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Sou o homem-calado, quero dizer, é meu o dom da
palavra mas, pelo percurso de uma vida adiada e vã, perdi o ensejo de
dizer seja o que for a quem quer que seja, por motivo algum. Ensimesmado
e solitário atravesso a existência em um mutismo só meu.
Recuso-me a ser um falso santo apenas porque não
mal-digo. Não falando é fácil estar eximido d’erróneo discurso, não
atacar ninguém, enfim, ser a mais pacata & timorata das criaturas.
Manso, não ofendo porque me calo. Ainda quando a veniaga, a sandice da
injustiça e da maledicência estejam à solta pelo mundo estou distanciado
e sereno em razão dessa grande virtude que o mais obstinado silêncio
também pode ser. Porém, toda a abstenção encerra em si um duplo sentido;
pode ser meritória, pode ser funesta. A radical escolha de nada dizer já
foi interpretada por uns como benfazeja delicadeza, já foi apodada por
outros de irreal agressão. Tomada como sinal de superioridade é de molde
a afastar de mim até a mais caridosa alma; e necessitando que me acudam
ver-me-ei sozinho para enfrentar a tormenta. Um homem que escreve, mil
vezes escreve e nada diz parece ser de diabólica têmpera, demoníaco
pacto onde se trafica a palavra calada por aquilo que ela mais diz. Um
homem que prefere calar, que mil vezes escreve, opta pelo silêncio
superabundante do verbo; também do sentido. Um homem que quer não dizer,
a quem aborrece o diálogo, que vive do e para o discurso interior,
solilóquio de treva, aquela do círculo sobre si cerrado, um homem que
abjurou do contacto oralizante com aquele que mais do que semelhante
devia ser um irmão. Um homem sozinho, perdido e tal o desamor que não
julga apropriado dirigir palavra que seja a outro homem, para pedir pão,
o ombro amigo, para escapar de sua penitente e atroz solidão.
Matai o diálogo, celebrai a consciência interna
circumnavegando-se em si mesma, naufragando, por vezes, sempre que por
autista delírio s’aliena a força do mundo, esse que sabe destruir as
barreiras que o ego construiu para seu tão grande sossego.
Ah, se fora rico bem-podia contratar quem
dialogasse por mim; escrever-lhe-ia as deixas, delinearia as respostas,
seria de aplaudir a contra-deixa; se fora rico também muito seria o
ensejo de longas-proveitosas conversas; todos têm uma palavra suave e
amiga para a prosperidade mas nenhuma para a miséria.
Mais do que nunca, a virtude é o som. Nos tomos do
obstinado silêncio encontrarás a morte, demência, a paz-dos-cemitérios
que te sorri, ladina e cadavérica, mofando do teu mutismo e de restares
só. É no recolhimento que se agiganta a imensa tristeza de quem não diz.
Os pensamentos, sempre tão alados, tingem-se de um negro espesso,
circular e opressivo que, a seu tempo, te entorpecem a mente que,
bem-queria, fosse ligeira.
Todo o abismo da não-palavra pesa-me e por vezes
esmaga-me, retira-me o hausto de uma límpida respiração, isola-me e,
sei-o bem, levará a perder-me. Pensai nesse sem fundo do discurso: nunca
encontrei talvez interlocutor à altura e por isso me fui calando, nunca
topei com o que dizer, a palavra-justa no momento certo, nunca senti a
feroz necessidade de quebrar o silêncio aliando a minha voz - será
canora ou desafina? - à voz desse imenso e teratológico falazar da mole
da gente, assim, decaído não, é claro, pela venal catábasis que com
estrondo abala os fundamentos da própria existência mas, mais
comummente, na erosão quotidiana que muito dilui, pelo uso. Raras serão
as vezes que o apelo ao dialógico me atiça a vontade. Todavia, que
ventura seria a conversa toda feita verdade, encarniçando-se os
combatentes da razão em defesa de sua tese, não por vingança e acinte
mas tão-só por amor à liça que encontra a sua máxima expressão no
fraterno recontro entre as ideias mais antagónicas. O que é dito em tão
bonançoso espírito vale o sal da terra, o mor de alegria. Por essa
nostálgica plenitude nunca vivida maldigo a incapacidade para a
dialogante comunhão, para a possibilidade mesma de alguma vez tal vir a
acontecer. Talvez por muito amar o que é dito, o que pode virtualmente
ser dito, nada digo. Esperando com excessiva expectativa a palavra final
esqueço-me de que mesmo a chã expressão de um banal desejo contém em si
toda a dignidade, preciosa potência de um mui humano cumprir-se e que
optar pelo total silêncio é precludir toda a possibilidade disso. Não
obstante, sonho ainda com a conversa plena, o singelo dizer apenas
porque sim, exprimir as íntimas afecções de uma mente, apesar de tudo,
lúcida com a mesma facilidade de uma mera exalação.
