REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 50 | fevereiro-março | 2015

 
 

ALEXANDRE HONRADO

Maquiavel

– um príncipe da análise

Alexandre Honrado (Portugal). Historiador; Investigador (linha de investigação em Religião e Sociedade da Área de Ciências das Religiões da ULHT)

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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A um homem com dúvidas sucedeu um homem entregue  a si  mesmo e, a esse, um homem-dúvida incapaz de saber qual será o próximo passo.

Hoje, como no século XV, os paradigmas cruzam-se. Mas se no século XV a derrocada da economia feudal faz emergir o capitalismo, a derrocada do capitalismo faz emergir, nos nossos dias, a angústia do não previsto. O Estado absolutista firmou-se sobre as classes médias, nesse passado longínquo mas inspirador. O Estado de hoje, um pouco por toda a parte na economia ocidental, procura desesperadamente financiar-se com a classe média, diluindo-a num percurso esmagador e impensado, onde os impostos aplicados substituem a incapacidade de auto financiamento e geração de riqueza.  Todavia, as ideias de Maquiavel parecem atuais, apesar de todas as diferenças. Há um Homem antes e depois da Revolução Francesa (Deus afasta-se, o Cidadão quer substituí-lo ), assim como há um Homem antes e depois de Marx (o Cidadão afasta-se, o Homem passa a entender-se como um ser social histórico que possui a capacidade de trabalhar e desenvolver a produtividade do trabalho); como há um Homem antes e depois de Freud e de Nietzsche e de Darwin e de Althusser ou Raymond Aron, que escreveu o ensaio, “Maquiavel e Marx” - mas há um só homem político com e depois de Maquiavel. Um homem político que parece inalterado ao longo dos séculos.

De um modo que entendo afetivo, Maquiavel escreveu - "A ambição é uma paixão tão forte no coração do ser humano, que, mesmo que galguemos as mais altas posições, nunca nos sentimos satisfeitos." 

Interesso-me por Maquiavel, numa perspetiva de estudo situada no primeiro dos limiares possíveis para a História das Ideias: aquele em que são examinadas as ideias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos específicos. Esta definição ocorre-me como necessária. Quando interpreto Nicolau Maquiavel não falo de História Política nem de História Intelectual, mas das Ideias produzidas, agitadoras, capazes da viragem de um tempo – e de sobreviverem ao mesmo.

Tal como a linguagem freudiana, por exemplo, também a que resulta de Maquiavel entrou e instalou-se em certo discurso cultural, por vezes até ao nível menos sofisticado do mesmo: mais de quatro séculos nos separam da época em que ele viveu, o século XVI, e mesmo aceitando que muitos leram e comentaram a sua obra, há que relevar que é consideravelmente maior o número de pessoas que evoca o seu nome - ou pelo menos os termos que nele têm origem – do que aqueles que o conhecem na realidade. Maquiavélico e maquiavelismo são adjetivo e substantivo (no discurso erudito, no debate político, no quotidiano). Do mundo da política, onde afinal nasceu, ao universo das relações privadas, a popularidade mantém-se, pelo menos no uso, quase sem desgaste, de uma intenção bem definida: usar o nome para sinonimizar a palavra terrível, referente a comportamento, ou a uma teoria, ação ou procedimento firme nos seus propósitos. O mais vulgar, porém, é uma contradição condenável: Maquiavel, sempre defendeu a ética na política. O termo “maquiavélico” passou a ser usado para aquelas pessoas que praticam atos desleais (até mesmo violentos) para obter vantagens, manipulando as pessoas, o que é uma contradição.

A  interpretação maquiavélica da esfera política foi a que permitiu surgir a ideia de que “os fins justificam os meios”, embora não se possa atribuir literalmente essa frase a Maquiavel. Além disso, fez surgir no imaginário e no senso comum a ideia de que Maquiavel seria alguém sem escrúpulos, dando origem à expressão “maquiavélico” para designar algo ou alguém dotado de certa maldade, frio e calculista.

