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Parece pacífico, em alguns
filósofos contemporâneos, a distinção conceptual – fortemente alicerçada
em Lacan - entre Real e Realidade, surgindo-nos esta última como o
conjunto de elementos vividos e observáveis, enquanto o primeiro nos
aparece antes como o território estruturante e condicionador das
situações concretas e vivenciadas (Cf. Slavoj Zizek,
Violência, 2009, pp. 20-21).
Seguindo esta linha de raciocínio conseguir-se-á inferir: primeiro, que
o Real a analisar poderá apresentar aspectos contraditórios com a
Realidade que lhe é inerente; segundo, não existe, por conseguinte, um
Real único e homogéneo passível de ser abordado do mesmo modo pelas
várias áreas do saber, mas antes distintas conceções dele consentâneas
com os distintos olhares disciplinares que sobre elas se debruçam –
exemplo: o Real investigado pelas matemáticas acabou desembocando numa
linguagem artificial intraduzível pela linguagem natural, dando azo a
uma Realidade de onde a segunda, e seu respectivo código, foram banidos,
aliás, tal procedimento tem vindo a ser tentado nas Ciências Sociais e
Humanas, embora com êxitos muito mais duvidosos, vejam-se os casos da
Economia, da História e da Ciência Política (Cf. George Steiner,
Linguagem e Silêncio – Ensaios
sobre a Literatura, a Linguagem e o Inumano, 2014, pp. 36-44).
No caso da poesia, o Real de que ela
tem falado predominantemente ao longo dos séculos não tem escapado à
veemência do olhar analítico-descritivo, nem à necessidade de adequação
da linguagem ao Real por ela tido como concreto, e é na implementação
deste mesmo paradigma que Platão se apresenta como um marco fundamental
e fundante. Aliás, não deixa de ser curioso que tendo este filósofo
atribuído aos poetas uma nova conceção do Real (o da
Imitação), divergente da que
eles haviam possuído aquando dos pensadores originários, seja ele também
– no Livro X da República –
que os expulsa da cidade em nome de toda uma arquitectónica que até
então tinha sido alheia à poesia. O trabalho do poeta é, para Platão,
“uma espécie de jogo infantil” (Cf. Platão,
República, 1975, p. 333) e,
não tendo ele por fito a criação de objectos reais, nem tão-pouco um
saber baseado na fabricação ou no uso dos referidos objectos, apenas lhe
resta a mais baixa menoridade ontológica (Idem, 331 – 334). Com Platão a
Metafísica adquire foros de cidadania e é com ela que se implementa o
Sujeito e um Real assumidamente dicotómico como traves mestras do Saber
e do Ser, passando o real da Poesia e ser essa zona de sombras onde as
aparências se entrecruzam afastando os seres humanos da
verdadeira realidade – o
Inteligível. Com Platão
inicia-se o velamento do Real
poético, metamorfoseado agora num mero Real da Poesia onde “o imitador
não tem, portanto, nem ciência nem opinião recta no que respeita à
beleza e aos defeitos das coisas que imita.” (Idem, ibidem p 333). O
Real da poesia é agora o reino do ludíbrio, da gratuitidade, do lúdico
persistente jogando-se algures entre o erro deliberado e o
esquecimento do Ser. Inicia-se
aqui – não sem algumas contradições – um longo caminho que Aristóteles,
na Poética, virá cimentar.
A poesia, em Platão, encontra-se
intimamente ligada ao fazer, à acção. Diógenes Laércio, quanto a este
assunto, é bastante claro: existem, para este filósofo, três tipos de
saber: o prático, o poético e o teórico, “assim a arquitectura ou a
construção de barcos são ciências poéticas, já que delas resulta uma
obra criada “ (Cf. Diogéne Laerce,
Vie, doctrines et sentences des philosophes ilustres. 1 , 1965, p.
189). E é exactamente aqui que surge a inversão no pensamento ocidental
com o consequente velamento do
Real Poético tal como o diziam os pensadores originários: o Sujeito, a
Metafísica e a Subjectividade são agora os pólos instigadores da acção e
a poesia não é mais do que um artefacto produzido pela referida tríade.
Mas a hostilidade de Platão para com o
Real, segundo ele, vislumbrado pelos poetas, bem como para com a
Realidade por eles cantada, está longe da coerência que a Metafísica
recém-instalada para si advoga: os poetas visados por Platão são os que
vinham a ser veiculados pela tradição, sobretudo Homero e Hesíodo, até
porque nem tudo o que é escrito em verso pode ser entendido como poesia.
Aristóteles, na Poética (1447 b 16 – 23), viria a reiterar esta última asserção:
“(…) na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a
não ser a metrificação: aquele merece o nome de poeta, e este, o de
fisiólogo, mais do que o de poeta.”, convém acrescentar que Aristóteles,
ao longo desta obra, deixa escapar por várias vezes o seu enleio por
Homero ( Cf. 1448 b 33, 17 e 1459 a 29, 149) e pelos trágicos ( Cf. 1462
b 12, 184), o mesmo acontece com Platão, que, no Livro II da
República, não consegue
esconder a sua admiração por Ésquilo, aliás, Platão defende mesmo que o
ensino dos poetas deve ser ministrado aos guardiães da
pólis. Como entender, então, depois de tudo isto, a aversão dos
instauradores da metafísica ocidental aos poetas e à Realidade por estes
cantada? Maria da Penha Villela-Petit (Cf.