Ainda para mais, o canto-de-sereia das conversas
dos outros não admite resposta. Se participasse das dores e trabalhos
dess’afanosa comunidade bom-acesso a elas teria, tão-só, comungasse com
meu irmão igual destino e não este trono cambado d’irreal mas exacto
mutismo; partilharia então, irmãmente, os dizeres de todos-os-dias e
talvez, em boa-ventura, o diálogo excepcional em que quase por virtude
de supra-sensível potestade o verbo rebrilha, pois os interlocutores
querem e sabem e podem conjurar a palavra mais sábia e justa. Como sair,
dest’arte, do silêncio-torpor? Inacção pelo som, ceifada a voz em um
sentido inútil: tão má a verborreia quanto a recusa radical de todo o
dizer.
Quando começou este aziago manto de silêncio que
atormenta minha vida? Que causa e factores determinaram este radical
mutismo? Recuar até à primeira memória, ir fundo no poço da vida
pregressa eis ora o meu intento. Não comecei assim mas esta patologia
s’iniciou muito cedo e foi lenta a acomodação ao oco de minha voz. A
princípio fui verificando que o discurso poderia ser supérfluo.
Ensimesmado e tímido não encontrava o que dizer a quem encontrava no
excurso de minha vida e, a pouco e pouco, fui-me habituando a insinuar
sem dizer o que queria, enfim, fui desaprendendo a falar. Quem pouco tem
e de pouco necessita verifica, sem espanto, que a exigência de comunicar
seu intento pode adquirir uma importância residual na economia do seu
quotidiano. A rotina opera o seguinte milagre: se, a exemplo, é uso
frequentar determinado restaurante, com o tempo, todos já sabem
adivinhar o leque restrito de teu apetite. Assim, os pratos chegam à
mesa sem o incómodo de formular um pedido. Este mesmo processo se pode
aplicar às mais diversas situações. A certa altura terás uma
vida-automática onde tudo flui em ausência da palavra, adorno inútil que
já não encontra o seu lugar no corriqueiro fluir do tempo.
Grossas correntes me prendem à inanição da voz.
Houve momentos em que o meu silêncio foi uma bênção. No conturbado
século beneficia quem passa despercebido ao ensurdecedor barulho dos
megafones a que corresponde o ouvido sempre atento do Estado. É sempre
assim, quanto mais tonitruante é a voz pública mais delicada é a escuta
e o desbocado cidadão arrisca-se, com horológica exactidão, a enredar-se
nas malhas de uma burocracia malsã e punitiva, máquina horrenda e vil de
esmagar o indivíduo, arrancando-o, quantas vezes com tamanha violência,
aos seus afazeres privados para um destino trágico mas não incomum. Ora,
a um homem como eu nunca se ouviu a frase perigosa porque não disse
nenhuma. Por outro lado, quando instado a defender-me não soube nem pude
dizer de minha defesa, nem uma palavra arranquei da gorja ressequida
pelo medo, nem ao menos um queixume, a expressão ainda que alvar de uma
mágoa ou sequer do arrependimento. E aquele que não logra expressar o
seu arrependimento é, aos olhos da lei, duas vezes culpado, porfia no
engano, prescinde da hipótese de piedade e perdão do estulto juiz que
por inépcia e perversão do cargo apenas se contenta com a completa e
total retracção, visto que os factos são matéria mutável a modelar pelo
consabido delírio judiciário.
Inquire o Inquisidor: «Porque não dizeis, assim
precludis o bálsamo de vossa defesa; porque não vos arrependeis, assim o
Carrasco fará mais prontamente soar o chicote; porque não pedis
clemência, quanto mais sonoro for o obstinado silêncio mais se apertará
o garrote em vosso gasganete; não dizer nem Ai é apoucar os sofrimentos,
é ordem e quase pedido para que aumentem; sei que podeis falar, porque o
não fazeis?» E respondo para mim que não sei o porquê, porém desconfio
que a demência judicial não merece resposta, sendo surda à razão porque
o não seria ao queixume?
