REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 50 | fevereiro-março | 2015

 
 
JOÃO PEREIRA DE MATOS

Nos Tombos

do Sacro Silêncio

João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.  

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Sou o homem-calado, quero dizer, é meu o dom da palavra mas, pelo percurso de uma vida adiada e vã, perdi o ensejo de dizer seja o que for a quem quer que seja, por motivo algum. Ensimesmado e solitário atravesso a existência em um mutismo só meu.

Recuso-me a ser um falso santo apenas porque não mal-digo. Não falando é fácil estar eximido d’erróneo discurso, não atacar ninguém, enfim, ser a mais pacata & timorata das criaturas. Manso, não ofendo porque me calo. Ainda quando a veniaga, a sandice da injustiça e da maledicência estejam à solta pelo mundo estou distanciado e sereno em razão dessa grande virtude que o mais obstinado silêncio também pode ser. Porém, toda a abstenção encerra em si um duplo sentido; pode ser meritória, pode ser funesta. A radical escolha de nada dizer já foi interpretada por uns como benfazeja delicadeza, já foi apodada por outros de irreal agressão. Tomada como sinal de superioridade é de molde a afastar de mim até a mais caridosa alma; e necessitando que me acudam ver-me-ei sozinho para enfrentar a tormenta. Um homem que escreve, mil vezes escreve e nada diz parece ser de diabólica têmpera, demoníaco pacto onde se trafica a palavra calada por aquilo que ela mais diz. Um homem que prefere calar, que mil vezes escreve, opta pelo silêncio superabundante do verbo; também do sentido. Um homem que quer não dizer, a quem aborrece o diálogo, que vive do e para o discurso interior, solilóquio de treva, aquela do círculo sobre si cerrado, um homem que abjurou do contacto oralizante com aquele que mais do que semelhante devia ser um irmão. Um homem sozinho, perdido e tal o desamor que não julga apropriado dirigir palavra que seja a outro homem, para pedir pão, o ombro amigo, para escapar de sua penitente e atroz solidão.

Matai o diálogo, celebrai a consciência interna circumnavegando-se em si mesma, naufragando, por vezes, sempre que por autista delírio s’aliena a força do mundo, esse que sabe destruir as barreiras que o ego construiu para seu tão grande sossego.

Ah, se fora rico bem-podia contratar quem dialogasse por mim; escrever-lhe-ia as deixas, delinearia as respostas, seria de aplaudir a contra-deixa; se fora rico também muito seria o ensejo de longas-proveitosas conversas; todos têm uma palavra suave e amiga para a prosperidade mas nenhuma para a miséria.

Mais do que nunca, a virtude é o som. Nos tomos do obstinado silêncio encontrarás a morte, demência, a paz-dos-cemitérios que te sorri, ladina e cadavérica, mofando do teu mutismo e de restares só. É no recolhimento que se agiganta a imensa tristeza de quem não diz. Os pensamentos, sempre tão alados, tingem-se de um negro espesso, circular e opressivo que, a seu tempo, te entorpecem a mente que, bem-queria, fosse ligeira.

Todo o abismo da não-palavra pesa-me e por vezes esmaga-me, retira-me o hausto de uma límpida respiração, isola-me e, sei-o bem, levará a perder-me. Pensai nesse sem fundo do discurso: nunca encontrei talvez interlocutor à altura e por isso me fui calando, nunca topei com o que dizer, a palavra-justa no momento certo, nunca senti a feroz necessidade de quebrar o silêncio aliando a minha voz - será canora ou desafina? - à voz desse imenso e teratológico falazar da mole da gente, assim, decaído não, é claro, pela venal catábasis que com estrondo abala os fundamentos da própria existência mas, mais comummente, na erosão quotidiana que muito dilui, pelo uso. Raras serão as vezes que o apelo ao dialógico me atiça a vontade. Todavia, que ventura seria a conversa toda feita verdade, encarniçando-se os combatentes da razão em defesa de sua tese, não por vingança e acinte mas tão-só por amor à liça que encontra a sua máxima expressão no fraterno recontro entre as ideias mais antagónicas. O que é dito em tão bonançoso espírito vale o sal da terra, o mor de alegria. Por essa nostálgica plenitude nunca vivida maldigo a incapacidade para a dialogante comunhão, para a possibilidade mesma de alguma vez tal vir a acontecer. Talvez por muito amar o que é dito, o que pode virtualmente ser dito, nada digo. Esperando com excessiva expectativa a palavra final esqueço-me de que mesmo a chã expressão de um banal desejo contém em si toda a dignidade, preciosa potência de um mui humano cumprir-se e que optar pelo total silêncio é precludir toda a possibilidade disso. Não obstante, sonho ainda com a conversa plena, o singelo dizer apenas porque sim, exprimir as íntimas afecções de uma mente, apesar de tudo, lúcida com a mesma facilidade de uma mera exalação.

