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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 51 | abril-maio |
2015
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ADELTO GONÇALVES
A ficção da ficção de Eça
em Campos Matos
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo e autor de
Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002),
Bocage - o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003) e
Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de
Letras, 2012). E-mail:
marilizadelto@uol.com.br |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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I
Depois de quase uma vida inteira dedicada ao estudo
da obra eciana, com mais de trinta títulos publicados, o pesquisador A.
Campos Matos (1928) decidiu se lançar àquele que considera o maior
desafio de sua carreira literária, ao assumir-se também como
ficcionista, mas sem deixar de lado o seu culto a Eça de Queiroz
(1845-1900). E assim produziu este Diário íntimo de Carlos da Maia
(1890-1930), que acaba de sair à luz pelas Edições Colibri, de
Lisboa, em edição restrita de 450 exemplares, dos quais 200 foram
numerados e rubricados pelo autor.
Quem conhece a obra de Eça de Queiroz bem sabe que
Carlos da Maia é personagem do célebre romance Os Maias (1888),
protagonista do drama de incesto involuntário com Maria Eduarda, sua
irmã dois anos mais velha. Inspirado nessa vida tumultuada, Campos Matos
escreveu o que seria não a continuação de Os Maias, mas o
imaginário percurso de seu protagonista durante o período de 40 anos
(1890-1930) registrado por ele mesmo, depois do insólito caso familiar.
Nascido em Lisboa em 1855, Carlos da Maia teria
sido assassinado em 1930, aos 75 anos de idade, a tiro de zagalote (bala
de espingarda) por um vizinho inconformado com a perda de um terreno
baldio de 350 hectares que lhe dizia pertencer, mas que um juiz da Régua
acabara de atribuir ao patrimônio da quinta de Santa Olávia, propriedade
da família Maia à beira do rio Douro, em frente à estação de Aregos,
local em que se passa boa parte do romance de Eça de Queiroz.
Estas informações constam de um intróito que o
filho de Carlos da Maia, Carlos Afonso, teria escrito para um hipotético
terceiro volume de Os Maias, empreitada da qual teria desistido
ao descobrir a existência do diário deixado pelo pai e preservado por
sua mãe, Rosália, a filha do caseiro de Santa Olávia com quem seu
progenitor casaria depois do conturbado caso de incesto com Maria
Eduarda.
Obviamente, trata-se de um exercício de ficção da
ficção a que Campos Matos se devotou, seguindo as pegadas de outros
autores que também se inspiraram em personagens alheias. Campos Matos no
posfácio que escreveu para este livro cita, entre outros, os casos do
filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), que escreveu
Meditações do Quixote (1914), uma das principais obras de filosofia
do século XX, do poeta e ensaísta Vasco Graça Moura (1942-2014), autor
de Os Lusíadas para gente nova (2012), um diálogo com o texto
de Luís de Camões (1524-1580), e o próprio Eça de Queiroz que produziu
Correspondência de Carlos Fradique Mendes (1900), com base no
primeiro Fradique, que é uma criação coletiva.
Sem contar a ficção inspirada em Eça de Queiroz
artisticamente mais bem sucedida até aqui que é A bela angevina
(2005), de José-Augusto França (1922), que não se baseia em personagem
eciana, mas em quatro fotografias de uma desconhecida de Angers que
foram localizadas em 1989 no espólio do escritor pela professora Beatriz
Berrini. Vista ao lado de Eça numa das fotos, a desconhecida
possivelmente teria vivido um enlace amoroso com o escritor durante o
período em que este morou na França.
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II
É de se lembrar que a narrativa de Eça de Queiroz
em Os Maias tem início com Pedro da Maia, filho de Afonso da
Maia, personagem educado de acordo com padrões românticos, que se casa
com Maria Monforte, filha de um traficante de escravos e, por isso,
também conhecida como “a negreira”. Dessa união, nascem dois filhos:
Maria Eduarda e Carlos. O casal se separa logo depois. A menina fica com
a mãe e o menino com o pai, que se suicida, depois que a mulher foge com
um napolitano.
Descendente de uma família nobre da Beira, educado
pelo avô, segundo padrões britânicos, Carlos da Maia forma-se em
Medicina, mas nunca exerceria a profissão a sério. É um desocupado que
está sempre acompanhado de João da Ega, ex-estudante de Direito em
Coimbra, um tipo espirituoso e adepto do Naturalismo em Literatura.
