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Djozini! Mawuyangwè
(1)
O livro que Dra.
Maria Carlos oferece aos moçambicanos é uma narrativa que se tece com
depoimentos vários, daí ter o título:
uma vida a várias vozes. Este
livro traz-nos também documentação que vai desde uma carta manuscrita,
datada de 1925 ao SMS e ao email
dos nossos dias.
A autora escreve-o
seguindo as recomendações desejadas pelo biografado, em vida, porque
aborda a história deste começando pelas raízes da sua árvore. Ao ter
feito aquele reparo, Monsenhor Joaquim Mabuiangue não fala de
pré-história, antes sim, de uma
proto-história, isto é, aquele ADN que nos está no
ser, ainda antes de começarmos
a nossa própria história. Uma
proto-história que carregamos sem que escolhamos, mas que imprime,
no nosso carácter, um modo de ser e de estar no mundo.
Neste livro pudemos
depreender como exemplo dessa
proto-história a aceitação que os pais de Monsenhor Joaquim
Mabuiange tiveram em receber o Evangelho da Tradição Católica, sem nunca
o renunciarem ou o porem em causa. Esta aceitação não significa
submissão. Antropologicamente, tal como o afirma Altuna (2006:366) o
povo bantu ao qual muitas vezes se designou de não religioso é, “na
realidade dos povos mais religiosos da face da Terra”. Para o autor, (ibidem:2006:367):
a tradição banta apresenta uma visão espiritualista da existência
fundamental no convencimento-vivência da intercomunhão entre o mundo
visível e o invisível, onde Deus está presente como causa primeira de
ambos.
Os pais de Monsenhor
Joaquim Mabuiangue estabeleceram uma intercomunhão entre a Religião
Tradicional Bantu que professavam à Tradição Católica.
Na Pg. 21 do livro em
apresentação Monsenhor Joaquim Mabuiangue refere: “sem proto-história
não há história. Sem raízes não há árvores, não há vida”. Ao fazê-lo
demonstra a consciência que tem de que a história sobre a sua vida não
ficaria completa se não se considerasse a raiz e a árvore de que é
originário. Quero realçar a beleza da metáfora da árvore.
Ela faz-me lembrar a
história do nome na Tradição Africana. Segundo Dom Adriano Langa (2),
nomear uma criança é tarefa da família e essa escolha deve ter em conta
a história dos seus antepassados, passando pela dos seus pais e ele
próprio; pois deve ser uma profecia do futuro desta criança. Monsenhor
Joaquim Mabuiangue recebeu da família o nome do pai de sua mãe: Chigodo,
nome changana que em português significa tronco. E pode-se constatar, a
partir do livro que o homenageado interpreta
esse papel, cumprindo a profecia do seu nome,
quiçá? Além disso, a partir
dos vários depoimentos, podemos perceber que em vida foi polivalente,
realizando também o papel de tronco.
O livro aborda a
temática da identidade por
integrar a tríade: como sou,
como me vejo e como sou visto
pelos outros. Quer dizer que o
eu só faz sentido, na medida em que existem os
outros.
O
como sou é constituído pelas
inúmeras influências que vou sofrendo na sociedade, a partir de casa, a
chamada socialização primária
(que ocorre em casa); até a
Escola, ao Bairro, ao Local de Trabalho, a Igreja,
etc, etc, onde decorre a
socialização secundária. Assim, a nossa
identidade é atravessada por
constantes mudanças, pois mutabilidade é intrínseca à ela.
O
como me vejo e como sou visto
pelos outros fazem parte da avaliação, característica que permeia a
identidade. Estes aspectos marcam toda a nossa vida, do nascer, até
ao morrer.
Do que se pode
depreender é que Monsenhor Joaquim Mabuiangue se assume, fruto de uma
grande árvore que são os seus antepassados. E, pedido que fez para que
se contasse a sua história a partir das raízes
sugere-nos a avaliação que faz de si, o que corresponde ao
como me vejo na tríade a que
me referi. Sendo fruto dessa árvore Monsenhor Joaquim Mabuiangue
demostra-o na sua preocupação com o diálogo ecuménico de que falaremos
mais adiante.
Como é que o
Monsenhor Joaquim Mabuiangue é visto pelos
outros, nesta obra? Ou,
voltando a tríade: como sou visto
pelos outros?