Ainda para mais, o canto-de-sereia das conversas dos outros não admite resposta. Se participasse das dores e trabalhos dess’afanosa comunidade bom-acesso a elas teria, tão-só, comungasse com meu irmão igual destino e não este trono cambado d’irreal mas exacto mutismo; partilharia então, irmãmente, os dizeres de todos-os-dias e talvez, em boa-ventura, o diálogo excepcional em que quase por virtude de supra-sensível potestade o verbo rebrilha, pois os interlocutores querem e sabem e podem conjurar a palavra mais sábia e justa. Como sair, dest’arte, do silêncio-torpor? Inacção pelo som, ceifada a voz em um sentido inútil: tão má a verborreia quanto a recusa radical de todo o dizer.

Quando começou este aziago manto de silêncio que atormenta minha vida? Que causa e factores determinaram este radical mutismo? Recuar até à primeira memória, ir fundo no poço da vida pregressa eis ora o meu intento. Não comecei assim mas esta patologia s’iniciou muito cedo e foi lenta a acomodação ao oco de minha voz. A princípio fui verificando que o discurso poderia ser supérfluo. Ensimesmado e tímido não encontrava o que dizer a quem encontrava no excurso de minha vida e, a pouco e pouco, fui-me habituando a insinuar sem dizer o que queria, enfim, fui desaprendendo a falar. Quem pouco tem e de pouco necessita verifica, sem espanto, que a exigência de comunicar seu intento pode adquirir uma importância residual na economia do seu quotidiano. A rotina opera o seguinte milagre: se, a exemplo, é uso frequentar determinado restaurante, com o tempo, todos já sabem adivinhar o leque restrito de teu apetite. Assim, os pratos chegam à mesa sem o incómodo de formular um pedido. Este mesmo processo se pode aplicar às mais diversas situações. A certa altura terás uma vida-automática onde tudo flui em ausência da palavra, adorno inútil que já não encontra o seu lugar no corriqueiro fluir do tempo.

Grossas correntes me prendem à inanição da voz. Houve momentos em que o meu silêncio foi uma bênção. No conturbado século beneficia quem passa despercebido ao ensurdecedor barulho dos megafones a que corresponde o ouvido sempre atento do Estado. É sempre assim, quanto mais tonitruante é a voz pública mais delicada é a escuta e o desbocado cidadão arrisca-se, com horológica exactidão, a enredar-se nas malhas de uma burocracia malsã e punitiva, máquina horrenda e vil de esmagar o indivíduo, arrancando-o, quantas vezes com tamanha violência, aos seus afazeres privados para um destino trágico mas não incomum. Ora, a um homem como eu nunca se ouviu a frase perigosa porque não disse nenhuma. Por outro lado, quando instado a defender-me não soube nem pude dizer de minha defesa, nem uma palavra arranquei da gorja ressequida pelo medo, nem ao menos um queixume, a expressão ainda que alvar de uma mágoa ou sequer do arrependimento. E aquele que não logra expressar o seu arrependimento é, aos olhos da lei, duas vezes culpado, porfia no engano, prescinde da hipótese de piedade e perdão do estulto juiz que por inépcia e perversão do cargo apenas se contenta com a completa e total retracção, visto que os factos são matéria mutável a modelar pelo consabido delírio judiciário.

