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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 51
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abril-maio | 2015
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MARIA ESTELA GUEDES
Na morte de Herberto Helder:
o rio camoniano*
Foto: Ed. Guimarães |
Maria Estela Guedes. Poeta,
dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria
Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados. |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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*Conferência plenária ao Colloque
international "Herberto Helder. Absurdité du centre, continuité du
temps". Sorbonne Nouvelle /Fond. Calouste Gulbenkian, Paris
14-15 novembro 2013.
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Servidões,
de que me vou ocupar, é o mais recente livro de Herberto Helder. Oferece
um filão temático de nascimento e morte. Não obstante a escassa presença
de dados factuais comprováveis, nada de mais representativo do tempo
linear do que esta poética da autobiografia. Vejamos como no dia do seu
octogésimo aniversário o poeta anuncia o seu próprio nascimento:
saio hoje ao mundo,
cordão de sangue à volta do pescoço,
e tão sôfrego e delicado e furioso,
de um lado ou de outro para sempre num
sufôco,
iminente para sempre
23.XI.2010: 80 ANOS
Passaram entretanto oitenta e três anos para o
poeta, e trinta e quatro sobre a edição do meu primeiro livro sobre ele,
Herberto Helder – Poeta obscuro.
Querem alguns saber como se modificou a minha leitura de então até
agora. As emoções de o ler permanecem iguais; o registo de leitura é que
sofreu alterações. Há quem me creia uma pessoa das ciências. Vejamos:
licenciei-me na Faculdade de Letras e fiz carreira técnica no Museu
Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Uma das maiores
transformações da leitura consistiu em abrir as letras às ciências,
interpelando os textos no que referem da Antropologia, da Botânica e da
Zoologia. A experiência de vida e o desenvolvimento intelectual também
enriquecem o que escrevemos, daí que seja notória a transformação no meu
segundo livro, A obra ao rubro de
Herberto Helder. Ao longo do caminho vamos aprendendo a separar o
essencial do supérfluo e o acertado do errado, purificando assim a
matéria-prima. À semelhança
do que neste lugar afirmou Maria de Fátima Marinho, hoje também já não
sou a pessoa que era há trinta anos.
Voltando a
Servidões, o livro abre com três textos, dois deles antagónicos, do
ponto de vista da História da Literatura: um dístico de verso
decassilábico e um diálogo entre André Breton e Alberto Giacometti,
significando isto que o autor se manifesta herdeiro de duas linhagens: a
do classicismo, com expoente em Camões, e a da modernidade, representada
pelo surrealismo. Diz André Breton: «- Des têtes! Mais tout le monde
sait ce que c’est qu’une tête». Resposta de Giacometti «- Moi, je ne
sais pas». A cabeça, enquanto relação a estabelecer entre discurso
cartesiano e discurso da loucura, foi objeto de comentário por parte de
Pedro Eiras, no número de Textos
Pretextos, de homenagem a Herberto Helder.
Em relação ao
dístico de andamento camoniano, é o terceiro texto do livro, sirva-nos
agora de guia:
dos trabalhos do mundo corrompida
que servidões carrega a minha vida
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O demónio da analogia
Rios surrealista e camoniano são guias que o
autor fornece aos leitores. O seu peso surrealista é bem conhecido,
acaba justamente de sair um texto meu sobre o assunto no último número
da revista A Ideia, organizado
por António Cândido Franco, para recordar o surrealismo.
Quanto às relações entre Herberto Helder e Luís
de Camões, já é mais inesperado estabelecê-las, não obstante alguns
encontros passados, n’ “A máquina de emaranhar paisagens”,
na glosa do verso “Transforma-se o amador na coisa amada”, na história
dos amores de Pedro e Inês de Castro, contada na obra que celebramos com
este colóquio, Os passos em volta.
A expressão «rio camoniano» insere-se em
Servidões num contexto em que
o enunciador se sente perdido:
quando me perdi,
a cidade, o rio camoneano, o ar,
era como se os apanhasse de uma só vez
(p. 82)
A perdição é tema
comum aos dois poetas, lembremos os “Erros meus, má fortuna, amor
ardente/ em minha perdição se conjuraram”, ou esse outro soneto:
“Julga-me a gente toda por perdido, / vendo-me tão entregue a meu
cuidado”. E, se falamos de perdição, digamos que também a temática da
salvação está presente nos dois.
