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		A ordem dos livros na antologia 
		corresponde à data da escrita e não à data da publicação?  
		Nem uma coisa nem outra. No início da antologia coloquei uma sequência 
		publicada em 2003 na Black Sun Editores e que, de algum modo, é 
		excêntrica na minha produção. Em termos de pensamento, é simultaneamente 
		anterior e posterior a tudo quanto tenho escrito. Acabou por fixar-se 
		neste livro como prólogo e está bem assim, embora também pudesse ser um 
		epílogo, se este volume incluísse toda a minha poesia escrita e 
		publicada até ao momento. No que respeita aos outros livros, estão por 
		ordem cronológica de publicação, embora sem essa indicação, que pode ser 
		contudo conferida na nota final. Tentei reduzir ao mínimo todos os 
		aspectos paratextuais. Por isso retirei, também, as dedicatórias 
		originais (o que não significa um apagamento, mas apenas uma atitude 
		estética, tanto mais que para o leitor brasileiro nada significariam; só 
		uma edição portuguesa justificaria a sua manutenção, ainda assim em nota 
		final), bem como todas as menções às alavancas que levantaram os textos.  
		  
		Alguns textos poéticos seus ficam 
		excluídos desta selecção. Existe uma razão especial objectiva?  
		A edição desta antologia permitiu-me iniciar o processo de reescrita de 
		todos os meus livros de poesia que, se algum dia houver editor, serão 
		publicados em volume conjunto. Tratando-se neste caso de uma reunião de 
		textos que sempre desejei investida de uma “esquelética robustez”, como 
		dizia o velho humorista, tive de proceder a uma selecção, não só em 
		função do meu gosto pessoal, enquanto leitor que de fora já lê os seus 
		poemas, mas também procurando dar alguma coerência ao conjunto. Não 
		consigo conceber um livro de poesia ou, sequer, uma antologia sem uma 
		coesão interna. Nunca publiquei colectâneas de poemas, mas sequências 
		poéticas. Não critico quem o faz, mas estou do lado daqueles que não 
		conseguem fazer feixes de poemas como se atassem molhos de lenha.  
		  
		Já com 14 anos de actividade 
		poética permanente, reconhece-se na frase de Camilo Castelo Branco «A Poesia não tem presente: ou é esperança ou saudade»?  Se tiver em conta que no
		Arquitectura do Silêncio, 
		publicado em 2000, saíram poemas escritos entre 1992 e 1997, já 
		ultrapassei as duas décadas de actividade… Verdade seja dita que este 
		facto me provoca uma “inquietante estranheza”, como diria o Freud. Não 
		discordando do Camilo Castelo Branco, autor que leio sempre com gosto 
		não tanto pelas suas narrativas relativamente banais mas pela força da 
		sua expressão musculada e imaginativa, que o coloca entre os melhores 
		poetas em prosa da nossa língua, gosto sobretudo da noção de “saudade” 
		inventada (ou seja, encontrada, descoberta) pelo Teixeira de Pascoaes, 
		que bem se adapta ao que é a mais alta poesia: a poesia é 
		simultaneamente esperança e lembrança. Ou seja, não tem presente (a não 
		ser o da leitura). Esperança, porque é desejo, sonho e imaginação. 
		Lembrança, porque é dor, regresso e rememoração. É a poesia, ou seja, a 
		criação no mais elevado significado da palavra, que desfaz esta 
		antinomia, não destruindo os dois termos, mas associando-os. Por isso a 
		poesia é, simultaneamente, memória e profecia, recordação e amnésia, 
		lembrança e esquecimento. Mas, sobretudo, liberdade, não só enquanto 
		subversão dos códigos comunicativos da comunidade falante, mas enquanto 
		procura desse “manjar” sublime de que falava frei Agostinho da Cruz, que 
		consiste em “trazer o pensamento / Aceso na divina saudade”. Quem tiver 
		ouvidos para ouvir, oiça... Talvez não seja fácil escutar algo nos dias 
		que correm, em que o ruído nos acompanha, nos distrai e nos destrói… Sem 
		atenção, nunca haverá contudo poesia nem entendimento, o que será 
		decerto uma auto-estrada para a alienação mental e para o retrocesso 
		civilizacional.  
		  
