral, que fui
conhecendo e, um pouco mais tarde, de Russell, Sérgio, Schopenhauer e
outros vacinaram-me, para sempre, contra a trapaça da opacidade
deliberadamente procurada e vendida como “profundidade”. Gosto de
conviver e de comunicar saudavelmente e um pouco de vivacidade e de
honestidade ajudam. A leitura de bons filósofos e cientistas também. A
falta que faz, nos cursos de letras, um pouco de filosofia! E uma
saboreada introdução à ciência – lavaria tanta crosta pretensiosa e
inútil na prosa dos nossos líteras…
JC -
No
primeiro volume da série, em que exprime uma visão feliz da Lourenço
Marques colonial “respira-se” uma atmosfera de paz social; diria que
quase de naturalização da presença do colonizador na colónia. Não havia
tensões sociais sérias na capital e no interior que traduzissem
mal-estar pela presença do colonizador?
EL - Claro que havia
e, se no 1º volume mal o insinuo, no terceiro volume (das minhas
memórias), falo nisso claramente. No 1º era um pouco cedo. Eu tinha
nascido ali, aquilo fora sempre assim, a separação e a injustiça eram
parte da paisagem quotidiana. Quase não dava por nada. Houve alguns
sobressaltos, mas insuficientes para muito fundas cogitações. Vivia
realmente num paraíso dentro de um não-paraíso. É possível isso
acontecer? É. Quando voltei a Lourenço Marques, concluído o curso, em
1955, essa “inocência” já não era viável. Foi ainda possível ser feliz,
mas era uma felicidade minada.
Conto isso tudo no terceiro volume.
JC -
Considerado o melhor aluno do Liceu (refiro-me a
Indícios de Oiro, obra que
precede Acta Est Fabula)
sentiu-se, por isso, predestinado para um futuro de excepção? Se a
resposta é sim, em que medida a literatura o ajudou a alcançar esse
patamar, quando o destino começou por encaminhá-lo para a engenharia
electrotécnica, em que se formou? Sendo a matemática uma das suas
paixões, esteve ela na origem da sua opção académica inicial? Ou chegou
a admitir não ser essa a sua verdadeira inclinação e partir para outra?
EL -
Claro que sim. Não sonhamos todos com isso? Com termos um destino de
excepção?
Quis ser, sucessivamente, Voltaire, Stendhal, Eugene
O’Neill, Roger Martin du Gard, Hemingway, Schopenhauer, Thomas Mann,
Proust…
A seguir à leitura de
Le Rouge et le Noir, pus-me a
escrever, com muito afinco e convicção, uma
História de Julião, no estilo
mais stendhaliano que pude congeminar e, depois, fui à Bíblia buscar
assuntos escabrosos, para, no estilo mais “realista” e nada bíblico,
imitar algumas tragédias de O’Neill: tudo muito “rough” e
deliberadamente escandaloso (“agora é que eles vão ver como as coisas
são”). A seguir pus-me a cultivar o estilo seco e declarativo do
Hemingway e, para provocar, levei isso para a prova de exame final de
Português, no sexto ano do liceu, na cadeira de Português-Latim. Ia-me
lixando: o que me salvou foi um 18 a Latim, que me colocou a média, na
disciplina, em 16 – o Português foi punido com um 14, por causa da
secura do autor do A Farewell to
Arms…
Claro que queria ser
alguém, sabia que podia ser alguém, mas não falava nisso a ninguém. Era
tímido e calado e arvorava uma grande indiferença em relação ao futuro.
Mas sonhava…
Eu gostava muito de
Matemática e de Física, mas não gostava menos de Literatura e Filosofia.
Eu deveria, talvez, ter escolhido um curso de Matemática e não de
Engenharia, mas poderia, igualmente, ter escolhido Letras ou Filosofia.
Nunca vivi “dicotomias”: ou Letras ou Ciências. Gostava das duas.
Quanto ao que
consegui, na vida, não hesito em declarar que ficou muito aquém do
sonho. Mas não fica sempre?
JC -
A
sua primeira grande viagem – Lourenço Marques / Lisboa – foi realizada
por mar (I. de
O.) sob o efeito vivificador dos feitos de Ulisses (personagem da
literatura que só na literatura existiu) e de Camões, sob pressão, por
conseguinte, do mito da viagem no seu imaginário. No regresso a
Moçambique viajou de avião. Acha que se quebrou qualquer coisa no seu
fascínio pela viagem romântica e conectável com o seu destino, nessa
mudança de meio de transporte?