Pela voz aqueles melíferos sobem na vida. Canto e
sereia, de encantatório o sortilégio, em particular se se não subjugarem
à verdade; é deles o mundo. E nós, outros, que prescindimos até da
lamúria, ladrada em esquinas e nos cafés, vamos deixando acontecer o que
pelo poder hipnótico do som é forçoso que aconteça. Despejam-se os
vizinhos de suas casas, tira-se-lhes o pão, quiçá, por míngua e
abandono, a própria vida e todos os que, como vós, reprimem o grito que,
como disse, deixam acontecer, irão partilhar o seu quinhão da culpa até
ao dia, tão consabido quanto inevitável, em que a hora soará também para
vós. Quando esses pressurosos amanuenses da desgraça vos vierem buscar e
vos reduzirem à indigência de inanição já sequer adianta urrar e dizer
não: não restou ninguém para vos ouvir nem o quereriam, atormentados que
estão em seu próprio inferno. Apenas um poderoso, desses de língua
d'ouro, com um sorriso de desdém olhará para vós (sem sequer vos ver):
número que sois, silenciosos como todos os números feitos de gente,
acabastes de entrar no rol da miséria desses grande negócio de explorar
as mudas massas.
São sempre estas as reflexões dos mansos, remoendo
suas dores e lambendo suas feridas, sonhando, ainda, com outros
horizontes. Todos sabeis que a verdade da justiça é uma ideia vã. O
mundo é daqueles que o tomam para si e que o escrevem, digamos, segundo
a feição de seu interesse. Sendo como eu, informes e serenos em vossa
indiferença ou impotência estarão, desde sempre e para sempre,
condenados ao destino trágico da funda resignação.
Talvez nem valha falar de injustiça, uma vez que a
configuração do justo ou injusto é predeterminada por esses outros que
com o estrépito próprio de quem nunca se cala obtêm o seu quantum
de favores da vida. Esperar é a virtude própria dos fracos, e é uma
espera de coisa nenhuma, sem esperança ou outro alento que uma fé vazia
na bondade dos homens. Sim, quisera ser outro, mais firme, com menos
tédio de ser eu. Vencedor, venceria também as barreiras, por mim
erguidas ou tão-só pelo quotidiano de uma existência frustre, que me
expropriam do natural acesso a um discurso fluido e prático, útil, até
propiciador à atitude rapace dos veros vencedores da vida. Então talvez
fosse feliz, mais próspero, certamente, livre deste silêncio que oprime
e atormenta. Porém, agora, o silêncio para mim é tudo. A ele me apego,
fiel, como a um grande tesouro de luz feérica e que permite todas as
expectativas; matéria plástica a modelar pelo sonho é feita de todas as
conversas não havidas, grito ingente na noite clara conquanto sem som
real, fictício interpelar de todos os seres pelo que lhes é mais próprio
e verdadeiro. Assim, no alucinado fluxo contínuo de meu discorres
suposto, preencho, de imaginado discurso, tudo o que não disse, digo ou
direi. Vivo, pleno de som, em minha fantasia cheia. Dess'arte,
constante, invento interlocutores mais sábios, e nobres, e bons, cuja
sensibilidade e inteligência são grémio diverso de doutores e artistas.
É certo que minha imaginação só não alcança esse horizonte prosaico das
conversas de todos os dias. Para isso teria de ser um autor maior, cujas
récitas alcançassem o pormenor de filigrana banal que compõe o mundo.
Por outro lado, quem vive no sonho do dizer e
inventa as personagens ideais dos seus conciliábulos porque se reduziria
ao falar comezinho e chão? Não, é mais fácil e acessível criar diálogos
de grandes ideias, discussões que se prolonguem na noite de meus dias
calados, vastas como tapeçarias antigas onde as escolas, uma a uma e em
grande desordem, são expostas, rebatidas e depois vindicadas por
espíritos finos e belos que apenas pecam, já se vê, por não existirem.
Sob a carcaça da existência venal, invisível de tão apagada e inane sou
a erguer a vida, toda exterioridade de som, que povoada de vozes todas
minhas soem preencher os vagos e vazios de minha presença inútil entre
as gentes de vera carne.
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