Inquire o Inquisidor: «Porque não dizeis, assim precludis o bálsamo de vossa defesa; porque não vos arrependeis, assim o Carrasco fará mais prontamente soar o chicote; porque não pedis clemência, quanto mais sonoro for o obstinado silêncio mais se apertará o garrote em vosso gasganete; não dizer nem Ai é apoucar os sofrimentos, é ordem e quase pedido para que aumentem; sei que podeis falar, porque o não fazeis?» E respondo para mim que não sei o porquê, porém desconfio que a demência judicial não merece resposta, sendo surda à razão porque o não seria ao queixume?

Pela voz aqueles melíferos sobem na vida. Canto e sereia, de encantatório o sortilégio, em particular se se não subjugarem à verdade; é deles o mundo. E nós, outros, que prescindimos até da lamúria, ladrada em esquinas e nos cafés, vamos deixando acontecer o que pelo poder hipnótico do som é forçoso que aconteça. Despejam-se os vizinhos de suas casas, tira-se-lhes o pão, quiçá, por míngua e abandono, a própria vida e todos os que, como vós, reprimem o grito que, como disse, deixam acontecer, irão partilhar o seu quinhão da culpa até ao dia, tão consabido quanto inevitável, em que a hora soará também para vós. Quando esses pressurosos amanuenses da desgraça vos vierem buscar e vos reduzirem à indigência de inanição já sequer adianta urrar e dizer não: não restou ninguém para vos ouvir nem o quereriam, atormentados que estão em seu próprio inferno. Apenas um poderoso, desses de língua d'ouro, com um sorriso de desdém olhará para vós (sem sequer vos ver): número que sois, silenciosos como todos os números feitos de gente, acabastes de entrar no rol da miséria desses grande negócio de explorar as mudas massas.

São sempre estas as reflexões dos mansos, remoendo suas dores e lambendo suas feridas, sonhando, ainda, com outros horizontes. Todos sabeis que a verdade da justiça é uma ideia vã. O mundo é daqueles que o tomam para si e que o escrevem, digamos, segundo a feição de seu interesse. Sendo como eu, informes e serenos em vossa indiferença ou impotência estarão, desde sempre e para sempre, condenados ao destino trágico da funda resignação.

Talvez nem valha falar de injustiça, uma vez que a configuração do justo ou injusto é predeterminada por esses outros que com o estrépito próprio de quem nunca se cala obtêm o seu quantum de favores da vida. Esperar é a virtude própria dos fracos, e é uma espera de coisa nenhuma, sem esperança ou outro alento que uma fé vazia na bondade dos homens. Sim, quisera ser outro, mais firme, com menos tédio de ser eu. Vencedor, venceria também as barreiras, por mim erguidas ou tão-só pelo quotidiano de uma existência frustre, que me expropriam do natural acesso a um discurso fluido e prático, útil, até propiciador à atitude rapace dos veros vencedores da vida. Então talvez fosse feliz, mais próspero, certamente, livre deste silêncio que oprime e atormenta. Porém, agora, o silêncio para mim é tudo. A ele me apego, fiel, como a um grande tesouro de luz feérica e que permite todas as expectativas; matéria plástica a modelar pelo sonho é feita de todas as conversas não havidas, grito ingente na noite clara conquanto sem som real, fictício interpelar de todos os seres pelo que lhes é mais próprio e verdadeiro. Assim, no alucinado fluxo contínuo de meu discorres suposto, preencho, de imaginado discurso, tudo o que não disse, digo ou direi. Vivo, pleno de som, em minha fantasia cheia. Dess'arte, constante, invento interlocutores mais sábios, e nobres, e bons, cuja sensibilidade e inteligência são grémio diverso de doutores e artistas. É certo que minha imaginação só não alcança esse horizonte prosaico das conversas de todos os dias. Para isso teria de ser um autor maior, cujas récitas alcançassem o pormenor de filigrana banal que compõe o mundo.

