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A
um homem com dúvidas sucedeu um homem entregue
a si mesmo e, a esse, um
homem-dúvida incapaz de saber qual será o próximo passo.
Hoje, como
no século XV, os paradigmas cruzam-se. Mas se no século XV a derrocada
da economia feudal faz emergir o capitalismo, a derrocada do capitalismo
faz emergir, nos nossos dias, a angústia do não previsto. O Estado
absolutista firmou-se sobre as classes médias, nesse passado longínquo
mas inspirador. O Estado de hoje, um pouco por toda a parte na economia
ocidental, procura desesperadamente financiar-se com a classe média,
diluindo-a num percurso esmagador e impensado, onde os impostos
aplicados substituem a incapacidade de auto financiamento e geração de
riqueza. Todavia, as ideias de
Maquiavel parecem atuais, apesar de todas as diferenças. Há um Homem
antes e depois da Revolução Francesa (Deus afasta-se, o Cidadão quer
substituí-lo ), assim como há um Homem antes e depois de Marx (o Cidadão
afasta-se, o Homem passa a entender-se como um ser social histórico que
possui a capacidade de trabalhar e desenvolver a produtividade do
trabalho); como há um Homem antes e depois de Freud e de Nietzsche e de
Darwin e de Althusser ou Raymond Aron, que escreveu o ensaio, “Maquiavel
e Marx” - mas há um só homem político com e depois de Maquiavel. Um
homem político que parece inalterado ao longo dos séculos.
De um
modo que entendo afetivo, Maquiavel escreveu
- "A ambição é uma paixão tão
forte no coração do ser humano, que, mesmo que galguemos as mais altas
posições, nunca nos sentimos satisfeitos."
Interesso-me por Maquiavel, numa perspetiva de estudo situada no
primeiro dos limiares possíveis para a História das Ideias: aquele em
que são examinadas as ideias relacionadas ao pensamento sistematizado de
indivíduos específicos. Esta definição ocorre-me como necessária. Quando
interpreto Nicolau Maquiavel não falo de História Política nem de
História Intelectual, mas das Ideias produzidas, agitadoras, capazes da
viragem de um tempo – e de sobreviverem ao mesmo.
Tal como
a linguagem freudiana, por exemplo, também a que resulta de Maquiavel
entrou e instalou-se em certo discurso cultural, por vezes até ao nível
menos sofisticado do mesmo:
mais
de quatro séculos nos separam da época em que ele viveu, o século XVI, e
mesmo aceitando que muitos leram e comentaram a sua obra, há que relevar
que é consideravelmente maior o número de pessoas que evoca o seu nome -
ou pelo menos os termos que nele têm origem – do que aqueles que o
conhecem na realidade. Maquiavélico e maquiavelismo são adjetivo e
substantivo (no discurso erudito, no debate político, no quotidiano). Do
mundo da política, onde afinal nasceu, ao universo das relações
privadas, a popularidade mantém-se, pelo menos no uso, quase sem
desgaste, de uma intenção bem definida: usar o nome para sinonimizar a
palavra terrível, referente a
comportamento, ou a uma
teoria, ação ou procedimento firme nos seus propósitos. O mais vulgar,
porém, é uma contradição condenável:
Maquiavel, sempre defendeu a ética na política. O termo “maquiavélico”
passou a ser usado para aquelas pessoas que praticam atos desleais (até
mesmo violentos) para obter vantagens, manipulando as pessoas, o que é
uma contradição.
A
interpretação maquiavélica da esfera política foi a que permitiu
surgir a ideia de que “os fins justificam os meios”, embora não se possa
atribuir literalmente essa frase a Maquiavel. Além disso, fez surgir no
imaginário e no senso comum a ideia de que Maquiavel seria alguém sem
escrúpulos, dando origem à expressão “maquiavélico” para designar algo
ou alguém dotado de certa maldade, frio e calculista.