No domínio da técnica, o dado mais óbvio,
oriundo do classicismo, é a aliteração: “profano, prático, público,
político, presto, profundo, precário, / improvável poema”, escreve
Herberto, a abrir um manifesto de recusa deste mundo. Aparecem várias
destas figuras de estilo, tão barrocas na sua batida de tambor que o
leitor sente nelas e noutros percalços de leitura a mão de um guia que
nos põe à escuta, de um Caronte que conduz a leitura para além do rio, e
sobretudo para além do rio camoniano. Porque é de esperar que pouca
similitude exista entre Camões e Herberto Helder, a despeito dos tópicos
comuns. Separa-os não um rio, antes um oceano, que não é tanto o da
diferente cultura, sim o de Camões se integrar nela e o de Herberto a
rejeitar. Herberto Helder posiciona-se à margem, na sua juventude
defendeu e praticou a contracultura. Assente na língua e na religião, a
cultura ainda é a mesma, trata-se de viver em dois estratos epocais,
distintos pela evolução que a conquista da liberdade produziu nos
costumes. Camões não gozava de liberdade de movimentos, vivia num mundo
vigiado pelas censuras, régia e da Inquisição, donde a constância do
modelo, que ele aliás conseguiu superar; Herberto tem agora a liberdade
de praticar e comentar o verso livre, como símbolo de uma estética que
não precisa de obedecer a cânones, tal como goza da liberdade de
evidenciar a herança que as nossas gerações vão deixar aos vindouros,
incompatível com a valorização de Portugal patente n’
Os Lusíadas.
As suas “servidões” e as nossas,
próprias de um tempo de troika,
são diversas. Herberto, a quatro séculos e mais de distância de Camões,
é um libertino com desejo insaciável de liberdade.
A estética a que Camões se subordinava incluía a
imitação, a obra criada a partir de um modelo que, no caso do soneto,
pertence sobretudo a Petrarca. Outras estéticas promovem como modelo a
realidade social. Em Herberto Helder, poeta da modernidade, vivido no
surrealismo, movimento defensor da liberdade absoluta, nenhuma
obediência a modelos é de esperar. Todavia, entre os seus fantasmas
aparece o “demónio da analogia”, tal como em obras anteriores, como
Cobra, víramos a alusão ao
princípio da cura pelo semelhante -
similia similibus. A analogia herbertiana faz parte das ocorrências
encantatórias comuns no surrealismo, como o acaso objetivo. É aliás o
poeta quem chama a atenção para o “tema das visões e das vozes”. Refere
por isso Le démon de l’analogie,
de Mallarmé. Nesta narrativa, uma voz atormenta o poeta, avisando-o de
que “La Pénultième est morte”. A Penúltima, pensa ele, aterrorizado, só
pode ser a penúltima sílaba. Desenrola-se a fantasmagórica cena diante
de uma loja de música, pendurados os instrumentos na parede. O soalho da
loja cobre-se de aves mortas. De maneira análoga, em
Servidões, o poeta é
atormentado pela ideia de morrer nas linhas dos versos, ou de o canto
lhe falecer na garganta, a ponto de surgir a imagem do decapitado.
Camões, se nos lembrarmos, também é coagido pelas desilusões a abandonar
os seus instrumentos órficos, como escreve em “Sôbolos rios”: “Assi,
despois que assentei / que tudo o tempo gastava, / da tristeza que tomei
/ nos salgueiros pendurei / os órgãos com que cantava”. As imagens de
Mallarmé e Camões do abandono dos instrumentos musicais vem do salmo
“Junto dos rios da Babilónia”. Mas a forte presença do canto é comum a
estes poetas; em Servidões,
explícita na citação de Verlaine,
ganha relevo mais doloroso do que habitualmente, pela evocação dos
castrati a cantarem
a capella, porventura em
cerimónia fúnebre, e quando ecoa nas sílabas a voz da morte:
ele que tinha ouvido absoluto para as
músicas sumptuosas
do verso livre
ouvia a cada nó de sílaba
um silêncio de morte
(p.70)
Camões e Herberto são leitores da Bíblia. A
diferença entre ambos provém, evidentemente, de que um fala do ponto de
vista da crença e o outro da sua descrença. Podia o ateísmo
manifestar-se pelo ignorar o assunto, mas o que vemos são confrontações
com Deus e com Jesus, a renegação de princípios como o da alma, da
ressurreição e da salvação, e da tríade que o catolicismo reserva para
eterna morada da alma: inferno, purgatório e paraíso. De forma
esquemática, diria então que
Servidões se oferece à leitura como um credo negativo. Este “Não
creio” vai-se agravando até perto das páginas finais, em que se revela o
ponto mais alto da rebeldia herbertiana, a de uma escatologia no duplo
sentido da palavra: “cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo
fogo, / e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o /
autoclismo” (p. 104).
