O
pescador e o mar
Os murmúrios das ondas martelam
molhando os lençóis amarelados
de areias mescladas em branco e preto
Vaga a grande asa do barco no ar
e o céu escurece as ondas do mar
indo o rastro do mastro diluir-se
Moroso o pescador move o leme
sem medo do vento ventando alto
busca o consolo do leito límpido
E ruidosas as águas o bebem
sorvendo o seu sossego no mar.
Deserto
Canibalismo no deserto, aridez dos astros. Não há mágoa numa névoa.
Somente a faca é minha carne. O desejo se escondeu num olhar amargurado.
Facas e garfos não são sensações. O astro cresce à minha volta. Não é
possível contornar a outra margem, o deserto é meu silêncio. A névoa cai
nos meus braços, sustento-a até a capacidade do meu olhar. Olhar de
deserto, não espero estações. Na virada das poeiras que oscilam ao vento
quente do deserto, pássaros se comem antropofagicamente. Formigas,
maçãs, garfos, facas na sua ordenação neblinam minha face. Face neutra
na passagem da névoa. Névoa paira, cai, se esbarra nos ventos da minha
passagem pelo deserto, anímico, auditivo, mais do que a minha vida.
Em "40
poemas” (Multifoco, 2011)
Sossego
Monólogos de tigres ociosos
na penumbra, a noite cala a veia
Trigos adormecidos na vértebra da caverna
os escuros pontos da morte não se escondem
O chão se abre para a passagem dos renascidos
O vento atira palavras de cimento e cal
Tristes mares invadem o espelho da memória
para conter os risos inconsoláveis dos palhaços
A escuridão se apaga após a voz de um sonâmbulo profundo
Não há atalhos que neblinem a floresta de morcegos
A tempestade devasta as estações da derrota
O sossego se encarrega de florir
na
natureza.
Minha casa
Fiz da minha casa uma floresta
em que nutro sementes e canções novas
com a água do destino
Nas paredes brancas da mente
acendo fogueiras que acalentam
os sonhos dos homens
Mas minha casa não tem paredes
No conhecimento que se abre
de meu corpo em riso sereno
fundo novos ritos e danças
acromáticas, homeopáticas
A cura que perfura a mão ofertada
inaugura a sede constante das chuvas
No chão da casa encontro
pisadas de pequenos seres
que direcionam meu gesto
ao sol de um novo mundo
Minha casa tem pianos
com teclas de livros da natureza
que segredam o silêncio do sagrado.
Em
“Painel” (Multifoco, 2011)
Nadar no seu mar
No olho do reverso
da página em branco
encontro teu nome escrito
com tintas da água do mar
Pedras duras amortizam
a história de sua vida
As conchas escondem
a música de sua voz melodiosa
na altura da rocha vermelha
que encontra algas azuis
de tanto nadarem ao encontro da morte
A espuma se desfaz ao ar fresco
da madrugada incerta da memória
Seu corpo navegando nas águas
esclarecidas do tempo que vaga
na asa do barco que ilumina com suas
luzes a escuridão do mar na lua
Nadar no seu corpo marítimo
que esconde peixes coloridos
ao encontro do sol do meio-dia.
Vento
Cerejas escondidas no vento
Explodem sóis na sua testa
tentando avisar aos seres
da escuridão que habitará o vento
Vento nas vias da lua
atiçando memórias de flores murchas
O farol ao longe ilumina o vento vadio
que corre para lá e para cá sem destino certo
Dos cachecóis do vento vejo a velhice
a naufragar sonhos da infância nas estrelas
Vento ventando na janela
esperando a moça fiar sua linda história
Vento que habita o corpo
assaltando sem espera os olhos
da névoa e da mágoa
Ventos que batem no trecho do mar
elevando a voz dos peixes e amortizando vícios
O vento na asa da gaivota
trazendo a esperança dos pequenos.
Em “Oferta” (Scortecci, 2014)
Soterra
Soterra, fere a terra
no entremeluzir das pedras, orgasmo oco
de pedra, de terra, de sal
Dádivas do céu
chuvas salinas das preces
a molhar as páginas da vida
Vento amotinado de algas
amarras de lenços nos braços
o choro incandescente das trevas
Sol enfraquecido pela chuva
se aquece no seu rosto
Cascos de vida
lança que se parte no astro
Soterra a fera, na selva
monstros faiscando luzes gigantes
Na cor dos lábios
uma prisão de infectos insetos
Azul que corta, na face
o verbo que tremeluz
no papel da terra
Soterra imagens na fímbria
das páginas brancas
Terra que esconde pequeninos seres
Na haste da planta a gana da semente
a esmiuçar gestos do sol
Soterra, em treva
as letras do atrevimento
Littera desperta
pelos escombros da terra
Soterra.
Dormindo no verbo
Dormindo no verbo
logaritmo do vazio
espera o anoitecer em branco
Entre a verdade e a palavra
escolhe as letras equilibristas
que morrem no abismo
Mesmo o atalho para as pedras
o fez vacilar entre o gesto e a crença
Saliência de palavras
que mancha o papel taciturno
Na noite esquelética
os livros dão carne para os outros
ávidos por dançar no salão da matéria
O verbo se fez carne
a matéria se fez palavra
prestes a preencher
a vida dos outros
inimigos da sombra
que se desfaz em sonho
Dorme na coagulação do sangue
corpo que se move no vazio
da atmosfera escassa do osso
Carnaliza os vazios da noite
para se fazer dia do verbo encarnado
Dorme, dorme
e espera
na entrega do verbo
para os outros com insônia
O verbo se preenche de carne
manchando as páginas em branco
que esquálidas, tiram a fome
de anos e anos de espera.
No prelo
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