Comecemos pela
perspectiva do Cónego Joaquim Boavida, missionário que viveu em
Malehice, entre 1909 e a década de 70, que nos mostra que a
identidade é mutável. Um
exemplo esclarecedor desse facto deste aspecto pode ser encontrado, de
modo óbvio e esclarecedor, na carta que este escreve ao Bispo Augusto e
Prelado de Moçambique, em 1 de Abril de 1925, referindo-se ao pai de
Monsenhor Joaquim Mabuiangue, o Professor António Mabuiangue:
“[…]Ex.mo Rev.mo Bispo de Augusta e Prelado de
Moçambique. Tendo o assalariado Pedro Bila manifestada vontade decidida
de sair da missão, por ter encontrado serviço mais remunerador, rogo a
Excia Rev.ma se digne nomear o indígena António
Mabuiangue para o substituir. Este indígena foi educado na missão. […]
Certeza haverá de longa permanência ao serviço da missão, pois o preto,
não tendo a dedicação que é sempre garantida de longa permanência em
qualquer lugar ou serviço está sempre pronto a trocar o lugar que tem
por outro que lhe dê menos trabalho e maior renumeração”. Pgs. 26 e 27.
Como se pode observar
o Cónego trata o Professor António por “indígena”, “preto”. Passados
cerca de 40 anos, numa carta dirigida ao seminarista Joaquim Mabuiangue
escreve, pg. 60:
“Na minha vida, já tão longa, de missionário, infelizmente se podem
contar pelos dedos os naturais que encontrei verdadeiramente gratos aos
favores de mim recebidos. Dentre estes ainda sobressaem três pessoas:
teu pai, tua tia Isaura, e teu tio Jaime Mandlate. Por mais anos que
Deus me dê ainda, já mais os poderei esquecer. Para mim, valem como os
melhores europeus. Eu só ambiciono que tu possas encarnar os sentimentos
que, para mim, tanto os distinguem. Muitos autóctones dos que passaram
por esta missão gozam de lugares de destaque e auferem bons proveitos,
mas quanto se situam muito abaixo do teu pai: sincero, humilde,
prestável e fervoroso crente, conquista com a sua franqueza a sua
sociabilidade e a sua bondade”.
Nesta citação
distingue-se, na linguagem e nos sentimentos, a mudança que o convívio
introduz no modo de ver o Professor António. De “indígena” e “preto”, o
Cónego Joaquim Boavida passa a utilizar expressões como: “naturais” e
“autóctones”. O termo de comparação continua a ser “os europeus”. E para
exprimir a admiração e amizade pelo seu colaborador, desta feita, o
termo de comparação é o exemplo de vida e de formação humana para o
seminarista Joaquim, que deve ser apreendido a partir das qualidades do
seu pai.
Um outro ponto de
vista pode ser encontrado lendo-se o depoimento do Sr. Daniel Cuambe,
sobrinho do biografado, que aponta o tio como quem incentivou jovens
moçambicanos a desempenharem o exercício da cidadania, demonstrando a
sua competência e capacidade em construírem a sociedade moçambicana mais
justa e mais habitável, participando em diferentes níveis: económico,
político, cultural ou religioso; algo que marca este sobrinho na sua
carreira profissional de jornalista.
Este jornalista
sublinha o facto de Monsenhor Joaquim Mabuiangue ter
moçambicanizado a Igreja no
nosso país, introduzindo a utilização das línguas moçambicanas durante a
missa, através de cânticos nessas línguas e do uso de instrumentos
musicais africanos na liturgia. Na óptica de Daniel Cuambe: “tudo isso
era novo para a Igreja na altura”, c.f. Pg. 131.
A questão do diálogo
entre intervenientes em processos sociais é também referida por Padre
Jaime dos Anjos, afirmando que, ao leccionar a disciplina de Direito
Canónico, Monsenhor Joaquim Mabuiangue apresentava assuntos que aliavam
o conhecimento da Sagrada Escritura ao lado humano e não apenas
aplicação da lei, pela lei, usando o
outro como mero receptor. Este
padre aponta como exemplo o acompanhamento das famílias quando perdem um
ente querido e o convívio com as famílias antes do baptismo ou a
entrevista ao crismando, família e padrinhos, antes do sacramento.
A
inculturação volta a ser
mencionada por Padre Jaime ao frisar a importância que Monsenhor Joaquim
Mabuiangue dava a convivência entre algumas tradições da Igreja Católica
e da Cultura Tradicional moçambicana, ao “revestir a Igreja em
Moçambique com uma roupagem e
identidade próprias”, pg. 124. E aponta como exemplo desta
inculturação a participação dos pais dos sacerdotes na cerimónia da
sua ordenação, na qual os pais “entregam uma catana [aos filhos] e
dizem: meu filho, entrego-te uma catana, vais a partir de hoje desbravar
os caminhos da pastoral”, pg. 124. Neste mesmo acto são também entregues
a estes filhos outros símbolos africanos que o ajudarão na sua nova
missão sacerdotal.