EL - Não
há comparação possível entre uma viagem e outra. A viagem de avião
suprime o prolongado contacto com o mar, a chegada aos portos, os
enredos e revelações a bordo, a sensação de uma deslocação lenta mas
inexorável, demorada e insinuante, os conhecimentos que se travam, as
perfídias que se tecem, os D. Juans de pacotilha, que topam, naquele
terreno de caça em concentrado, a sua oportunidade – matéria-prima de
tantos contos inesquecíveis de Maugham. Não há comparação possível. Um
dos meus sonhos é realizar, antes de morrer, mais uma longa viagem
marítima, a bordo de um navio de carga, com poucos passageiros…
JC -
Considera a sua experiência em Portugal, durante a primeira estadia,
positiva. Decerto nalgumas situações mais do que em outras. De todas
aquelas que relatou nos seus livros qual a ou as que considera mais
determinantes na sua formação como pessoa? A adaptação foi traumática?
EL -
Muito traumática de início (Lisboa não era Lourenço Marques – e no não
sê-lo já estava o mal –, por outro lado, o ensino superior não era
aquilo que eu sonhara: fiquei a respeitar e a admirar três ou quatro
professores num curso de seis anos e dezenas de cadeiras), foi, no
entanto, uma experiência rica, intensa e variada. Algumas disciplinas
foram realmente inspiradoras, conheci colegas que ficaram amigos para a
vida – alguns, como o António Brotas, o Manuel Graça Baptista e o
Costinha ainda estão felizmente vivos, embora o Alves Marques já tenha
falecido –, reatei contacto com velhas grandes amizades, como o Zeca
(Tiago) Oliveira, descobri grandes autores, que passei a não ter medo de
ler no original, descobri a grande literatura espanhola, fiz uma
primeira e prolongada estadia em Paris (mesmo com pouco dinheiro) e,
last but not least, o meu mau comportamento militar em Mafra atirou-me,
como oficial miliciano, para Portalegre, onde tive a oportunidade de
conhecer uma das maiores figuras da nossa literatura e cultura, de quem
fiquei amigo até à sua morte: José Régio. Ao lado da sua estatura
intelectual, artística, espiritual e moral, tantas glórias trombeteadas,
laureadas e apaparicadas, de hoje, parecem-me pigmeus descartáveis e um
pouco risíveis. Conheci também , pessoalmente, por intermédio do meu
amigo Tiago Oliveira, um homem fascinante
que havia muito admirava: António Sérgio, cuja influência sobre a
juventude (e não só) tanto mau sangue fez a tanta gente que ambicionava
lavrar o mesmo território. Vergílio Ferreira foi um exemplo. Mas não foi
o único.
JC -
Apesar de não ser um romance
Acta
Est Fabula conta uma história de amor. Paixão, companheirismo,
lealdade, enfim, valores que se sedimentaram na sua união com Maria
Antonieta. O facto de não terem feito um casamento religioso gerou
anticorpos na sociedade local?
|
|
|
|
21 de março de 1959, Lourenço Marques. Casamento com Maria Antonieta. |
|
|
|
|
EL - Claro que gerou. Antes de nos casarmos, algumas
pessoas avisaram a Maria Antonieta de que o não casarmos pela
Igreja levaria a que certas famílias se recusassem a ter
relações sociais connosco. Só há relativamente pouco tempo, a
Maria Antonieta mo contou: na altura poupou-me a isso. Acho que
respondeu que era para o lado em que dormiria melhor. Naquele contexto socialmente
estreito e paroquial, ser “pessoa de bem” era ser católico apostólico
romano, ir à missa, mesmo que com alguma irregularidade, casar pela
igreja, baptizar os filhos e ser facialmente temente a Deus, à Pátria e
à Família, ainda que, de caminho, se praticasse uma ou outra patifaria
(nada de exorbitante). |
|
|
As minhas filhas nunca foram baptizadas (nem eu o
fui). Note-se que tive e tenho bons amigos religiosos (nihil obstat)
mas, para cá deste Marão, mandam os que cá estão. A minha admiração e
amizade pelo Régio nunca tiveram nada a ver com religião.