Nos
“Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, de 1513 a 1521,
Maquiavel não só defende a forma de governo republicana com uma
constituição mista,
de acordo com o modelo da República de Roma Antiga, como defende também
a necessidade de uma cultura política sem corrupção, pautada por
princípios morais e éticos. Nunca defendeu o contrário, em nada do que
escreveu.
Curiosamente, hoje Maquiavel é atual, não tendo escrito, todavia, nada
de verdadeiramente genial. Pelo contrário, reduz-se a um provincianismo
localizado, e esgota na intriga a imaginação política, sendo obcecado
pela unidade italiana que, aliás, só surgiria muitos séculos depois. A
sua qualidade está na forma como entende a ruptura do poder temporal com
o espiritual, no desassombro do olhar que verteu sobre a política, os
seus protagonistas e agentes, redefinindo a razão de Estado “pela qual o
povo é apenas matéria plástica nas mãos do príncipe” – mas é mais
importante ainda por ser o mito em que críticos e historiadores o
elevaram.
Maquiavel
identifica
duas
forças opostas, uma das forças quer dominar, enquanto a outra não
quer ser dominada, "uma das quais provém de não desejar o povo
ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os
grandes dominar e oprimir o povo" (O
Príncipe, cap. IX).
O que
aceitamos pacificamente é que o modo de ver a política após Maquiavel
mudou: foi o primeiro a estabelecer a análise de Governo e de Estado
vendo-os
como
realmente são e não como deveriam ser. E essa é a sua capacidade
inovadora. Em paralelo, muitos citam “O
Príncipe” - uma
espécie de manual político para governantes que almejassem não apenas
manter-se no poder, mas ampliar as suas conquistas -
esquecidos de que o mesmo texto é apenas uma manifestação da obra, mais
vasta, do Autor – e que, sem a qual, não é possível entendê-lo. Não
coube a Maquiavel desconstruir – para usar uma palavra tão querida dos
textos atuais – mas analisar o que via na sua época, à sua volta, no
comportamento do poder e da elite que o detinha. É a leitura de quem
observa – não de quem transforma.
Encontra-se disponível, digitalizado, na Internet, a partir do original,
da biblioteca da Universidade de Michigan, o livro de Pasquale Villari,
Niccolò Machiavelli e o Suoi tempi, illustrati com nuovi documenti
onde se lê: “Aos ricos parecia que
O Príncipe fosse um documento
para ensinar o Duque a tirar-lhes o que tinham e aos pobres toda a
liberdade. Aos Piagnoni**, o livro parecia herético; aos bons,
desonesto; aos maus, pior e mais bravo do que eles próprios, de modo que
todos o odiavam”.
Implica
momentânea estranheza aceitar que neste conturbado e ainda não
quantificável início do século XXI, às voltas com os seus discursos
identitários e amedrontado pela falência das ideologias, do encontro do
homem que se afastou de si, deixando aparentemente de ser o centro das
suas prioridades mais prementes e sobretudo num período das certezas
económicas trocadas por uma crise ainda sem leitura completa, as ideias
de Nicolau Maquiavel, nascido na segunda metade do século XV, em
Florença, na Itália, voltem a ocupar espaço nas reflexões quotidianas.
Trata-se de um dos principais intelectuais do chamado período do
Renascimento. Isso podia justificar a curiosidade e o interesse – numa
perspetiva histórica ou comparatista – mas a sua atualidade transcende a
mera curiosidade. Maquiavel inaugurou o pensamento político moderno e
daí a projeção no pensamento político contemporâneo. Outra surpresa é
que a sua obra mais famosa, “O Príncipe”, não refletiu nenhuma leitura
do universal – mesmo do universal do seu tempo – mas foi produzida no
contexto político da Península Itálica muito conturbado, marcado por uma
constante instabilidade: eram muitas as disputas políticas pelo controlo
e manutenção dos domínios territoriais das cidades e estados,
configuração essencial das fronteiras da época.
Maquiavel, à moda Renascentista, procurou explicações junto aos
clássicos.