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O maravilhoso
A cultura clássica transparece no
Ofício cantante, e não será
excessivo recordar o título, já bem antigo, “As musas cegas”. No meu
último livro chamo a atenção para o milagre e para as imagens
miraculadas, a exemplo do caminhar sobre as águas e mergulhar as mãos no
fogo. Tudo isso se acentua ainda mais em
Servidões, obra na qual
encontramos os três tipos de maravilhoso habitualmente atribuídos ao
poeta épico: maravilhoso pagão, folclórico e cristão.
O killcrop do segundo texto de
Servidões, criança vinda do
mundo dos duendes e das fadas, retrata bem o grau de falta em Herberto
Helder, com a sua fome insaciável. Também a mudança que se opera na voz,
ao passar disso a latido, tal como a presença dos lobos e do bode
coroado, mergulham as raízes no demonismo folclórico, a despeito da
modernidade da fala (p. 28).
Além destas formas, somos guiados ainda para o
maravilhoso da Natureza, para os seres capazes de nos espantar, como já
o nome em latim dessa planta do deserto da Namíbia e de Moçâmedes revela
– Welwitschia mirabilis. A
espécie foi descrita por Hook e dedicada a Friedrich Welwitsch, um
naturalista vindo da Áustria para trabalhar ao serviço de Portugal.
Descobriu os indivíduos usados na descrição da espécie durante a sua
viagem de exploração de Angola, no século XIX. A
Welwitschia é maravilhosa pelo
gigantismo e pela capacidade de sobreviver no deserto alguns mil anos. A
pouca humidade que a alimenta resulta da absorção do orvalho pelas duas
únicas folhas, como sugere Herberto Helder:
Welwitschia mirabilis “no deserto entre fornalhas / ah e que de
escorpiões friamente bêbados de um / pouco de orvalho apenas!” (p.79).
Mais maravilhosas ainda que a
Welwitschia mirabilis são as
piteiras, espécies do género Agave,
a que pertence o sisal. Em Servidões
aparecem representadas pela provável espécie invasora em Portugal e na
Madeira, Agave americana.
Herberto Helder usa o termo «agaué» para a referir, com valor de
exclamação, e realmente, em grego, «agaué» significa “admirável”. Mas
Agaué é também uma das nereidas. Filha de Cadmo e da deusa Harmonia,
casada com Equionte, Agave foi mãe do rei Penteu.
A nomenclatura de heróis e deuses foi escolhida
por Lineu para primeiro nome do binómio em latim que identifica as
espécies. Daí a latinização de “Agaué” em “Agave”. Vejamos os dois primeiros versos do poema inspirado neste
tema floral:
que floresce uma só vez na vida, agaué!
dez metros, escarpada,
branca, brusca, brava, encarnada
(p. 43)
O maravilhoso que
nos garante “agaué” é o de florir apenas uma vez na sua vida de trinta a
quarenta anos, e morrer logo em seguida. O poeta revê-se nestas mortes
aparentemente sublimes, sem ressurreição.
Prometeu, roubador
do fogo, surge implícito ao lado de um ignoto roubador de cinzas, a
identificar como Goëthe e Kleist, visto que os dois poetas românticos
abrem o texto em que transparecem essas reminiscências de maravilhoso
pagão. Caronte, barqueiro indispensável nesta paisagem com rio
camoniano, esconde-se atrás do óbulo que o poeta afirma já ter pago pela
passagem. Acrescentam-se a estas outras entidades do espaço das divas:
eu que nem creio nas deusas mais
potáveis,
a Garbo, a Dietrich, a Marilyn, a Big
Mother
e entre todas a mulher que andava sobre
as ondas ou a mulher
que
fugiu a cavalo (p. 67)
A Big Mother é tão
maravilhosa como a Magna Mater, porque deusa informática, parente do Big
Brother, disponível na sua panóplia de utensílios tecnológicos para
vigilância dos filhos. Galateia veio sobre as ondas das páginas de
Homero, se porventura não se tratar de Iemanjá, já que várias notações
brasileiras perpassam no livro, e a que fugiu a cavalo, se não for uma
das amazonas, é de certeza Lady Godiva.