JC -
Censura e pide. Episódios tão ridículos como a interpretação da polícia
de que as capulanas verde rubras das moçambicanas constituíam um ultraje
à bandeira nacional levou à barra dos tribunais o poeta Virgílio de
Lemos, que as evocou num poema. Secundando o seu amigo e advogado Carlos
Adrião Rodrigues, o Eugénio lá esteve no tribunal como testemunha de
defesa. O processo chegou ao Supremo após recursos do Ministério
Público, do qual obteve igual sentença: a absolvição. A pide não
devolveu os livros mas pagou ao poeta uma quantia em dinheiro. A forma
como Eugénio Lisboa descreve a peripécia é deliciosa e hoje faz-nos
sorrir. Mas naquele tempo era preciso levar esse tipo de situações muito
a sério…
EL - Era. Fui mais do
que uma vez incomodado pela PIDE e o meu Director-Geral da Total, em
Joanesburgo, que tutelava Moçambique, disse-me um dia que tinha muita
admiração pelo meu trabalho, em Lourenço Marques, mas que, se o Jorge
Jardim lhe pedisse a minha cabeça, teria que lha dar. Confesso que nunca
me passou pela cabeça que o Jorge Jardim fizesse uma coisa dessas. E não
fez.
|
|
|
|
1954. Com José Régio e amigos. Portalegre. |
|
|
|
JC -
Depreendo da leitura do seu livro de memórias que pelo poder em
Moçambique passaram salazaristas “bons” e salazaristas “maus”: Baltasar
Rebelo de Sousa, Sarmento Rodrigues, Jorge Jardim, Veiga Simão, entre
outros, seriam os “bons”. Havia a noção, nessas alturas em que o poder
era mais inteligente, de que a
pide e a censura afrouxavam na repressão?
EL - Havia, claro,
gente séria que acreditava, com convicção, no salazarismo. Como havia
gente não muito séria que era da oposição. O problema é sempre de
carácter e não de ideologia. Nunca escolhi os meus amigos por critérios
ideológicos – e não me arrependo. Eu hesito em classificar o Jorge
Jardim como “salazarista bom”. Era um homem com um espírito aventureiro
muito acentuado, inteligentíssimo, dotado para o trabalho de gabinete e
para a acção, com uma inesgotável capacidade de trabalho, mas fez coisas
– com convicção, diga-se, e não por oportunismo – que eu estava longe de
subscrever. Tinha, sem dúvida, “panache”, mas não era bicho da minha
capoeira, mesmo se excluirmos as divergências ideológicas. Hoje, não
estou muito certo de que, pelo menos nos últimos anos do império, ele
ainda se revisse nas políticas do Estado Novo.
Quando analiso os
meus adversários políticos, procuro fazê-lo com “fair-play”, mas não
devem tresler-se as minhas palavras. Quanto a Baltasar Rebelo de Sousa,
Sarmento Rodrigues e Veiga Simão, não lhes recuso o meu apreço, a
despeito de tudo (que era muito) que nos pudesse separar (muito menos,
pelo que toca a Veiga Simão).
JC -
O
Eugénio “especializou-se” em demolir os textos medíocres de um tal
Rodrigues Júnior, que ameaçou agredi-lo e de um tal Orlando Mendes que
tentou em vão aliciá-lo para dar parecer favorável a um livro de sua
autoria e que considerou “mau como romance”, mau “como história” e de um
“humanitarismo de trazer por casa”. A reprodução integral do texto com
que zurziu o Rodrigues Júnior é, quanto a mim, um dos momentos mais
altos destas suas “memórias”, não tanto pelo tom humorístico-corrosivo
do seu discurso como sobretudo pela implacável análise literária com
que, a brincar, a brincar, arrasa tecnicamente o presunçoso escriba do
sistema. Imagina possível uma crítica literária desse calibre no
Portugal de hoje, sem que caiam em cima do autor uma data de processos?
