Hoje este entendimento parece-me uma fórmula
ultrapassada, e mesmo obsoleta. Valores e qualidades, ou a ausência
delas, procuravam ser uma métrica. Sempre faliciosa. Primária mesmo.
Na verdade, cheguei mesmo a obrigar-me a usar esta
metodologia, até porque era a ferramenta que a sociedade então me
imponha. Questionei-a múltiplas vezes. E agora cansei mesmo. Obrigo-me
assim a uma requalificação do sentido e do pensamento. E reprogramo-me
no propósito de encontrar uma nova, e outra, formulação: não há mais
sentido para raciocinar suportado no entendimento do perfil de
diferentes gerações. Ganhou para mim até a palavra geração, a palavra
dita - assim dita -, uma certa repugnância. "A minha geração". "A nova
geração". "Uma outra geração". Castas diversas e diferenciadas obrigam a
uma castração [cast(r)ação] fria das vontades e não permite, tal gesto,
território para a gestação de qualquer acto poético.
Hoje não há mais gerações, ou identidade de
geração, mas pessoas. A Pessoa e a sua Condição e Sentido. E é aí que a
Identidade se formula, agora, numa pretensa definição. Pessoal e
individualizada. Depurada.
Esta consciência premonitória surgiu-me quando
estruturei o objecto de reflexão: "GerAcção". Reprogramando a sua
semântica. Essa revisita-me agora. Ou seja: proporciona-me hoje
contributos procurando razões conclusivas.
Ernesto de Sousa, que me ofereceu a sua mestria,
dizia-me que era preciso surgir uma nova geração capaz de colocar (de
novo) os bigodes à Gioconda. E dizia ainda que teria de ser uma geração
que acreditasse que a pedra (um dia) daria flor.
Aqui havia teimosamente, ainda, uma narrativa de
geração. Uma consciência grupal. Gregária. Mas, na verdade, os
malefícios do comportamento gregário rápido fizeram desmontar a
legitimidade do fluxo colegial e grupal. E logo dos benefícios da
identidade gregária. Assim, num mar de inquietações, desde esse tempo,
testei e questionei os propósitos aí enunciados.
"GerAcção" - o objecto pretensamente artitude,
formulado em objecto-texto, objecto-livro, poético-visual, que
questiona. Questionando.
Um carro caído na estrada, na sua falência motora,
logo abandonado à sua sorte e inércia inapta, mereceu-me atenção pelo
seu desenho. Mas também pela sua atitude convocando uma artitude. Tudo
obrigava uma resposta ao acto urbano. Confrontei-me várias vezes com o
objecto defunto. E logo toda aquela matéria ganhou uma animalidade
narrativa. Ganhou vida. Era pedra. Mas começava a dar flor.
Apropriei-me do animal. Adoptei-o como um animal
doméstico encontrado na rua afogado de mazelas. Lambi-lhe as feridas, e
passei a habitar nele. Passou a ser a minha casa. A nossa casa em muitos
dos momentos, nesse tempo em que vivíamos numa velocidade ciclópica.
"GerAcção" era um texto que enunciava um propósito.
Um sentido de marca e Manifesto. Gerar Acção era a palavra de ordem para
a Geração que me transportava, e que eu transportava comigo. A minha
Geração, essa que havia recebido um legado perante a Gioconda e a pedra.
Mas o tempo desenhou-se em fluxo constante. O tempo mutável, mutante,
trazendo consigo uma geração proliferativa e miscegenada com plurais
referentes, esses que convulsivamente, a cada momento, chegavam
esculpindo uma identidade obrigatoriamente dinâmica. Elástica. Geração
que logo fez dissolver os seus mais rígidos alicerces em busca de
soltura. Uma geração de soltura é uma não geração. Convoca e enuncia
alternativa. É a chegada das pessoas. Da Pessoa. Pessoa sem geração.
Logo pertencendo a várias gerações. Pluralizante. Numa miscegenação
agora assumida para uma outra natureza - "natureza" outra. Com pessoas -
Pessoas. Sem geração. Gerando Acção.
Um dia cheguei a 'casa'. Cheguei ao carro
["GerAcção"] e ele já não estava. A sociedade tinha levado o livro-casa,
obrigando a rua à sua disciplina. Essa disciplina que não ensina. Que
não vive. A rua voltou a ser pedra. E a pedra não voltou a dar flor.
AB_27.11.2014
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