		O título 
		Rua da Outra Rua 
		sugere um conjunto de casas. Há uma casa inicial de onde o poema afinal 
		nunca saiu?  Procurei encontrar e definir essa casa inicial 
		no meu primeiro livro – e por isso mesmo o intitulei
		Arquitectura – e em todos 
		aqueles que lhe sucederam. Andei algum tempo às cegas, mas com muito 
		maior clareza vejo hoje em dia onde se situa, embora saiba que nunca 
		conseguirei sequer aproximar-me do seu esboço. Com os simbolistas 
		oitocentistas, também afirmo convictamente que a poesia e a literatura 
		não são campos coincidentes. Com frequência, opõem-se. Embora haja 
		muitos textos escritos em verso, com todos os tiques daquilo a que 
		costumamos chamar “poema”, uma grande quantidade pertence somente à 
		literatura e nem de perto chega à poesia. Luto para que os meus textos 
		não fiquem desse lado. Há na realidade uma casa inicial que é também a 
		casa final. Por isso mesmo, quanto um dia juntar todos os meus poemas 
		num único volume, hei-de dar-lhe o título de
		Arqueologia, na medida em que 
		toda a poesia é uma forma imperfeita de tentar definir humanamente esse 
		“princípio”, esse “começo”, que os gregos designavam
		arkhé.
		  
		  
		Um dia Alexandre O’ Neill 
		escreveu que o Poeta é o contrário do publicitário porque este «acrescenta às coisas aquilo que elas não são». Concorda?  
		De certa forma concordo, na medida em que o poeta, enquanto instrumento, 
		pratica uma hermenêutica da realidade que, como se sabe, é bem mais 
		vasta do que o concreto e o quotidiano, mesmo quando passados pelo 
		joeiro da memória, quase sempre inventada ou recriada. Ou seja, 
		procurando a verdade, o cerne, da palavra, do significante, acaba por 
		descobrir, desvelando, a essência do significado. O que digo deve 
		arrepiar aqueles que ainda defendem a arbitrariedade do signo, mas só 
		numa língua de pau, de pau porque pauperizada (como aquela que a 
		comunicação social, a propaganda e certa universidade nos querem impor, 
		reduzindo-nos à condição de gagos mentais), é que uma coisa se separa 
		por completo da outra.
		  
		  
		Isto vem dar razão a Jorge de 
		Sena quando afirma «ao longo 
		dos tempos a Poesia nunca hesitou em chamar as coisas pelos seus nomes»?  
		Primeiro temos de descobrir que nomes têm verdadeiramente as coisas. E, 
		ao mesmo tempo, encontrar os verbos que as fazem seres moventes e vivos, 
		e não apenas existentes. Só depois disso as poderemos chamar, ou seja, 
		invocar. Um velho poeta neoclássico, hoje quase esquecido, Francisco 
		José Freire (que assinava com o pseudónimo Cândido Lusitano), dizia com 
		muita razão que trovar, ou seja, escrever poesia, vem de “trouver”, 
		verbo francês que significa encontrar e descobrir. Essa será sempre a 
		nossa mais digna tarefa: descobrir, imaginar e interpretar. Não creio no 
		entanto que o Sena pensasse nisto que digo quando proclamou essa frase. 
		Talvez pensasse na poesia como veículo de intervenção social. Estou 
		muito longe de concordar com aqueles que usam e usaram os poemas para 
		fazer proclamações políticas e sociais. De boas intenções está o inferno 
		cheio… e não consta que seja um lugar bem frequentado. Não sou como o 
		outro que defendeu a abolição do “mistério da poesia” enquanto houver 
		problemas económicos, sociais e políticos. Houve alguma época boa na 
		história da humanidade? Não creio… Nenhum poema verdadeiramente grande 
		se alheia do seu tempo e dos dramas aí vividos, mas a partir do momento 
		em que se subordina a um desejo deliberado de transmissão de uma 
		mensagem filantrópica, deixa de ser poesia para passar a ser literatura 
		em verso, ou, pior, propaganda rimada. Muitos caíram nesse logro, 
		inclusive alguns nomes grandes da nossa poesia. Acontece o mesmo com 
		aqueles que julgam agarrar mais leitores imitando a linguagem 
		anti-simbólica do nosso tempo ou transformando os seus versos em 
		carrinhos de mão que transportam micro-narrativas mais ou menos inanes 
		ou descrições jornalísticas… Mas seria assunto que levaria muito tempo a 
		escalpelizar. Parece-me que não vale a pena gastar cera com ruins 
		defuntos…  
		  