EL -
Eu nunca pus Orlando Mendes ao mesmo nível de Rodrigues Júnior:
seria uma injustiça. As obras de Orlando Mendes, até à independência, se
não eram alta poesia, também não eram propriamente medíocres. Depois,
com o advento da FRELIMO, tornou-se um “situacionista” primário, isto é
acrítico e lambe-botas da espécie mais desprezível, e passou a escrever
poesia muito popular e muito má. E passou a não conhecer os antigos
amigos brancos, que, na véspera, adulava…O seu comportamento comigo
atingiu as raias da ignomínia: literalmente, “apagou-me” da literatura
moçambicana, como se costuma fazer nas ditaduras muito duras. Quero ser
justo: acredito que ninguém lhe pediu esse frete. Fê-lo de livre
iniciativa, para “mostrar serviço”.
Quanto ao que escrevi
sobre o Rodrigues Júnior – era muito capaz de o fazer no contexto dos
dias de hoje. Mas, como diz, talvez os tribunais substituíssem
actualmente os censores e os PIDEs daquele tempo. Julgo que o meu texto
só escapou ao lápis da censura porque esta não percebeu que eu estava a
gozar o Rodrigues Júnior – tomaram provavelmente a sério os meus elogios
enviesados…
JC -
Uma sua carta aberta ao primeiro-ministro Passos Coelho no jornal
Negócios e que se tornou viral na Internet é uma reminiscência
desses tempos de polémica acesa na Lourenço Marques pré-independência? É
que a polémica chegava a ser inter-pares: Alfredo Margarido, Rui
Knopfli, o próprio Eugénio Lisboa…
EL -
É possível que tenha havido
também um pouco disso: ter querido matar saudades. Mas não foi só isso
ou não foi sobretudo isso: o que este governo, com a cobertura desta
incrível “Europa” neoliberal e descarada, andava a fazer causou-me a
maior indignação. Nunca fomos governados por gente assim – inepta,
inculta, com uma visão ideológica de fugir, insensível, inescrupulosa,
sem princípios e gulosa de enriquecer ainda mais os já muito ricos. Como
é possível que um país pequeno e pobre tenha “senhores administradores”
de empresas a ganharem duas a três vezes o salário do Presidente dos
Estados Unidos! É simplesmente obsceno. O que se passou no BES, por
exemplo, merecia ser contado pela pena de um Swift ou de um Voltaire. Os
salários de alguns senhores e senhoras da televisão metem medo.
JC
-
A sua carta aberta teve imitadores: Miguel Real, Alexandra Lucas Coelho…
Faltou-lhes serem pioneiros. Teve um sujeito de mais de oitenta anos de
os preceder, de lhes dizer como era…
EL - Quantos mais,
melhor. Fico muito grato ao Miguel Real e à Alexandra Lucas Coelho, a
qual disse umas coisas bonitas a meu respeito. Daqui lho agradeço.
JC -
Voltando ao que interessa: Veio a independência de Moçambique e a
Frelimo nacionalizou-lhe a casa, desagregou-lhe o núcleo familiar,
“enxotou-o” para o estrangeiro. Tinham chegado os tempos difíceis.
Depois disso esteve várias vezes em Moçambique mas jamais esqueceu nem
perdoou. Foi alguma vez instado/convidado a regressar definitivamente à
terra onde nasceu?
EL - A FRELIMO nunca
me “enxotou”. Saí pelo meu pé e até me disseram que tinham muita pena de
que eu me viesse embora. Diz que nunca esqueci nem perdoei. Esquecer,
claro que não esqueci. O perdão não é para aqui chamado. O que tive foi
sincera pena de que certas coisas tivessem sido feitas de modo tão
atabalhoado e tão agarrado a uma ideologia em pastilhas, em vez de se
prosseguir um planeamento mais bem pensado e com mais respeito pelas
boas estruturas existentes. No início dos anos 80, a população pagou a
tontice ideológica com língua de palmo.
JC -
Joanesburgo, Lisboa, Estocolmo, Londres, cidades de um périplo de
“deslocado” que estabilizou em Londres, onde viveu dezassete anos na
qualidade de conselheiro cultural. Nas suas memórias fala dos magníficos
tempos londrinos mas desvenda também alguns segredos de chancelaria que
no geral não chegam ao conhecimento do público. O funcionamento das
embaixadas é um “mistério” que escapa ao olhar e à sensibilidade da
opinião pública. Quis dar uma amostra desse universo mais ou menos
secreto, corporativo, diga-se?