Após alguns encontros amorosos com a condessa
Gouvarinho, Carlos conhece, por intermédio de Dâmaso Salcede, um tipo
medíocre e balofo, a mulher de Castro Gomes, um brasileiro rico, e
apaixona-se por ela. A amada rompe com Castro Gomes, com quem não era
casada legalmente, e vai viver com Carlos da Maia, acompanhada de uma
filha, criança ainda. É quando Joaquim Guimarães, um velho jornalista,
entrega a João da Ega uma caixa de documentos a ele confiada por Maria
Monforte em Paris, para que ele a encaminhasse a Carlos. Este julgava
que a irmã, como a mãe, estivesse morta há muito tempo.
Ega lê os documentos e, aterrorizado, vai
mostrá-los a Carlos: ele e sua amada, Maria Eduarda, a antiga madame
Castro Gomes, eram irmãos. Desnorteado, Carlos volta a encontrar-se com
a irmã, numa atitude de incesto consciente, de que, mais tarde,
arrepende-se. Surpreendido com o reaparecimento da neta, que surgia como
amante do irmão, o austero Afonso da Maia falece. A situação entre os
irmãos só é solucionada após o funeral: Maria Eduarda, com a identidade
esclarecida e seus direitos reconhecidos, volta para Paris, refaz sua
vida e lá se casa. Já Carlos da Maia viaja para a América e o Japão, em
companhia de Ega. Só dez anos mais tarde retornaria a Lisboa, fixando
depois residência também em Paris, onde alia a falta do que fazer ao
diletantismo.
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III
Na ficção de Campos Matos, no começo de 1890,
Carlos da Maia encontra-se a viver sozinho já havia dois anos num
apartamento dos Champs Elysées, quando decide começar a registrar
acontecimentos e reflexões que lhe “turbilhonam a mente”. É a época do
ultimato inglês, uma advertência em forma de telegrama enviado ao
governo português pelas autoridades inglesas, em que era exigida a
retirada imediata das forças militares portuguesas dos territórios entre
Angola e Moçambique, que correspondem aos atuais Zimbabwe e Malawi.
Caso a exigência não fosse aceita por Portugal, a
Inglaterra avançaria com uma intervenção militar. Diante da humilhante
capitulação, Carlos da Maia faz uma reflexão que espelha boa parte do
pensamento da elite lusa ilustrada ainda hoje em relação aos seus
antepassados: “(...) Tão miseráveis, sem recursos na metrópole, mas
sonhamos ainda com um grande império, para nos estiolar e enfraquecer.
Absurda coisa! Não temos capacidade para progredir e trabalhar nesta
nesga de terra que definha a olhos vistos, mas pretendemos tomar conta
de quase um continente!...”.
O desalento de Carlos da Maia com a própria elite
portuguesa da qual descende é visível na anotação que faz em 1914, à
época da deflagração da Primeira Guerra Mundial: “Os nossos
soldados, analfabetos quase todos, e pessimamente preparados, vão ser
trucidados por alemães bem armados e bem treinados”, prevê, citando
em seguida palavras de Eça n´As Farpas: “(...) A Europa
pensará que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a
Portugal, não devem ficar perpetuamente sequestrados do movimento da
civilização”.
O diário registra acontecimentos de que Carlos da
Maia participa como médico estagiário num hospital de Paris e, depois de
uma viagem a Londres e uma passagem pelo Porto, o seu refúgio na quinta
de Santa Olávia, onde continua o seu trabalho de espectador do mundo.
Por todo o diário, não faltam reflexões sobre os acontecimentos que
envolvem Portugal e o mundo nem alusões musicais ou referências à grande
pintura e a religiões (em que ridiculariza o fenômeno do aparecimento de
Nossa Senhora de Fátima a três pastorinhos analfabetos) e muito menos a
autores franceses, como Honoré de Balzac (1799-1850), Guy de Maupassant
(1850-1893), Marcel Proust (1871-1922) e Gustave Flaubert (1821-1880), e
portugueses, como Antero de Quental (1842-1891), Camilo Castelo Branco
(1825-1890), António Feliciano de Castilho (1800-1875), António Nobre
(1867-1900), António Feijó (1859-1917), Pinheiro Chagas (1842-1895),
Oliveira Martins (1845-1894), Raul Brandão (1867-1930), Aquilino Ribeiro
(1885-1963), José Régio (1901-1969), Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário
de Sá-Carneiro (1890-1916), ou ainda a Machado de Assis (1839-1908) e,
naturalmente, a Eça de Queiroz, seu criador. De fato, Carlos da Maia não
só se refere várias vezes ao seu criador como conta sobre as ocasiões em
que esteve bem próximo dele sem se atrever a lhe dirigir a palavra.