Os símbolos africanos
remetem cada uma a sua origem, à sua
identidade primeira, a
proto-história colectiva, não
é um elemento folclórico, um elemento bonito de decoração. É intrínseco
a cultura. Na celebração dos
fundamentos e na afirmação desta
identidade, como contributo único para viver o Evangelho, o
Monsenhor apresenta-se como “pioneiro” como o sublinhará D. Adriano
Langa, pg. 112.
Considerando o
pensamento de Bispo Adriano Langa, mencionado anteriormente, Monsenhor
Joaquim Mabuiangue, pelo seu percurso, não trai os desejos e anseios da
família, nem do seu nome Chigodo. Ele tornou-se tronco, ou seja foi a
espinha dorsal na introdução de pequenas comunidades cristãs (3) ao jeito do que
conheceu na sua tradição, como o diz Dom Alexandre dos Santos, pg.116.
Para Dom Adriano
Langa, estas comunidades permitiram: “a participação dos leigos na vida
da Igreja” e a assistência e orientação das famílias no aprofundamento e
celebração da fé, c.f. pg. 114.
O Depoimento de Dom
Dinis Sengulane, neste livro, mostra-nos que Monsenhor Joaquim
Mabuiangue se dedicou afincadamente ao
diálogo ecuménico. Um dos
exemplos que nos apresenta é a emoção que teve e a admiração que passou
a nutrir por Monsenhor Joaquim Mabuiangue, após este tê-lo convidado a
presidir uma celebração de Acção de Graças pelo primeiro ou segundo
aniversário da Independência de Moçambique (o Bispo não se recorda), mas
refere que o que mais o tocou foi o facto de Monsenhor Joaquim
Mabuiangue, embora tendo mais experiência como padre, convidou-o para
aquela celebração, numa altura em que acabava de ser ordenado Bispo de
uma outra confissão religiosa, com apenas 32 anos de idade.
Esta questão do
diálogo ecuménico é premente, nos dias que correm; pelo que
sugiro que leiam ainda e com
muita atenção o depoimento da Dona Madalena Braz, paroquiana da Igreja
Santo António da Malhangalene, que refere ter vivido durante muito tempo
com o medo e desconfiança de pessoas de outras confissões religiosas,
mas aprendeu com Monsenhor Joaquim Mabuiangue a riqueza que pode
resultar no convívio entre diferentes. Não posso deixar de referir,
porque a mim também me toca, o depoimento no qual ela refere dois
aspectos importantes na acção de Monsenhor: o acesso dos católicos à
Bíblia e a preparação de mulheres como leitoras, pg. 91 e 92.
Recomendo ainda a leitura do
depoimento de Dr. Ussumane Aly Dauto, muçulmano, antigo Ministro do
Interior e da Justiça, que sublinha ter aprendido de Monsenhor Joaquim
Mabuiangue que pessoas diferentes confissões religiosas e diferentes
culturas podem viver juntas e aprender umas das outras, cf. Pgs.
152-155.
São muitos os feitos
do nosso homenageado proponho, vivamente, que sejam estudados a partir
do livro, pois não poderei esgotá-los todos nesta intervenção.
Não gostava de
terminar sem me referir ao trabalho da autora deste livro, Dra. Maria
Carlos Ramos, que para além de outras questões, alerta-nos para três
grandes dimensões relacionadas com a personalidade e formação do
Monsenhor Joaquim Mabuiangue:
A primeira, que passa
pela forma como os capítulos estão estruturados, todos começam com um
pequeno texto bíblico em jeito de luz que se faz sobre a vida do
Monsenhor Joaquim Mabuiangue, esses textos revelam as preocupações
espirituais do biografado. Antecedendo, no livro, a fala de Monsenhor
Joaquim Mabuiangue, demonstram uma profunda convivência deste com
aqueles, revelando uma dimensão espiritual e que nos é confirmada pela
carta que escreve ao seu irmão Silvestre, quando se encontra doente. A
carta a Silvestre para além de uma imensa reverência ao seu irmão, a
quem trata por você, está impregnada de fé e esperança que o habita. Fé
e esperança que é enraizada nos textos bíblicos que recomenda como
leitura e oração ao irmão.
Outro elemento que
espelha a personalidade e formação de Monsenhor, e que para mim foi
novidade, porque nunca andei num seminário, é o seu tempo de seminarista
tão detalhadamente ilustrado pelo Sr. Fabião Ginja, ex. colega e amigo
de Monsenhor. O Ritmo e a disciplina descritos foram, com certeza,
elementos que formaram e in-formaram a personalidade de Monsenhor e que
o acompanharam na sua vida de estudante - brilhante que foi!, c.f. pg 78
– e na sua vida como sacerdote.