EL-
O meu objectivo, ao falar de
certos aspectos da vida na embaixada foi apenas mostrar o trabalho que
eu ali fazia, para que se ficasse com a ideia de que nunca concebi o meu
posto como uma sinecura. Mas não visei, de modo nenhum, fazer um relato
minucioso da vida diplomática. Em Londres, havia mais vida, para além da
embaixada… Por outro lado, esse trabalho – contar o que é a vida nas
embaixadas - está feito, admiravelmente, na célebre trilogia impagável
de Lawrence Durrell (Esprit de
Corps, Stiff Upper Lip e Sauve Qui
Peut). Em todo o caso, sempre fui contando umas coisas…
JC -
Em Londres fazia parte das suas
obrigações receber as primas donas das Letras portuguesas que lhe
chegavam de Lisboa. Houve mais algum dissabor “tipo Saramago”, de que
não tenha falado no seu livro?
EL - Tive muita sorte:
felizmente, não há muitos Saramagos…
JC -
Em Aveiro, já depois do ciclo londrino, marcado pela tradução, no Reino
Unido, de autores portugueses contemporâneos e clássicos, e da
presidência nacional da UNESCO, foi-lhe finalmente proporcionado ensinar
literatura numa universidade portuguesa. Ainda que este período esteja
“guardado” muito provavelmente para o volume V, parece-me que com a sua
ligação à Universidade de Aveiro se consumou um dos seus sonhos. No belo
texto que a professora daquela Universidade Otília Martins leu na
apresentação do seu volume IV no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa,
mais uma vez ficou patente o
legado de admiração e simpatia que Eugénio Lisboa deixou em Aveiro.
Sente-se feliz por ter sido reconhecido pela Universidade de Aveiro como
um dos seus?
EL -
Como falo abundantemente disto no V das minhas memórias, que ando a
escrever, permita-me que me não alargue. Mas sempre lhe posso dizer que
foi, para mim, um período muito agradável e frutuoso: o contacto com
alunos e alunas, o que se dá e o que se recebe, o fazer novos amigos,
como, por exemplo, a Otília Martins, que logo se sagrou minha amiga para
a vida, a linda cidade de Aveiro, a Costa Nova… Concretizei, realmente
um sonho: estive seis anos a fazer aquilo de que mais gosto: ensinar e
aprender. Estudar. Ler. Conhecer. E ser estudado. E ser lido. E ser
conhecido.
JC -
Projectos. A sua poesia, certamente menos conhecida do que a sua
ensaística, merece, a meu ver, a reunião em livro. E um romance, por ora
no segredo dos deuses, parece estar na forja. Continua a manter a
decisão de que o seu diário só venha a ser publicado integralmente a
título póstumo?
EL -
O romance existe, foi começado, está em curso (devagar…) e chama-se
O Espanto. Qualquer dia, dá-me
uma coceira formidável e escrevo uma abada de poemas ou um só poema
devastador. E vou escrevendo o meu diário, de que transcrevo abundantes
passagens, no V das memórias. Com cortes, é claro: é muito cedo para
certas impertinências. Vou também exercitando a mão, com crónicas para o
JL e textos pequeninos para a LER. Para quem já está na “sala de
espera”, não é mau.
|
|
|
|
|
|
1960. Numa palestra em Lourenço Marques. |
|
|
|
|
|
1989. No Café Continental, em Maputo, com José Craveirinha. |
|
|
|
Obras consultadas:
Acta Est Fabula:
I Vol.2012, III Vol. 2013, IV Vol. 2014,
Ed. Opera Omnia.
Indícios de Oiro,
I e II Vol. 2009, Imprensa Nacional.
Fotos de época gentilmente cedidas pela Professora Otília Pires Martins,
da Universidade de Aveiro, organizadora, com Onésimo Teotónio Almeida,
do livro Eugénio Lisboa: Vário,
Intrépido e Fecundo, com o qual aquela Universidade homenageou o
entrevistado em 2011.
|
|
|
|
|
|
EUGÉNIO LISBOA
Acta Est Fabula:
I Vol.2012, III Vol. 2013, IV Vol. 2014
Ed. Opera Omnia
|
|
|
|
Júlio Conrado (Olhão, 26.11.1936,
Portugal)
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica
literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro),
centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez
crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de
Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista
Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de
Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de
Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação
Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos
Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios
literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão,
inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010),
Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido
no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha
casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia:
Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009).
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português |
|
|
|
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
|
|
|
|
|
|