A tal ponto chega a recriação que Campos Matos faz
de personagens e ambientes ecianos que, às vezes, tem-se a nítida
impressão que se lê o próprio Eça de Queiroz. É como se Campos Matos
quisesse escrever o livro (ou o terceiro volume de Os Maias)
que Eça escreveria se a vida não lhe tivesse sido breve, ao lhe
reproduzir com perfeição o sarcasmo e a ironia, como o faz neste trecho
em que Carlos da Maia analisa a própria atividade de ficcionista:
“(...) Devo dizer a este propósito que é necessário ter cuidado com a
veracidade do que escrevem os escritores, sobretudo os ficcionistas.
Estão sempre prontos a sacrificar a verdade dos factos se entenderem que
esse sacrifício lhes traz vantagens de forma e efeitos de estilo, ou
satisfações à sua vaidade”.
É claro que isso só foi possível porque Campos
Matos, à força do seu ofício de investigador, criou tamanha intimidade
com Eça de Queiroz e sua obra que só mesmo de sua pena poder-se-ia
esperar tal resultado. Um excepcional e feliz resultado.
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IV
O arquiteto e historiador da literatura portuguesa
Alfredo Campos Matos, nascido na Povoa do Varzim, como Eça de Queiroz,
tem vasto currículo queiroziano, que começou com Imagens do Portugal
Queirosiano (1976). É autor em grande parte do Dicionário de
Eça de Queiroz, publicado em 1988, que deu lugar a uma edição
aumentada em 1993 e, em 2000, ao Suplemento ao Dicionário de Eça de
Queiroz. Aliás, do Dicionário de Eça de Queiroz está para
sair uma terceira edição pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de
Lisboa, que conta com numerosos colaboradores portugueses e
estrangeiros.
Em 2014, Campos Matos publicou pela Editora Unicamp
e Ateliê Editorial a edição brasileira (revista e aumentada) de Eça
de Queiroz. Uma biografia, considerada desde que lançada em 2009
por Edições Afrontamento, do Porto, como a mais completa e mais rica
biografia do romancista português. Ao final de 2014, publicou Eça de
Queiroz – Correspondência (Adenda II), do qual é responsável pela
introdução, organização e anotações. Publicado por Colares Editora, de
Lisboa, o livro reúne duas cartas inéditas de Eça de Queiroz a Guerra
Junqueiro (1850-1923), datada de 1878, e ao seu amigo Eduardo Prado
(1860-1901), milionário brasileiro de quem se tornou amigo em Paris e um
dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.
Publicou ainda Eça de Queiroz-Emília de Castro,
Correspondência Epistolar (1995) e, posteriormente, Cartas de
Amor de Anna Conover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz,
cônsul de Portugal em Havana: 1873-1874 (1999).
É também autor de Diálogo com Eça de Queiroz (1999), A Casa
de Tormes, Inventário de um Patrimônio (2000), Viagem no
Portugal de Eça de Queiroz (2000), A Igreja Românica de S.
Pedro de Rates: Guia para Visitantes (2000), Eça de Queiroz,
Marcos Bibliográficos e Literários (1845-1900), catálogo da
exposição do Instituto Camões (2000), Ilustrações e Ilustradores na
Obra de Eça de Queiroz (2001), O Mistério da Estrada de Ponte
de Lima: António Feijó, Eça de Queiroz (2001), Sobre Eça de
Queiroz (2002), Sete Biografias de Eça de Queiroz (2004),
Dicionário de Citações de Eça de Queiroz (2005), Eça de
Queirós, Postais Ilustrados (2006), A Guerrilha Literária Eça
de Queiroz-Camilo Castelo Branco (2008), Eça de Queiroz.
Correspondência (2008), Eça de Queiroz-Ramalho Ortigão, Retrato
da “Ramalhal Figura” (2009), Silêncios, Sombra e Ocultações em
Eça de Queiroz (2011) e Sexo e Sensualidade em Eça de Queiroz
(2012), entre outros. No total, já publicou 36 livros, incluindo
obras sobre arquitetura.
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Diário íntimo de Carlos da Maia (1890-1930),
de A. Campos Matos. Lisboa: Edições Colibri, 421 págs., 20 euros, 2014.
Site: www.edi-colibri.pt E-mail: colibri@edi-colibri.pt |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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