REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 50 | fevereiro-março | 2015

 
 

 

RODRIGO ARAÚJO

No território de Eros:

a poesia de Al Berto

Rodrigo da Costa Araújo é professor de Literatura Infantojuvenil e Teoria da Literatura na FAFIMA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte (2008-UFF) e Doutorando em Literatura Comparada [UFF]. Ex Coordenador Pedagógico do Curso de Letras da FAFIMA, pesquisador do Grupo Estéticas de Fim de Século, da Linha de Pesquisa em Estudos Semiológicos: Leitura, Texto e Transdisciplinaridade da UFRJ/ CNPq e do Grupo Literatura e outras artes, da UFF/ CNPq. Coautor das coletâneas Literatura e Interfaces, Leituras em Educação (Opção 2011), Saberes Plurais: Educação, Leitura & Escola, Literatura infantojuvenil: diabruras, imaginação e deleite. (Opção-2012) E-mail: rodricoara@uol.com.br

 

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Além de cada momento da linguagem poder se tornar ambíguo e dizer coisa diversa do que diz, o sentido geral da linguagem é incerto, não sabemos se ela expressa ou se representa, se é uma coisa ou se a significa; se está ali para ser esquecida ou se se faz esquecer apenas para ser vista; se é transparente por causa do pouco sentido do que diz ou clara pela exatidão com que o diz, obscura porque diz demais, opaca porque nada diz. (BLANCHOT, 1997, p. 328). 

Alguns poetas imprimem um desenvolvimento horizontal à sua produção: a cada nova obra fazem surgir pequenos ou grandes blocos, relativamente autônomos, que se articulam sintagmaticamente e configuram ao fim breve ou longo tempo, o perfil de uma caminhada.

Outros há, que percorrem uma mesma e inviolável trajetória: a obra posterior traz sempre a marca de um curso que se aprofunda incessantemente.Um processo cuja principal característica é jamais desvelar-se por completo. Nesse caso, temos uma progressão vertical, que encontra no adensamento seu móvel e sua diretriz. Quanto a esse tipo de opção criadora, sua tessitura traz marcas inconfundíveis. Eis o caso da poética de Al Berto.

O que se pretende neste ensaio curto é mapear essas marcas na produção poética de Al Berto; entender que essa criação se traduz pela busca do equilíbrio em face do desequilíbrio, pela busca da plenitude em face da incompletude. A expressão poética al bertiana, no sentido de combate, que se faz perceber como equilíbrio, tem a ver com a lucidez, com a consciência. Mas, nem por isso ela deixa de ser uma experiência de paixão: a loucura e a sua avidez, sem destino, que brotam do sopro intenso de poesia.

São essas as impressões que conduzem a leitura da obra de Al Berto. Lendo o livro O Medo (2000), de Al Berto, quase de uma vez só, fica-se pensando, de olhos fechados, num sujeito/poeta nebuloso, indefinido, mas apaixonante e convidativo. Fica-se reclamando novo contato ou leitura e maior aproximação, e o convite, muitas vezes, torna-se irresistível. De qualquer forma, a leitura da poesia de Al Berto exige velocidade, expõem as suas capacidades mais próprias, as de serem múltiplas, plásticas, transgressoras e, a um tempo, inscrição, alteridade e brilho.

Foi com esse brilho e nessa rapidez, também, que a poesia al bertiana compareceu na literatura portuguesa, como uma espécie de estrela cadente, solta da galáxia, correndo anos-luz, em fuga e desrespeito à estabilidade celeste. Veio direta, cega, com seu brilho, sem apalpar o escuro, sem escolher caminho, apesar de ter percorrido vários deles.

Perceptível apenas como um ponto luminoso, à longa distância, Al Berto foi uma surpresa caminhante, enigmático e perscrutador. Perturbador também, porque chega vertiginoso, carregado de energia densa e magnética. Sua escritura traz feições dessa rapidez e imagem insólita: “há dias que o lápis te foge, resiste como um objecto estranho/ persistes, esboças o rosto de cera apercebido no espelho, no fundo quieto do rio” (2000, p.82).