		Na dicotomia entre «canção» e 
		«reflexão» qual é o lugar da sua Poesia? 
		Não consigo separá-las e creio que nenhum poeta que deseje ser mais do 
		que um literato o conseguirá. De certo modo, a canção é um meio e a 
		reflexão o fim, se entendermos este termo não só enquanto sinónimo de 
		pensamento, mas também, na sua etimologia, enquanto devolução imperfeita 
		de uma imagem espelhada, não nossa, mas de algo que nos transcende 
		enquanto seres humanos.  
		  
		Sente que a Poesia, tal como a 
		Oração, liga de novo os dois mundos separados pela Morte?  Não sinto, penso. Imponho todavia uma
		nuance na frase que me propõe. 
		O que separa os dois mundos não é a morte, mas a existência, que será 
		sempre uma redução da vida e até da vivência; a não ser que a existência 
		sem vida seja um sinónimo de morte; se assim for, a maior parte dos 
		seres humanos de hoje já morreu. Uma existência sem vida – aquela que o 
		nosso tempo nos impõe a todo o momento, sem que a maior parte dos seres 
		humanos saiba como fugir-lhe ou sequer tenha consciência do lugar 
		infernal a que desceu – só poderá transformar-se numa vivência rumo à 
		vida se nos dispusermos a trilhar o árduo caminho que nos leva à 
		liberdade. A arte, não enquanto espectáculo ou substituto, mas enquanto 
		catalisador da religiosidade, será sempre um dos melhores bordões nessa 
		peregrinação. Por isso, a arte mais importante é simbólica. O que é 
		simbólico liga, como diz a etimologia, e o contrário de simbólico é 
		diabólico… Mas quem, neste mundo onde somos seduzidos e reduzidos por 
		toda a tralha que o dinheiro pode comprar, estará disposto a tornar-se 
		peregrino, ou seja, novato, aprendiz, estrangeiro no seu próprio país? 
		Nem a maior parte daqueles que se dizem poetas…  
		  