Em «Um esboço de
lixo intelectual», Bertrand Russel conta um caso engraçado sucedido em
redor de 1820 em Nova Iorque com uma maga de grande sucesso, cujo nome
não revela. A maga anónima anuncia aos seus muitos seguidores que tem o
poder de andar sobre as águas. Para prova, compromete-se a atravessar um
lago da cidade em tal dia e a certa hora. Grande multidão de fiéis a
acompanha nessa data. Então ela pergunta: «Acreditais todos que posso
caminhar sobre as águas?” Todos responderam em uníssono: “Sim”. “Nesse
caso”, anunciou ela, “não há necessidade de molhar os pés”. E todos
foram para casa muito comovidos.
É bem possível que
a maga fosse capaz de caminhar sobre as águas. Afinal, esse é um dos
truques do famoso Dynamo, ilusionista inglês que podemos admirar no
YouTube a atravessar o Tamisa a pé.
Com artistas de cinema e teatro ficamos perto do
maravilhoso folclórico, no qual vou incluir os “burrocratas”. Esta
classificação é discutível, porém a palavra merece detença, tanto mais
que já vem, pelo menos, desde A
faca não corta o fogo. Além do zurrar dos burros, ouve-se, neste
complexo vocábulo, outro som, arrastado por um dos poemas alheios que
mais marcam a obra de Herberto Helder, a “Ballade des pendus” de
François Villon. A sua primeira aparição verificou-se n’ “A máquina de
emaranhar paisagens”, e agora retorna, em contexto testamentário:
irmãos humanos que depois de mim
vivereis
eu que fui obrigado a viver dobrados os
oitenta,
fazei por acabar mais cedo vossos
trabalhos cegos (p. 90)
Os enforcados de François Villon exigiram um
carrasco, o bourreau que se
ouve em “burrocratas”. No seu discurso sobre a morte própria, em
Servidões ocorrem situações de
suicídio, morte natural, execução e mesmo de profanação das cinzas. Mas
também acontece a poesia ter força para enterrar os seus algozes:
e ali em baixo com terra na boca e mãos
atadas atrás das costas
alors qu’on peut écouter de la musique
avant toute chose
sob a força devastadora da poesia
os burrocratas os burrocratas
(p. 86)
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Poeta anónimo, poeta obscuro
Em
Servidões, mais do que em outros livros, o desdobramento do sujeito
poético em eu/tu dá lugar ao aparecimento de um guia que desvia o leitor do que não interessa para apontar com o
dedo o que sangra mais fundo: uma dor sem motivo aparente, que leva o
guia a advertir o próprio poeta: “acautela a tua dor que não se torne
académica”.
Na lírica de Camões, o sofrimento é em geral a
coita de amor, salvo gritos lancinantes como no soneto inspirado nas
lamentações de Job – “O dia em que eu nasci moura e pereça”.
Se bem que “Sôbolos rios” se inspire no salmo 136, aquele que fala
das harpas penduradas nos salgueiros, também não parece canónica a dor
que o leva a escrever: “Bem são rios estas águas, / com que banho este
papel”.
Em grande parte das situações em que ocorre, na
lírica camoniana o tema da morte flui ainda do amor cortês. Em
Servidões, as feridas são de
ordem diferente, tal como a morte. Um elo forte liga os dois poetas,
entretanto: as lágrimas. Num e noutro os rios são salgados, em ambos as
lágrimas molham o papel em que escrevem ou salgam intimamente os versos.