Todos os seus livros falam de um mesmo rosto que se procura na linguagem do espelho, forçam o leitor a descobrir o sentido moral e estético de suas reticências. São como óperas sincopadas ou sinfonias inacabadas, mas são envolventes nos arroubos ou na aparente simplicidade. Atraem, enleiam, enfeitiçam e introduzem o leitor como personagem e participante de suas poesias, confissões poéticas, romances e suas diabruras. Na verdade, a força de sua escrita revela um outro desejo “queria ser marinheiro correr mundo/com as mãos abertas ao rumo das aves costeiras/ a boca magoando-se a sonolenta canção dos ventos” (2000, p.296).

Alberto Raposo Pidwell Tavares (1948-1997) ou mesmo Al Berto, ligeiro, transgressor, atraente e inovador, veio compor a Via Láctea da Literatura Portuguesa, dando vida, força e movimento à palavra escrita, libertando-a de amarras e regras literárias convencionais. Sua poesia questiona a forma, as convenções do gênero, as marcas clássicas do convencional, as normas da língua portuguesa, os códigos estabelecidos, a moral, a sexualidade e as escolhas.

O silêncio, a melancolia, a solidão, o corpo, o mar, o esteticismo e muitos outros temas são questões e características que pontuam suas escolhas poéticas. Al Berto é eletrizante ao descrever qualquer viagem e transferi-la para o seu leitor. “A noite trazia-me aragens com cheiro a corpos suados/cantares e danças em redor de fogos que eu não sabia” (2000, p.298), ele transmite vida às linhas do texto, carregando-as de energia ao contato de seus dedos e olhos, emitindo sempre mensagens sem retoque. Do imaginário, ele passa para o real, para o existencial até à fusão do espírito e da carne, do amálgama da poesia e ficção. E ainda recomenda: “virava todo o meu sentir para o mar/quando no medo dos míticos promontórios/ se rasgou a oceânica visão... a ânsia de partir” (2000, p.301).

Na sua sinfonia literária, carregada de pianíssimos e crescendos, repleta de mistérios e divagações, ele é sempre imprevisível. Do esplendor da galáxia, desce e captura a minúscula luz de uma paisagem, mas a luminosidade é a mesma, irradiante, repleta, múltipla.

Al Berto tem um mundo próprio, todo seu, enorme, surpreendente, e sente necessidade de refleti-lo para fora, para os outros, para quem possa entendê-lo ou não. Esteta, como Oscar Wilde, sua escrita, apesar de leves diferenças, revela certo tom de beleza inconfundível: “a morte é uma relâmpago suspenso sobre o coração” (2000, p.333)/ “e da nossa passagem permanecerá/ o deslumbrante rumor dos fogos sobre o mar” (2000, p.333).

Pelas suas múltiplas cores, para avistá-lo, porque meteoro, é preciso reconhecer o impulso que imana o leitor. A partir daí, segue o hipnotismo e o rastro luminoso para suas divagações voluptuosas, carregadas de emoções e inquietudes, nem sempre lógicas, mas interrogativas, transgressoras, existencialistas, envolventes. O próprio leitor é levado - arrastado pela sua trilha luminosa e errante - a perscrutar algumas metáforas, não importa se reais ou fictícias, surreais ou insólitas. Ele - o leitor - vale-se de emaranhados de sentimentos, uma espécie de labirinto, em que se procura uma saída para o subconsciente.

De todas as leituras, ficam sempre leves marcas, impressões digitais, marcas do corpo, peso das palavras, leveza da escrita, desejo de uma poética do erótico. Algumas vezes delicada, outras vezes excitante.  Comparecem em suas poesias, o registro sensorial da palavra, o silêncio, a festa imaginária que recria o corpo, mesmo se o tema não é erótico, a escrita erotiza o significante.

Impressão Digital, por exemplo, é um livro que a linguagem segue o mesmo ritmo da redondez erótica - impressões do corpo, sutilezas do tato, cicatriz da memória. O corpo erógeno e palavra jogam com o prazer de criar a suspensão do sentido. A ambiguidade que dá pistas, mas não resolve, decididamente, do significado, resulta na excitação - preliminares eróticas. Todo o livro O Medo, coletânea de muitos outros, é um livro vivo, compilação de emoções que surgem e manifestam-se, gemem, gritam, lamentam-se, protestam no silêncio, no escuro, na solidão, vibrando ao impacto da vida real e sensível.