Nos “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, de 1513 a 1521, Maquiavel não só defende a forma de governo republicana com uma constituição mista, de acordo com o modelo da República de Roma Antiga, como defende também a necessidade de uma cultura política sem corrupção, pautada por princípios morais e éticos. Nunca defendeu o contrário, em nada do que escreveu.

Curiosamente, hoje Maquiavel é atual, não tendo escrito, todavia, nada de verdadeiramente genial. Pelo contrário, reduz-se a um provincianismo localizado, e esgota na intriga a imaginação política, sendo obcecado pela unidade italiana que, aliás, só surgiria muitos séculos depois. A sua qualidade está na forma como entende a ruptura do poder temporal com o espiritual, no desassombro do olhar que verteu sobre a política, os seus protagonistas e agentes, redefinindo a razão de Estado “pela qual o povo é apenas matéria plástica nas mãos do príncipe” – mas é mais importante ainda por ser o mito em que críticos e historiadores o elevaram.  

Maquiavel identifica duas forças opostas, uma das forças quer dominar, enquanto a outra não quer ser dominada, "uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo" (O Príncipe, cap. IX).

O que aceitamos pacificamente é que o modo de ver a política após Maquiavel mudou: foi o primeiro a estabelecer a análise de Governo e de Estado vendo-os como realmente são e não como deveriam ser. E essa é a sua capacidade inovadora. Em paralelo, muitos citam “O Príncipe” - uma espécie de manual político para governantes que almejassem não apenas manter-se no poder, mas ampliar as suas conquistas - esquecidos de que o mesmo texto é apenas uma manifestação da obra, mais vasta, do Autor – e que, sem a qual, não é possível entendê-lo. Não coube a Maquiavel desconstruir – para usar uma palavra tão querida dos textos atuais – mas analisar o que via na sua época, à sua volta, no comportamento do poder e da elite que o detinha. É a leitura de quem observa – não de quem transforma.

Encontra-se disponível, digitalizado, na Internet, a partir do original, da biblioteca da Universidade de Michigan, o livro de Pasquale Villari, Niccolò Machiavelli e o Suoi tempi, illustrati com nuovi documenti  onde se lê: “Aos ricos parecia que O Príncipe fosse um documento para ensinar o Duque a tirar-lhes o que tinham e aos pobres toda a liberdade. Aos Piagnoni**, o livro parecia herético; aos bons, desonesto; aos maus, pior e mais bravo do que eles próprios, de modo que todos o odiavam”.

Implica momentânea estranheza aceitar que neste conturbado e ainda não quantificável início do século XXI, às voltas com os seus discursos identitários e amedrontado pela falência das ideologias, do encontro do homem que se afastou de si, deixando aparentemente de ser o centro das suas prioridades mais prementes e sobretudo num período das certezas económicas trocadas por uma crise ainda sem leitura completa, as ideias de Nicolau Maquiavel, nascido na segunda metade do século XV, em Florença, na Itália, voltem a ocupar espaço nas reflexões quotidianas. Trata-se de um dos principais intelectuais do chamado período do Renascimento. Isso podia justificar a curiosidade e o interesse – numa perspetiva histórica ou comparatista – mas a sua atualidade transcende a mera curiosidade. Maquiavel inaugurou o pensamento político moderno e daí a projeção no pensamento político contemporâneo. Outra surpresa é que a sua obra mais famosa, “O Príncipe”, não refletiu nenhuma leitura do universal – mesmo do universal do seu tempo – mas foi produzida no contexto político da Península Itálica muito conturbado, marcado por uma constante instabilidade: eram muitas as disputas políticas pelo controlo e manutenção dos domínios territoriais das cidades e estados, configuração essencial das fronteiras da época.

Maquiavel, à moda Renascentista, procurou explicações junto aos clássicos.