As Ideias de
Maquiavel, mesmo assim, devem ser entendidas então na sua geografia e no
pano de fundo de uma Europa daquele período, bem como do ponto de vista
das ideologias e do pensamento humano. O que opõe o Maquiavelismo da
atualidade é o respeito pelo Homem enquanto protagonista do seu destino.
É que no final da Idade Média retomava-se uma visão antropocêntrica do
mundo (o homem como medida de todas as coisas) presente outrora no
pensamento das civilizações mais antigas como a Grécia, a qual permitiu
o despontar de uma outra ideia política, que não apenas aquela
predominante no período medieval. O regresso ao humanismo iria propor na
política o regresso ao humanismo cívico, o que pressupõe a construção de
um diálogo político entre uma burguesia em ascensão desejosa de poder e
uma realeza detentora da coroa. É preciso lembrar que a formação do
Estado moderno se deu pela convergência de interesses entre reis e a
burguesia, marcando-se um momento importante para o desenvolvimento das
práticas comerciais e do capitalismo na Europa. Era o tempo de
questionar o poder absoluto dos reis ou de alguma dinastia, como os
Médici em Florença. Nascia uma elite burguesa com os seus próprios
interesses, com a exacerbação da ideia de liberdade individual.
Questionava-se o poder teocêntrico e desejava-se a existência de um
príncipe que, detentor das qualidades necessárias, isto é, da
virtú, poderia garantir a
estabilidade e defesa da sua cidade contra outras vizinhas. Entenda-se a
virtú como a habilidade de agir da maneira certa no momento certo.
Para Maquiavel a virtú é o
único modo de se chegar a glória da história. Para Maquiavel, “não cabe
nesta imagem a ideia da virtude cristã que prega uma bondade angelical
alcançada pela libertação das tentações terrenas, sempre à espera de
recompensas no céu. Ao contrário, o poder, a honra e a glória, típicas
tentações mundanas, são bens perseguidos e valorizados. O homem de
virtú pode consegui-los e por
eles luta”
Maquiavel
não era imoral (embora o seu livro tenha sido proibido pela Igreja), mas
colocava a ação política (construída pela soma da
virtú e da fortuna) em
primeiro plano, como uma área de ação autónoma levando a um rompimento
com a moral social. A conduta moral e a ideia de virtude como valor para
bem viver na sociedade não poderiam ser limitadoras da prática política.
O que se deve pensar é que o objetivo maior da política seria o de
manter a estabilidade social e do governo a todo custo, uma vez que o
contexto europeu era de guerras e disputas.
“Um
príncipe não deve, portanto, importar-se por ser considerado cruel se
isso for necessário para manter os seus súbditos unidos e com fé. Com
raras exceções, um príncipe tido como cruel é mais piedoso do que os que
por muita clemência deixam acontecer desordens que podem resultar em
assassinatos e rapinagem, porque essas consequências prejudicam todo um
povo, ao passo que as execuções que provêm desse príncipe ofendem apenas
alguns indivíduos” (MAQUIAVEL).
Dessa forma, a soberania do príncipe dependeria da sua prudência e
coragem para romper com a conduta social vigente, a qual seria incapaz
de mudar a natureza dos defeitos humanos.
Assim, a
originalidade de Maquiavel estaria em grande parte na forma como lidou
com essa questão moral e política, trazendo uma outra visão ao exercício
do poder outrora sacralizado por valores defendidos pela Igreja.
Considerado um dos pais da Ciência Política, a sua obra, já no século
XVI, tratava de questões ainda hoje importantes, como por exemplo a
legitimação do poder.
Em
qualquer de suas acepções, o maquiavelismo está associado à ideia de
perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Confunde-se
o (seu) mito com o da razão de Estado. E neste tempo alheio ao
Humanismo, e aos seus valores, onde
um homem-dúvida é incapaz de
saber qual será o próximo passo,
retorna com acuidade e sem
surpresa.
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