Apreciável, como as luzes de um meteoro no céu noturno, a poesia de Al Berto é lenta vertigem, paixão e desejo de escrever. Ao mesmo tempo em que metalinguística, porém pelo seu plano opositivo, também revela, sutilmente, a agonia de não conseguir a palavra ideal: “os poemas adormecem no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite, assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo” (2000, p.595).

Da escrita visceral de Al Berto, ecoam outros poetas da tradição portuguesa e de suas leituras pessoais: Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Cesário Verde,  Mário de Sá-Carneiro, Antonio Botto. Estes, estetas e transgressores. Seu discurso integra outros ainda, como Oscar Wilde, Rimbaud, Genet, Baudelaire. Como espelho poliédrico, esses poetas assumem vozes em Al Berto. Funcionam como projeção, recortes/aspirações para sua própria poética, metáforas da condição literária. O espelho é, ainda, estratégia que possibilita o ingresso em outros discursos, como a música pop e as artes visuais. Sua poesia, portanto, retoma e recria, criativamente, esses rastros discursivos.

Da sua poesia, também, ecoam algumas experiências urbanas de Bruxelas, Paris e Barcelona. Experiências e deambulações, que revelam suas preferências por um discurso poético, que imbricam ficção e poesia, vertigem e velocidade, confissão e encanto próprios de atitudes do flâneur. Poesia marcada, também, de vivências do poeta por uma Europa notadamente underground dos anos sessenta e setenta.

Dessas múltiplas facetas, o poeta-meteoro é também pintor. Ele dialoga com essas cidades numa linguagem mais próxima da sua plasticidade original. Essas mediações pictóricas são estabelecidas, entre a legibilidade da poesia e do texto urbano que se oferecem, visualmente, no lirismo ímpar.

O leitor, ao acompanhar o exercício da dialética da flânerie e desses vários diálogos com a tradição literária, evidencia o desenraizamento de Al Berto e sua memória, a resgatar fragmentos de versos ou escolhas que se inserem nos seus discursos. Essas retomadas e opções, no entanto, reforçam a constituição de sujeitos que proliferam em sua poética, tematizando ideias e cenários, onde se diluem as metáforas rumo a uma escritura radical de demarcação, entre urgência e melancolia, diferença e transgressão poética.

Por isso, a conexão biografia-obra é, em alguns momentos, inevitável, já que dessas releituras nascem uma relação especular. Não se trata de uma obra, predominantemente confessional, é uma obra que ficcionaliza, através da palavra poética, o drama de um sujeito situado, aquém do espelho. Espelho-texto, a poesia de Al Berto, pela sucessão de máscaras que esconde, atende à urgência de mascarar a errância e o homoerotismo.

Pela sua natureza pós-moderna, a poesia al bertiana, também, apresenta contradições. Feito os meteoros, sua escrita fragmentária, assemelha-se com partículas de poeira ou rocha que fica voando pelo espaço textual em alta velocidade. Quando entra na atmosfera literária, principalmente a lusitana, torna-se incandescente e pega fogo, construindo um imenso risco no céu. Pela sua distância no espaço celeste, em relação ao leitor, os meteoros parecem que são grandes, mas na maioria das vezes, não passam de pequeninos grãos de areia.

Fácil de ler e ver Al Berto, difícil penetrar na sua malha poética e analisar algumas incoerências, bem como as indagações pessoais dos sujeitos de seus textos, transgressores, autônomos, com decisões próprias, como sujeitos marcados para desempenhar, cegamente, algum comportamento criado para ele.

Como meteoro, a poética de Al Berto rasga o céu brilhando com intensidade. Arrasta consigo, além do olhar atônito do leitor, a beleza, o jogo de luzes e a rapidez que surgem queimando-se e destruindo-se, até o impacto final com algum planeta. Na face do planeta, a cratera indelével marca para sempre algum momento histórico e estético.

Al Berto chegou como um meteoro: cego, vertiginoso, inesperado, reluzente, interferindo no brilho e na constelação da poesia lusitana.