As Ideias de Maquiavel, mesmo assim, devem ser entendidas então na sua geografia e no pano de fundo de uma Europa daquele período, bem como do ponto de vista das ideologias e do pensamento humano. O que opõe o Maquiavelismo da atualidade é o respeito pelo Homem enquanto protagonista do seu destino. É que no final da Idade Média retomava-se uma visão antropocêntrica do mundo (o homem como medida de todas as coisas) presente outrora no pensamento das civilizações mais antigas como a Grécia, a qual permitiu o despontar de uma outra ideia política, que não apenas aquela predominante no período medieval. O regresso ao humanismo iria propor na política o regresso ao humanismo cívico, o que pressupõe a construção de um diálogo político entre uma burguesia em ascensão desejosa de poder e uma realeza detentora da coroa. É preciso lembrar que a formação do Estado moderno se deu pela convergência de interesses entre reis e a burguesia, marcando-se um momento importante para o desenvolvimento das práticas comerciais e do capitalismo na Europa. Era o tempo de questionar o poder absoluto dos reis ou de alguma dinastia, como os Médici em Florença. Nascia uma elite burguesa com os seus próprios interesses, com a exacerbação da ideia de liberdade individual. Questionava-se o poder teocêntrico e desejava-se a existência de um príncipe que, detentor das qualidades necessárias, isto é, da virtú, poderia garantir a estabilidade e defesa da sua cidade contra outras vizinhas. Entenda-se a virtú como a habilidade de agir da maneira certa no momento certo. Para Maquiavel a virtú é o único modo de se chegar a glória da história. Para Maquiavel, “não cabe nesta imagem a ideia da virtude cristã que prega uma bondade angelical alcançada pela libertação das tentações terrenas, sempre à espera de recompensas no céu. Ao contrário, o poder, a honra e a glória, típicas tentações mundanas, são bens perseguidos e valorizados. O homem de virtú pode consegui-los e por eles luta”

Maquiavel não era imoral (embora o seu livro tenha sido proibido pela Igreja), mas colocava a ação política (construída pela soma da virtú e da fortuna) em primeiro plano, como uma área de ação autónoma levando a um rompimento com a moral social. A conduta moral e a ideia de virtude como valor para bem viver na sociedade não poderiam ser limitadoras da prática política. O que se deve pensar é que o objetivo maior da política seria o de manter a estabilidade social e do governo a todo custo, uma vez que o contexto europeu era de guerras e disputas.

“Um príncipe não deve, portanto, importar-se por ser considerado cruel se isso for necessário para manter os seus súbditos unidos e com fé. Com raras exceções, um príncipe tido como cruel é mais piedoso do que os que por muita clemência deixam acontecer desordens que podem resultar em assassinatos e rapinagem, porque essas consequências prejudicam todo um povo, ao passo que as execuções que provêm desse príncipe ofendem apenas alguns indivíduos”  (MAQUIAVEL). Dessa forma, a soberania do príncipe dependeria da sua prudência e coragem para romper com a conduta social vigente, a qual seria incapaz de mudar a natureza dos defeitos humanos.

Assim, a originalidade de Maquiavel estaria em grande parte na forma como lidou com essa questão moral e política, trazendo uma outra visão ao exercício do poder outrora sacralizado por valores defendidos pela Igreja. Considerado um dos pais da Ciência Política, a sua obra, já no século XVI, tratava de questões ainda hoje importantes, como por exemplo a legitimação do poder.

Em qualquer de suas acepções, o maquiavelismo está associado à ideia de perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Confunde-se o (seu) mito com o da razão de Estado. E neste tempo alheio ao Humanismo, e aos seus valores, onde um homem-dúvida é incapaz de saber qual será o próximo passo, retorna com acuidade e sem surpresa.

 

   
  ** Termo aplicado aos seguidores de Frei Girolano de Savanarola  e por generalização a “hipócritas” em geral.
 

 

© Maria Estela Guedes
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