		No tempo de Cesário Verde era 
		mais famoso Cláudio Nunes, no tempo de Camilo Pessanha o conhecido era 
		Augusto Gil. Só o tempo pode decidir?  Sem dúvida. Os alfarrabistas estão cheios de 
		livros escritos por autores que, em vida, eram idolatrados em todos os 
		areópagos da moda. Ninguém os compra. Talvez devamos concordar com 
		Pascoaes, que considerava a arte um ídolo falso que nos leva ao Deus 
		verdadeiro, ou, como dizia o seu discípulo Sebastião da Gama, uma chave 
		falsa que abre portas verdadeiras. Também não será má ideia relermos
		A Capital, do Eça. Este mundo 
		está cheio de Romas… Como repetia uma senhora que o meu amigo bem 
		conheceu, não têm qualquer habilidade para fazer o vestido, mas sabem 
		“botar defeito”. Têm para cinco anos de imortalidade nas prateleiras dos 
		arquivos. Nisto tudo, temos de ser “simples como as pombas e astutos 
		como a serpentes”. Cristo tinha razão. Não podemos esquecer que, mesmo 
		agora, os escaparates e as colecções de poesia de algumas editoras de 
		topo estão cheios de grandes “ilusionistas”. Olhe, o David 
		Mourão-Ferreira identificou alguns na nossa santa terrinha. Mas quem lê 
		hoje os Vinte Poetas 
		Contemporâneos? Identificou alguns, mas nem todos… Cesariny também 
		descobriu a careca a um par deles, mas quase só na marginália dos livros 
		da sua biblioteca. Só depois da morte de um poeta, de toda a sua família 
		e de todos os seus amigos e clientes é que se sabe quanto vale a obra de 
		um escritor de poemas. Mas quem nos saberá ler daqui por uns anos? Se o 
		vocabulário se continuar a reduzir à velocidade actual, daqui por cem 
		anos os seres humanos voltarão a grunhir… Aí, batatas… Valeremos todos o 
		mesmo. Nessa altura, se houver cinquenta leitores de jeito em cada 
		língua será uma sorte. Ainda assim, a poesia convulsiva será apreciada. 
		Já estarão debaixo dos torrões ou feitos em cinza todos aqueles que, do 
		seu pedestal, agora cospem sobre os poetas menos coloquiais, aos quais 
		retiram direito de cidadania, reduzindo-os à condição de indigentes 
		culturais. Talvez essa malta tenha sorte e veja os seus restos colocados 
		no canteiro de um jardim público, onde os canídeos farão aquilo que a 
		natureza lhes manda. Que apoteose! Não tenho dúvidas: se vivessem hoje e 
		sem abrigo, como muitos poetas do nosso tempo, T. S. Eliot, Ezra Pound 
		ou Paul Celan seriam autores subterrâneos, rejeitados pela sua 
		dificuldade. Tiveram a sorte de existir noutro tempo. O que mais 
		interessa é trabalharmos honradamente, como uma vez me escreveu Fernando 
		Echevarría. Mas alguém se preocupa com a honra hoje em dia? A maior 
		parte das pessoas, com tantos versejadores à cabeça, deve responder como 
		um miúdo duma aldeia alentejana há quarenta anos: “Mais vale morrer sem 
		honra”… Os escândalos da alta finança e da corrupção, bem como a sede 
		existente nos nossos dias de ganhar dinheiro sem trabalho, provam que 
		sou capaz de ter alguma razão.  
		  
		Entre o «sangue pisado» da vida e 
		o «estilo» da escrita será a Poesia um intervalo difícil de atingir 
		porque difícil de dosear?  
		A poesia nunca poderá ser um escape. Ou seja, tem de incluir na sua 
		massa o sangue pisado da existência e muito mais… Não há evolução humana 
		sem a compreensão e a aceitação da dor e do sofrimento. Nisso (e em 
		muito mais) ando de braço dado com o Raul Brandão, o nosso mais 
		importante poeta em prosa, como bem o qualificou o nosso amigo de São 
		João de Gatão. Tem de incluir na sua massa o sangue, mas não 
		exclusivamente. Se assim fosse, os poemas deixariam de ser poemas e 
		passariam a ser qualquer coisa parecida com as morcelas. Brinco com 
		coisas sérias, eu sei. Quero apenas dizer que metemos as mãos no monturo 
		para descobrir nele uma via de redenção. Como o pinto da história 
		tradicional, que encontrou um copo de ouro no meio do estrume... José 
		Mattoso acertou: não devemos ser apenas activos ou apenas 
		contemplativos, mas praticar uma acção contemplativa ou uma contemplação 
		activa. Ora, praticar esse caminho em poesia equivale a fazê-lo a tempo 
		inteiro e de corpo inteiro, nunca num intervalo ou por diletantismo, na 
		medida em que reconhecemos uma hierarquia, ou seja, um princípio 
		sagrado. O poema é o intermediário entre a poesia e o poeta. E quem diz 
		Poesia, como escreveu um vizinho meu falecido em 1952 com 27 anos, diz 
		Verbo, diz Vida e diz Amor. Por isso tenho como regra de vida as 
		palavras iniciais do salmo 115… |