Se bem que
Herberto fale de “dor alexandrina”, o que nos põe uma biblioteca na
imaginação, concordemos que o seu sofrimento não é académico. Mas não é
suficiente que a dor não seja académica: o canto e a voz também precisam
de escapar aos modelos. Nesta escrita tão vigiada, surge entretanto um
problema: o excesso de fiscalização que o poeta exerce sobre a sua arte
pode transformar-se em cânone pessoal, impedindo-o de se renovar. Quando
alcança algo de novo, isso equivale para ele à ressurreição, mas a
ressurreição é efémera, pois logo exige mais renovo. Vejamo-lo a
reconhecer os problemas da autovigilância:
administra a tua voz,
mas administra a tua dor primeiro
(a dor e a voz administrativas?)
(p. 78)
Este último livro
é uma escatologia, trata dos últimos dias. Os diversos temas
adstritos ao fim partem de um ponto de vista não só ateu como crítico.
Além da dor, e mesmo do terror, esses temas são a perdição, a salvação,
a passagem da alma para o inferno, o purgatório ou o paraíso. O poema em
que se discorre sobre o Além mostra a posição crítica do poeta, que
acaba por achar preferível o Inferno, mesmo sendo o das drogas duras de
Beatriz. Já Camões, homem de fé, transporta para a Jerusalém celeste
toda a excelência da alma ressurreta, como acontece nesse texto ao mesmo
tempo órfico e bíblico, “Sôbolos rios”: “Ditoso quem se partir / Para
ti, terra excelente, / Tão justo e tão penitente / que, despois de a ti
subir /lá descanse eternamente”.
Entre os sinais do fim, na Bíblia, figuram os
revelados por Jesus aos seus discípulos: “Vedes tudo isto? Em verdade
vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra: tudo será destruído”
(Mat 24:2). Paralelamente, em
Servidões, apontam para o fim a queda de objetos, sagrados também à
sua maneira, e a dificuldade de o poeta se dobrar para os apanhar. É
curioso ver entretanto que, a despeito do incêndio da biblioteca de
Alexandria, e dos objetos que vão caindo da prateleira, um livro ali
permanece de pedra e cal - o Apocalipse. O Apocalipse de S. João é um
dos livros glosados por Herberto Helder.
Num cenário de
rotinas domésticas, o poeta imagina diversas mortes e preparativos do
funeral: um quer enterrá-lo apenas envolto num lençol, outro prefere a
cremação e espalhar as cinzas sobre as roseiras do Jardim Botânico. Está
ciente de que nenhum Além o acolherá. Rejeita a ideia de paraíso por ser
“muito brutal e louca, / e o purgatório como purga é tão torpe, tão
terrestre, tão/ trivial e trôpego”. Opta decididamente pelo “êxtase
infernal de Santa Teresa de Ávila”, e é para o rio do inferno que vai
encaminhando os últimos poemas, mas é evidente que ficará em terra.
Herberto Helder não é um homem de Igreja, sim um
grande poeta. Por isso, no último poema que nos deixa, por agora, o além
da morte que afinal pretende é aquele que já conhecemos de
Os passos em volta: “Meu Deus,
faz com que eu seja sempre um poeta obscuro!” Em contexto de últimos
dias, no último poema do livro, o poeta reitera, na “morte escrita”, o
mesmo desejo de obscuridade:
talvez certa noite uma grande mão
anónima tenha por mim,
um a um, lado a lado, escavando,
escrito os nomes,
um a um escrito os nomes esquecidos,
e entre os nomes mais obscuros o mais
desmemoriado deles
todos,
e eu esteja atrás vivendo desse próprio
esquecimento,
a mão cortada, cortado o nome, além da
morte escrita,
pelo buraco da voz o nome escoado para
sempre (p.117)
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LEITURAS
Herberto Helder –
Ofício cantante. Lisboa,
Assírio & Alvim, 2009.
Herberto Helder –
Servidões. Lisboa, Assírio &
Alvim, 2013.
Maria de Fátima Marinho –
Surrealismo em Portugal.
Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1987.
Maria Estela Guedes -
A obra ao rubro de Herberto
Helder. São Paulo, Editora Escrituras, Coleção Ponte Velha, 2010.
Maria Estela Guedes – “Herberto Helder – É e não
é um poeta surrealista”. A Ideia,
Universidade de Évora, nº 71-72. Organização de António Cândido Franco,
2013.
Pedro Eiras – “A pedra na cabeça. Herberto
Helder, René Descartes, uma questão de loucura”.
Textos Pretextos, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, nº 17, 2012.
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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