Kriterion: Revista de Filosofia,
nº 107, vol. 44) segue de perto a tese de Julia Annar ( Cf.
Introduction à la République de
Platon, PUF, 1994) que defende que o Livro X da
República, com a consequente defesa da expulsão dos poetas da
cidade, teria sido escrito antes de todos os outros livros da mesma
obra, daí alguma falta de concordância entre esse Livro X e todos os
outros relativa a tema em questão, por outro lado, esse estudo afirma o
que pode ser confirmado nos dois filósofos gregos, ou seja, para eles os
poetas, como a sua arte da
imitação, dariam uma visão incorrecta dos deuses, facto que viria a
ter consequências graves na educação dos jovens e, sobretudo, na
governação da cidade, no entanto, os danos da poesia poderiam ser
praticamente diminutos caso aqueles que a escutassem estivessem
imunizados com o respectivo antídoto (Cf.
República, 1975,
pp 324 e 334; Poética 1460 b 8, 161 – 1461 a 3,168 – 15, 170). Dito de outra
maneira – e enfatizando o título deste texto – os danos causados pelos
poetas na concepção do Real que acabava sendo instalada pela Metafísica,
poderiam ser torneados com alguma eficácia caso o
Sujeito, dotado de
Razão, usasse essas obras
apenas para exercitar o conhecimento discursivo (dianoia), visto desses imitadores jamais se poder esperar o acesso à
Verdade e à Justiça, pelo que se concluiria a sua vincada perigosidade
no interior da
pólis.
Assim emerge um Real da poesia,
fundamentado na Metafísica, na Subjectividade e num Sujeito produtor de
artefactos imitativos e de uma Realidade confinada às aparências. Assim
emerge, por conseguinte, um Real à disposição da Razão e dos Sentidos e
uma Realidade tida por concreta porque objectivável, analisável e
oferecendo-se passivamente a todas as modalidades de um
nomear que passará a ter o
ente como ponto de partida.
Estava consolidado, então, o corte com o olhar dos pensadores
originários que haviam precedido Platão e Aristóteles: a Palavra
passaria agora a ser uma das várias capacidades do sujeito e passaria
também a ser usada segundo critérios de eficácia. A própria produção do
poema terá então como finalidade uma mescla de respeito pelo rigor
metrificável com o deleite que pode vir a proporcionar. Tem sido este o
Real da poesia a predominar no ocidente, tem sido este o território onde
se tem movido grande parte da produção poética. Contudo, nesse continuum
poético-epistemológico, muitos têm sido os poetas que perfilharam
orientações ontologicamente distintas e cuja
escuta se tem centrado nessa
clareira onde o ser-sendo
se vai desvelando em seu
criptográfico modo, já que, nesta outra visão, aquilo que se mostra
fá-lo de modo velado; esses
poetas intuem que a Palavra não é coisa de sua posse, mas que lhes é
concedida por algo que os precede e que ante eles se
desvela em sua forma de
velar-se – esta era a trave
mestra do Real poético que marcou os pensadores originários e que a
Metafísica viria alterar, mas que, apesar de tudo, continuou irrompendo
– episodicamente - em poetas como Rilke, Holderlin, Novalis, Celan,
etc., e, entre os que têm vindo a escrever em português, em Ricardo
Reis, Teixeira de Pascoaes, Dora Ferreira da Silva e Natália Correia
(Cf. Miguel Real, O pensamento português contemporâneo 1890 – 2010, 2011, pp 806 –
822).
Nestes dois caminhos, discordantes mas
apesar de tudo paralelos, se tem inscrito a poesia do ocidente: o
paradigma platónico-aristotélico com os seus excessos e as suas
limitações e o paradigma originário-heideggeriano com a sua minuciosa
perscrutação e as suas insuficiências; um mais preocupado com o Real da
poesia, o outro tentado pela
autenticidade no seu modo de acesso ao Real poético, e é em torno
deste último que concluiremos citando as palavras de Manuel Antônio de
Castro (Cf. Poiesis, Sujeito e
Metafísica in “A
construção poética do real”, 2004, pp 64 – 68) quando relaciona
acção-que-produz, desvelamento e
verdade: “ A
poiesis enquanto pro-dução
com-duz do velamento para o desvelamento. A este processo (agir da
poiesis), os gregos chamaram
Aletheia. E nisso consiste
a verdade. Portanto, a verdade como verdade, como
aletheia, é
poética. Algo verdadeiro
consiste no ser vigente enquanto
poiesis. (…) A
poiesis, por isso mesmo, é
o vigor da ambiguidade/ polemos da
physis, da clareira, da
verdade (aletheia),
da abertura do livre aberto, do iluminar da clareira e do próprio
on-sendo. A
poiesis é ambígua, é
polemos, agir e não-agir.
(…) A
poiesis é, pois, como
aletheia, a verdade
enquanto não-verdade de toda verdade.”
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