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Num primeiro contacto visual com o livro há a realçar a
qualidade e bom gosto da edição .O livro prima por um felicíssimo
grafismo, onde as “duas” capas funcionam num articulismo perfeito
,defendendo a primeira a segunda que tanto pode funcionar como
introdução ao “corpus” poético
( e que iremos encontrar ao longo do livro ,como indícios ou
complementos dos poemas ) ,ou ,tão só ,como capa .Todo o layout funciona
e as duas qualidades de papel resultam ,inovam e diferenciam a edição
.Apelam à leitura ,mesmo para gente mais preconceituosa .Logo ,parabéns
ao editor e autor pelas escolhas
Do ponto de vista formal ,ressalvo uma certa predilecção
pelo lúdico que se exerce num virtuosismo intrínseco aos grafemas
,permitindo ,assim ,ao leitor//autor ( porque quem lê ,como diz Manuel
Gusmão ,também escreve ) viabilizar várias leituras ,em simultâneo
,sobre os signos linguísticos .Isto é ,potencia-se o grafismo como
libertador da polissemia
,utilizando ,em alguns casos ,analogias , existentes nas etimologias
quotidianas ,embora o mais importante seja o que é insinuado ou o que
fica a pairar e não a leitura concreta ou definitiva do poema .Veja-se
,a título de exemplo ,“Delícias de Betão”:
“Antes da aula nocturna entrei no
bar.
no placard havia um anúncio
de uma jovem Engenheira:
Mestre dá explicações de Betão Armado
Tlm 96………
Mexendo bem o açúcar no café,
vi-a espancá-los com delicadeza
em cofragens de latex negro,
com veias de ferro a latejar
numa mistura tão suave e dura.
E a minha colher sempre a rodar…”
Aliás ,nada é definitivo em “E Se Não For?” .o próprio nome assim o
indicia e a parte gráfica dos poemas expande-se ,aqui e além ,numa
subversão ao convencional ,a fim de
provocar ,ao leitor//autor ,uma nova leitura ou uma outra
prosódia .ainda no campo formal,
acontece ,de quando
em vez ,uma desconstrução do significante - vejam-se os poemas “Desde
que me mostraste a ementa”:
“Só consigo pensar num figo
maduro,
como abri-lo com os meus dedos
e tirar a polpa com a minha língua;
Com os meus dentes desfolhar
um carpaccio de diáfanas fatias rosadas
bem temperadas com azeite e limão;
Saborear num triângulo de algas
uma pérola a palpitar em champagne
e sorver a ostra em plena convulsão.
Mas após esta degustação de entradinhas,
em vez de pratos finos nouvelle cuisine
alternados com mais amuses-bouche,
Empanturrar-me de ti num rodízio
de coxas lardeadas com prazer
e esparramar-me sobre o teu balcão.”
,“Análise”
“Erros, mas consistente.
Parece que estou a corrigir-me a mim
em vez de testes à minha frente.
Eros. Eros. Eros.
Mas consistente”
e ”Flores no Asfalto”
“Na ausência dela perco a força
de penetração – na escrita,
que cresce mole e bonita
entre anões de jardim.
Falta-me a feroz ternura
que cilindra tudo, para depois
uma flor furar, aqui ou ali,
o asfalto da rasura”.
A desconstrução ,no primeiro poema ,acontece em alguns
lexemas ,no segundo ,no jogo subtil entre Erros e Eros , e, no terceiro
,na metalinguagem dos versos “Na ausência dela perco a força de
penetração …..” o que provoca
alguma ambiguidade nos actuais ( pós AO 90 ) escombros da Língua
portuguesa.
Mas ,o que quero eu dizer com tudo isto? é que toda a parte formal
implica uma poesia metalinguística e metapoética ,mais em evidência a
partir da página 55 ,em que há uma maior preocupação em trabalhar sobre
a língua com a língua e/ou sobre o poema com o poema.