A exigência e o rigor
são duas características assinalada por vários depoimentos, assim como a
sua fidelidade e amor a Igreja; sem que por isso deixasse de ser um
homem aberto e dialogante, como já o referi na relação com outras
igrejas, com outras entidades públicas e no diálogo permanente com a sua
raiz.
A segunda dimensão,
chamar-lhe-ei da ética do cuidado pelo outro. Uma prática que temos
vindo a perder com a pressa e o desejo de nos tornarmos modernos,
“líquidos”, como afirma Bauman (2003) (4).
Se existe contributo antropológico e espiritual que Moçambique tem para
dar ao mundo são estes valores impressos em: “a Muyakelani i xaka”, ou
seja os vizinhos são família, cf. Pg. 41, ensinamento que o Monsenhor
Joaquim Mabuiangue tão bem fez passar e que está presente nos diferentes
depoimentos.
E tão urgente como o
dirá o antigo presidente de Moçambique, Joaquim Chissano ao afirmar:
“[…] Éramos muito vizinhos. Muito vizinhos. […] com o andar do tempo,
nós os jovens começamos a chamar-nos primos, e aos nossos pais
chamávamos tios. Mas, nenhum de nós sabia porquê. […] A vizinhança, por
razões profissionais, a relação de professores, a amizade, é que
reforçam esta familiaridade”. Pgs 42-43.
A terceira dimensão é
o apelo para a preservação da
cultura de tradição oral, a qual Monsenhor Joaquim Mabuiangue
respeitava e cultuava bastante, por assentar no exercício da memória e
no convívio entre as gerações a fim de se guardar a história e a cultura
para os vindouros. Esse facto é demonstrado na capa e de modo gritante
pelo facto de ele nunca se ter prestado a escrever, mas de fazer questão
de passar o testemunho.
Mesmo a terminar,
gostava de dizer que, para mim, Monsenhor Joaquim Mabuiangue é um homem
do Futuro. Marcou a geração que lhe foi contemporânea, facto que ser
lido a partir de outros padres e seminaristas com que privou. Marcou
também as gerações que se seguiram e atrevo-me a afirmar que marcará as
gerações futuras, isto porque, hoje nos preocupamos com a questão
interculturalidade e do
ecumenismo, ie, com o diálogo
entre culturas e religiões.
A nossa Agenda
Nacional 2025 espelha o facto de que desejamos estabelecer um pacto de
convivência entre pessoas de diferentes culturas, o que quer dizer que
já ficou claro, entre nós, que ainda somos um país que ainda procura
viver esse fenómeno com mais plenitude. Como leiga, e pelo que posso
depreender, a Igreja tem-se preocupado com o diálogo com
outras confissões religiosas.
Tanto a
interculturalidade, como o
ecumenismo constituem objeto de procura constante por parte de
Monsenhor Joaquim Mabuiangue, mas uma vez se tratar de princípios
difíceis de alcançar, ele foi-nos ensinando a cultivá-los através dos
caminhos que calcorreou, que embora de um modo discreto, tocou a vida de
muitos moçambicanos e não só, de pessoas como Dra. Maria
Carlos Ramos que, de modo perspicaz, se dedicou a ler a História social
e religiosa do nosso país e se preocupou no convívio de muito de perto
com o Monsenhor, com a sua família e com os que com ele privaram, a fim
de tornar possível a existência deste livro.
Há um trabalho de
casa que fica para cada um de nós: o de continuarmos a trilhar caminhos
para tornar realidade o relacionamento enriquecedor entre culturas e
religiões. Um outro trabalho de casa que se pode inferir, a partir deste
livro é que, a família Mabuiangue e a de cada um de nós, dediquem algum
tempo ao livro de “Assentos daFamília”, coisa rara entre nós, mas que é
sobretudo importante que se continue a contar o
karingana da vida dos filhos
de Moçambique.
Da leitura deste
livro fica-me a pena de não ter conhecido mais de perto o Monsenhor
Mabuiangue. Sinto que perdi, e que perco de cada vez que um homem
extraordinário morre, a oportunidade de saber mais de mim, de crescer
mais como pessoa e como cristã. Mas porque para nós a morte não é um
fim, o contacto com este livro leva-me a desejar conhecer melhor o
Monsenhor Joaquim Mabuiangue naquilo que foram as marcas que deixou no
nosso tempo. Um desafio para os investigadores e para os amantes desta
terra.
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