   
 
Al Berto nasceu a 11 de janeiro de 1948, em Coimbra, Portugal. Seu nome de batismo era Alberto Raposo Pidwell Tavares. Estudou em Lisboa, primeiramente, e mais tarde viajou a Bruxelas para estudar pintura. Voltou a Portugal na década de 70, onde passou a dedicar-se exclusivamente à escrita. Publicou vários livros de poesia, como Meu Fruto de Morder, Todas as Horas (1980), Salsugem (1984) e Horto de Incêndio (1997), mas foi a coletânea O Medo, com poemas escritos entre 1974 e 1986, editada pela primeira vez em 1987, que trouxe o reconhecimento da importância de Al Berto no panorama da poesia portuguesa contemporânea, tornando-se o livro mais conhecido do poeta português, ao qual seriam adicionados em posteriores edições novos escritos do autor, mesmo após a sua morte.
Al Berto tornou-se um dos poetas mais conhecidos do Portugal pós-Salazar, por fazer de “Al Berto” uma criação poética em que a vida e a obra se entrelaçavam. Atualmente, sua obra é editada pela prestigiosa Assírio & Alvim. Al Berto morreu em 1997.
 

ITINERÁRIOS DA ESCRITA EM AL BERTO 

 “Não tenho biografia; sendo um verdadeiro artista, atravesso a vida como uma das personagens dos meus livros” (Lawrence D./Lívia) (p.480).

Preciso com a máxima urgência de escrever, sobretudo não parar de escrever, não para substituir o livro que me escapa, que se desligou de mim, mas porque me é impossível não criar, não escrever, ou ficar siderado perante o vazio que o livro deixou. Não acredito no génio, acredito, sim, na necessidade, na urgência, na ânsia de me manter por um fio entre a queda final e o precário equilíbrio das palavras (Al Berto, 2012, p.78).

Não passa despercebida, a quem já tenha lido algum texto de Al Berto, uma espécie de nuança autobiográfica, especialmente no que concerne ao ato de criar. Isso fica mais evidente na leitura dos seus Diários (2012), lançados recentemente pela editora Assírio & Alvim. Vários fragmentos, registros e confissões dão conta de que, para ele, escrever assume sentido e inscrição, desejo, procura e disfarces. Ademais, a escrita como tema de seus registros e foco de muitas de suas poesias contribuem, favoravelmente, para isso. Criar é, então, um dilema e tema na escritura al bertiana.

Escrever todos os dias. Umas horas. Disciplinar a mão e a mente. Escrever, simplesmente escrever. Escrever como quem se perturba consigo mesmo e com o que o rodeira. Escrever, só - sem insistir sequer no acto de o fazer. Escrever à medida dos dias -  ou não escrever nada, absolutamente nada e esquecer os dias, as horas, tudo. Esquecer (Al Berto, 2012, p.505).

Há uma espécie de poética da criação, oriunda da experiência artística vivenciada, que se mostra e se oculta em seus Diários. Semelhante aos efeitos do vaga-lume na intermitência do acende-apaga, ou na rapidez do meteoro que deixa rastros luminosos ou mesmo na metáfora da respiração (inspira-expira), o processo de construção de sua escritura é detalhadamente revelado ao leitor. Os esforços do escrever são descortinados em um gesto de confiança e de humildade, mas que mostra, sobretudo, uma consciência sobre o ato em si.     

Os Diários demonstram, pelas mãos e escrita de Al Berto, certo gesto da mimese da criação ou do nascimento com toda a sua dor e incertezas. Nesse sentido, poderíamos dizer que suas confissões revelam-se como abordagem teórica feita no espaço da criação estética. O diário pensa o fazer literário, fazendo teoria e ao mesmo tempo criando ficção, estetizando o mundo, poetizando a vida. Portanto, revela-se, também, como metapoesia.