Por outro lado, quem vive no sonho do dizer e inventa as personagens ideais dos seus conciliábulos porque se reduziria ao falar comezinho e chão? Não, é mais fácil e acessível criar diálogos de grandes ideias, discussões que se prolonguem na noite de meus dias calados, vastas como tapeçarias antigas onde as escolas, uma a uma e em grande desordem, são expostas, rebatidas e depois vindicadas por espíritos finos e belos que apenas pecam, já se vê, por não existirem. Sob a carcaça da existência venal, invisível de tão apagada e inane sou a erguer a vida, toda exterioridade de som, que povoada de vozes todas minhas soem preencher os vagos e vazios de minha presença inútil entre as gentes de vera carne. 

   
 
Sou, evidentemente, de amar aquilo que perdi, o que nunca tive e que talvez nunca terei. E tão simples que é para o vulgo falar e discorrer, entrar em contacto, o mais directo com os outros, irmãos num mesmo amplexo universal de comunicação. Ser como sou é ser aparte, é excluir-me da comum humanidade. Por certo, deste modo, o poder de observação aumenta, o mundo interior como que se dilata pois falo para dentro em um excurso manante de nova maravilha de achamento dos recessos recônditos de minha alma e até da dos outros, ora vista em lúcido caleidoscópio de ténues sensações. Mas, que faço eu com isso? Que desperdício e tamanha melancolia, quando o muito que teria para dizer permanece cerrado nos estritos e acanhados limites de meu mundo particular. Nem escrevo pois não tenho quem me leia. Haverá diversos exemplos de quem apenas pela palavra escrita consegue comunicar com a eficácia certa as suas ideias. Esses, porém, são adjuvados pela oralidade, pelo vínculo quotidiano que lhes granjeia a oportunidade de chegarem ao forum justo, aquele que lhes aumenta os meios de alcançar um amplíssimo auditório ledor. Não falando também não escrevo (à excepção destas linhas...), pois não seria lido, e ademais as inibições que tão completamente me cerceiam o dizer oral valem também para o dizer escrito e assim me calo, de um e outro modo obstinado no mesmo radical mutismo.
Desenho de João Pereira de Matos
   
 

Quem cala, cala alguma coisa. Eu calo a vida mesma. Metáfora de mim próprio, construí palácios de renúncia, sou sonhando-me, penso mas não digo, digo mas só para mim converso.

Penso, contudo, em um destino todo-voz, canto em fror de minha graça que, como dádiva, partilharia com o Outro, em bonançosa esperança de dias melhores, uma via ditosa sem os entraves que me estrangulam a palavra e que, ademais, obstaculizam toda a comunicação profícua. Serei um filosofo sem o querer e muito filosoficamente me calo? Um doido, que divaga, que mantém o resto de lucidez ao não incomodar os outros com seus dislates?

Mas, na angustiante tensão de todos-os-dias, como calar este tormento? Sim, alguém que renunciou ao dizer sabe e sente a dor de estar calado, de querer gritar impropérios e não saber como, urro alvar de uma sã loucura quando os esbirros e sicários de um Estado-Podre, predatório e cruel, corrói a vida de todos, expropria e esbulha pela Lei mais torpe que nos atira para as ávidas garras da indigência enquanto os muito-poucos, os eleitos de um devorismo triunfante exultam e incham à custa de tanta miséria. Nessa altura o silêncio é maldição, garganta rasgada na carne-viva da revolta que não sabe encontrar a voz que diga de tanto horror. Se não soube talvez num tempo ditoso dizer de mais suaves dias, como agora falar a palavra vindicante que salve todos? A palavra final e derradeira será dada aos pobres, aqueles que sofrem em silêncio, a quem não detém o som melífluo do institucional engano e o estrépito de tanta espera chegará aos céus, derrubará os muros e as muralhas e os palácios, fará soar a hora da redenção e então serei de ajuntar minha voz ao coro dos muitos, daqueles que, já sem nada a perder, dirão de sua justiça, e terminará este estranho sortilégio que me amordaçou durante tantos & tantos anos.

 

 

© Maria Estela Guedes
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