Evidencia-se ,igualmente ,neste primeiro livro de Marco Mackaaij uma
certa sintonia com o concretismo , ora concretismo sinestésico, caso
,por exemplo ,dos poemas “Opiniões”:
“Eu percebo mais deste mundo
a beber café no snack-bar
do que a ler livros em casa.
Também já tentei ao contrário,
a ler livros no snack-bar
e a beber café em casa.
Mas recebi queixas nos dois sítios:
num por não ter opinião,
noutro por ter opiniões a mais”
e “Vida de Cão”:
“Ela adoptou um cão,
sinto-me abandonado.
À meia-noite uivo na cama
quando ela o passeia.
De madrugada uivo na cama
quando ela o passeia.
À hora do almoço
ela nunca vem a casa.
Rosnamos um ao outro
quando nos passeamos.
Às vezes tento fazer as pazes:
deixo-o mijar nas pantufas dela.”
,ora concretismo
minimalista ,em “Ilegal”:
“Questionaram-me noutro dia se era
poeta português ou neerlandês.
Fugi logo: não tenho poetaporte”
Finalmente ,as metáforas superlativas ,relacionando o
longínquo com o próximo, aparecem-nos ,quase sempre ,numa flamejante
ironia ( vd. “Caçanova”:
“Ela
veste paixão intensa e desejo eterno.
Ele
lambe as suas mãos e deita-se aos seus pés.
Até que ela dispa o hábito cruel
Mal-te-quero Bem-te-quero
e abra um frasco de açúcar escondido
Querido, Fofinho, Amor.
Toda ela se transforma em algodão doce,
a paixão fica pegajosa,
o desejo diabético.
E desesperado por insulina carnal ele
persegue
novo rasto
ainda intenso, ainda eterno, ainda
Mal-me-quer Bem-me-quer,
aina… hábito cruel”
ou “Raparigas com
idade”:
“Gosto de raparigas com idade
e com cultura, nelas a maldade
estagiou como vinho licoroso:
doce na boca, travo venenoso.
Quando organizam um jantar de amor,
as metáforas que servem veladas
em línguas de criatsl ao convidado
deixam-me inebriado de calor.
Gosto de raparigas com idade
e com cultura” ).
Em todo o livro persistem as temáticas poéticas do silêncio, da dor ,do
amor ,da paixão, da noite e da morte ,e ,a poesia de Marco Mackaaij que
se afirma como uma masculinidade latente e uma identidade (sentida em
ínfimos pormenores da existência e dos lugares que se escoam da infância
às figuras familiares) aparece, neste seu primeiro livro ,em vários
registos .Com efeito, vêem-se na arte poética de “E Se Não For?”
resquícios do simbolismo ,do concretismo ,de uma ou outra passagem
pessoana ou em variados roteiros de influências ,no jogo subtil das
palavras convidadas .Por outro lado ,os poemas vivem acompanhados por
outras manifestações artísticas ( as fotografias de Jorge Jubilot que os
indiciam ou completam ) ou remetem-se à expressão do silêncio ,por mais
audível que este seja ,para ,uma ou outra vez ,reencontrarem o ritmo de
estro inspirado ,como é o caso de “Santo Agostinho no intercidades”:
“O cabelo dela era uma tentação de
éguas selvagens,
indomáveis contornavam o seu rosto e pelo vale
do pescoço corriam até às colinas do peito.
E prendiam o meu olhar
num êxtase de Santo Agostinho:
Senhor, dai aos meus olhos a castidade -
mas não ainda!
Só para disfarçar, cada vez que as crinas dela
galopavam na minha direcção,
eu fazia penitência e flagelava a vista
com as borbulhas do garanhão ao seu lado.”
Destarte e à laia de conclusão ,diria que em “E Se Não For?” há um
primorismo intimista ,explícito ou implícito, complexo, esquivo ,que
circula entre Eros e Thanatos , mas que se realiza de uma forma ambígua
,metafórica e irónica.
Aconselho ,vivamente ,a sua leitura.
Gabriela Rocha Martins,
Março de 2015.
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