Diários, de Al Berto funciona como certa biografia imaginária, em fragmentos, de uma voz. É nesta direção que se encaminham os livros incluídos em À procura do vento num jardim d’Agosto (1974-75) e muitos outros livros da obra do poeta português. Como voz ou algumas vezes como personagem, outras vezes como autorretrato, recado breve, emblema geracional ou figura com máscaras ou sem contornos fixos, é que se define o sujeito nos textos de Al Berto. E como colagem de falas, sucessão de tons, ritmos, conversas, reflexões que se singulariza sua forma de composição poética. O que, em parte, sobretudo porque expressa geralmente em primeira pessoa, se conduz a uma sensação de marcada intimidade (daí, talvez, a sedução voyeurística com que certos leitores se apropriam de seus escritos como exemplares de uma zona de indistinção entre lírica e biografia), por outro lado, revela um constante exercício de aproximação a uma das vertentes mais marcadas da poesia moderna: a do monólogo dramático.

A escrita como conversação, como fala, arte da declamação: este é um dos traços mais característicos da escrita de Al Berto, cujo eco, insistente, se repete, com variações de um livro a outro. Às vezes o texto até começa como recado ou relato à primeira vista coeso, mas, de repente, surgem aspas, interrogações, sugestões de interlocução, fotografias, aforismos.

Os Diários, de Al Berto, de alguma maneira, acompanham o modo como trabalhou com as sugestões fornecidas pelo horizonte estético de sua geração, e como foi singularizando as próprias hesitações e escolhas numa poesia, marcadamente, próxima a uma arte da conversação, num texto com características fortemente orais e dramáticas. Escrever poesia torna-se, para Al Berto, além de escuta, um trabalho de elaboração de sua percepção de mundo, de registro de impressões e de referências a partir das suas paixões literárias: Charles Baudelaire, Rimbaud, Florbela, Fernando Pessoa, Oscar Wilde e outros.

Nesses termos, os fragmentos de diários íntimos convertidos, algumas vezes, em poemas demonstram como o poeta opta por um projeto pautado no inacabado e no precário, mas que, ao mesmo tempo, concentra uma múltipla e densa expressividade, instaurando um espaço híbrido onde encena sua própria subjetividade. No mesmo aspecto, destaca que apesar de nos poemas-diário de Al Berto as datas serem quase sempre explícitas e, muitas vezes, intitularem os textos, o autor conseguiu colocar em crise a própria lógica do gênero na medida em que inseriu cortes a sequência linear dos relatos, construindo poemas marcados pela desordem e pela descontinuidade dos registros.

Diários, de Al Berto e sua obra, como obra literária, é uma crise e uma crítica. Crítica no sentido etimológico da palavra: cortar para discernir. Crise porque institui continuamente, a consciência de que o ato de escrever é, entre outras coisas, uma incitante provocação ao pensar e autorretratar-se. Por isso mesmo, o desejo de: Desejaria esboçar um autorretrato, mas não consigo, o corpo paralisou-me no início da memória. Perdi-me no tempo incerto dos berlindes, dos passeios para apanhar búzios. Perdi-me no momento em que a infância me abandonou (Al Berto, 2012, p.117).

O espelho, também continuidade desse processo, é metáfora retomada para assumir a busca e do drama do homem que é acrescido do drama do escritor/poeta, preocupado com sua verdade “artística”: “Procurar o meu corpo no corpo dos outros, atravessar espelhos e destruir os reflexos que me incitam a acreditar que aquilo que se reflecte sou eu. (Al Berto, 2012, p.153)”.

Escrever no corpo da linguagem e com o corpo, eis a tarefa a que se tem proposto Al Berto. A partir dele, é com o tempo, a escrita e o silêncio, em que se mesclam a palavra e o ser, que se elabora a criação poética de Al Berto.  Nela e em sua obra como um todo, articulando-se ao inevitável conflito do homem angustiado, entra também em jogo, em primeiro plano, o indagar sobre esse processo.

A procura de ler a obra e Diários, de Al Berto deve ser feita na instância em que, pelo silêncio, ela se manifesta e pulsa. E porque ela se move no espaço do vício de escrever, da procura pela palavra, ela, algumas vezes, nega seu próprio registro: “Este diário, se é que é, é um vício e não uma necessidade. Posso muito bem passar sem escrever. Posso muito bem não escrever absolutamente nada, não deixaria de ter o vício das palavras, não deixaria de ser escritor”. (Al Berto, 2012, p.96).

Negando a palavra enquanto projeto, a experiência de ler a poesia  al bertiana, é, também, assumir de alguma maneira, sua leitura como paixão errante, como diria Blanchot. Onde essa errância pára e como ela se movimenta parte dos bastidores de sua poesia, tanto quanto sua criação artística. Isso fica evidente quando registra: “Um projecto assalta-me: Escrever incessantemente para poder deixar de escrever” (Al Berto, 2012, p.41).

Como o pensamento baudelairiano, além do fascínio e a obsessão pela palavra, Al Berto registra a consciência da fragilidade, a fugacidade do tempo, dos seus estragos, e que, por isso mesmo, abarca a tentativa de superação pelo imaginário poético:

Recomeçar este diário. Voltar a escrever com regularidade. Quase nada de novo na minha vida. Apenas escrever, sem cessar; aí residirá talvez um pouco de felicidade. Ou talvez um pouco de esperança. Ou talvez nada, absolutamente nada. Escrever livros que me percorrem o coração. Quebrar este silêncio em que me fechei. Diluir a mágoa dos dias nalgum sorriso. Olhar as horas e saber que no minuto vindouro se pode morrer. Quase nada tem importância na vida. Atravesso o tempo tranquilamente, repleto de sobressaltos (Al Berto, 2012, p.173). 

Se a memória baudelariana abriu ao artista as portas da imaginação e à Beleza suprema, se transformou em desilusão, em angústia - o próprio spleen - nem por isso a emoção estética associada à lembrança, sob a forma de poesia, se converteu em espaço e tempos vazios. A lírica al bertiana traz, feito Baudelaire, do seu desencanto com o mundo pós-moderno o fermento para o seu reencantamento. Em outras palavras, ele tece uma realidade outra a partir de si mesma, da sua materialização, enquanto imagem de sonho, reflexão ontológica, identidade reencontrada por intermédio da criação. E por isso confirma veemente:

Seria incapaz de deixar de escrever, mesmo que nunca mais publicasse. Parece-me, cada vez mais tenho a certeza disto, que a trajectória de um escritor nada tem a ver com a publicação do que escreve. Um “projecto de escrita” escapa a essa necessidade de se ver publicado, não se verga a nenhum comércio, nem se compra em concessões. Escrever, pelo menos no que me diz respeito, é um projeto que assenta em grande parte, na maneira como estou na vida, na maneira como vou dimensionando com o que me rodeia. Seria impossível condescender, facilitar ou aceitar propostas que não têm ligação alguma com a minha maneira de estar e, por consequência, que nada tem a ver com o que escrevo (Al Berto, 2012, p.88).

   
   
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

Al Berto. O Medo. Lisboa. Assírio & Alvim. 2000.

___. O último coração do sonho.  Lisboa. Quase Edições. 2000.

___.  Diários. Lisboa. Assírio & Alvim. 2012.

___. Apresentação da Noite. Lisboa. Assírio & Alvim. 2006.

___. Al Berto: dispersos. Lisboa. Assírio & Alvim. 2007.

___. Horto de Incêndio. Lisboa. Assírio & Alvim. 1997.

___. O Anjo Mudo. Lisboa. Assírio & Alvim. 2001.

___. Vigílias. Lisboa. Assírio & Alvim. 2004.

ARAUJO, Rodrigo da Costa. A poética dionisíaca de Al Berto. ZUNÁI - Revista de poesia & debates. Acesso em 17/12/2014.

___. Escrever o Mar: provocações da poesia de Al Berto. Revista Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Volume 11, Julho 2012. [http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br]

___. Al Berto no salão dos espelhos. Revista Convergência. Real Gabinete de Leitura. Número 26 - jul/dez de 2011: Resenhas.

___. A escrita visceral de Al Berto. Revista Querubim - Revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e ciências Sociais - Ano 09 Nº21- 2013 - ISSN 1809-3264. pp.116-160.

___. Al Berto, um meteoro. Revista Verbo-21. Cultura e Literatura. In: http://www.verbo21.com.br/ acesso em 17 dez. 2014.

___. A escrita, segundo Al Berto. Resenha Diários. Revista Mosaicum nº 18. Teixeira de Freitas. Bahia. Faculdade do Sul da Bahia. (Impresso), v. 01, pp. 35-38, 2013.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro. Rocco,1987.

 

 

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