REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezº 2014-janº 2015

 
 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

João César Monteiro:

«Eu não sou abjeccionista, sou abominacionista!

Foto: Ed. Guimarães    

Maria Estela Guedes. Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.            

 

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  Na zona do Príncipe Real e museus da Politécnica, Bairro Alto, em Lisboa, João César Monteiro era uma figura bem conhecida. Com frequência tomava café na Cister ou na Alsaciana com Margarida Gil e outros amigos. Com a sua figura de Nosferatu, era improvável passar despercebido.

Morou por ali uns tempos, o lugar deu-lhe belos cenários para filmes. "Vai e vem" traça o percurso do autocarro 100 que vai até ao Palácio de São Bento, na base de cujas escadarias temos a lancinante lição do protagonista a uma deputada sobre como fazer o brochim aos colegas políticos; uma repetitiva cena de um garoto a passar de bicicleta à frente do ator/realizador, mostra-o sentado num banco do jardim do Príncipe Real, tendo nas costas o famoso cedro, considerado a mais antiga árvore de Lisboa. A sua longa entrevista sobre Branca de Neve, filme quase sem imagens, a cinzentos que se pretendia fossem negros, só com áudio, decorre no Jardim Botânico, onde outras botânicas, noutros filmes, também sairam da sua vegetalia para serem sacudidas pela bipolaridade frenética da imaginação deste cineasta.

Por bipolaridade entenda-se a extrema distância entre as cargas positiva e negativa dos temas obsessivos com que se tecem filmes tão subversivos, tão agressivos para os regimes vigentes, e o plural incide também num pós-25 de Abril que não cumpriu as expectativas de uma democracia plena e de um estatuto de viver acima do miserabilismo moral e intelectual das classes possidente e política. Daí o olho como signo dominante na paisagem fílmica, na sua extremada  valia semântica: de um lado o olho de Deus, que pode ser o olho de João de Deus (personagem da trilogia, interpretada por João César Monteiro: Recordações da casa amarela, As bodas de Deus e A comédia de Deus), ou olho de Hórus, na sua complexidade de origem: quem é que vê tudo o que fazemos? Que Deus? E de outro lado o olho de Bataille, olho cego, sagrado também, que dá lugar a um comentário dos mais irreverentes, para não dizer outra coisa, salvo erro no primeiro filme da trilogia, quando João de Deus conta que a menina lhe suplicara que não a desgraçasse, e então ele diz, generoso, que a deixara na sua virgindade, só lhe tinha metido o dedo no dito olho e por ali se tinham ficado.

Esta questão é centralíssima, haja em vista, por exemplo, as sequências que se desenrolam no Hospital Miguel Bombarda, com o louco João de Deus a revelar o panóptico, correndo em círculo. Raros hospitais dispunham desse dispositivo arquitetónico, que permitia a um vigilante tudo e todos ver, uma das razões por que o Miguel Bombarda merece ter sido salvo e passado a museu. 

O autor refere, na entrevista sobre Branca de Neve, que a ideia de fazer o filme sem imagens põe em ato o projecto de filmar do ponto de vista do olho cego. Vamos usar os termos exatos: ele declara que em Branca de Neve  usou a perspetiva do olho do cu. Sendo cego, tudo no filme para ele seria negro. Neste lado da cegueira temos também a personagem de Joaninha, a lembrar a Joaninha dos olhos verdes das Viagens na minha terra, que é cega.

Não digo nada de novo ao falar da tensão entre extremos, já João Benard da Costa, o seu talvez mais íntimo crítico, ator numa cena de resturante da trilogia, a definiu com o título comentado, Vai e vem. Esse vai e vem vem desde os primeiros filmes, inspirados por lendas e temas da cultura tradicional portuguesa, ou pela poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, documentada em imagens que espelham a pureza e transparência da sua linguagem, vem desde aí e vai até àquelas cenas cuja abjeção, ou abominação, nos forçam até a desviar o olhar, nos filmes mais tardios.

Podem os temas obsessivos vir de mais longe, da poesia, se bem que João César Monteiro não seja conhecido como poeta. Dá-se entretanto o caso de a sua obra escrita ter começado a ser reeditada e editada pela primeira vez, de modo que é útil remontar às origens, embora o autor tenha renegado o seu primeiro livro, Corpo submerso, em edição do Autor, Lisboa, 1959, tinha ele 20 anos ou não os fizera ainda. Uma colagem bem surrealista e uma citação de André Malraux, sem depreciar o resto, tilintam no balcão dos valores como moedas de ouro para estabelecimento de origens de imaginações e procedimentos. Remate da citação: tout homme rêve d'être dieu.

O que move o homem, diz Malraux, não é o desejo de governar, é um desejo de ir além da condição humana. O vadio e pedinte João de Deus, que recebe notícias (e uma mala cheia de dinheiro) de um "verdadeiro mensageiro d'Ele", n'As Bodas de Deus, em contracena com Luís Miguel Cintra, é assim a expressão que o autor encontrou para realizar esse sonho de ser mais que homem, de abrir as asas num céu superior, também este obsessivo em toda a obra, quer em imagens de céu com nuvens ou noturno, quer na representação teatral do Céu em Le bassin de John Wayne. Para voltar a Branca de Neve, filme quase sem imagens, só écran negro, naquele "quase" cabem alguns planos de céu azul. O óbvio é sempre mais invisível que o obtuso, por isso anoto, já fora de tempo, que nada como a Branca de Neve em negro para exemplificar a bipolaridade de que venho falando.

Mais tópicos originais em Corpo submerso, cujo corpo de poemas mais substancial é constituído pelo "Canto fúnebre por Federico García Lorca" (a morte deste homem é das coisas mais abomináveis que se possam conceber, se realmente o Exército permitiu que fossem disparados "tiros en el culo por maricón"), e desta origem transitaram para a foz de outras obras, a água e a música. João César Monteiro era um melómano, de orelha tão amante de extremos como de olho: de um lado a música clássica, do outro o "Quero cheirar teu bacalhau", de Quim Barreiros. A água liga-se ao olhar, ao olho, penetra as temáticas da sujidade e da limpeza, da alma ligada a Ofélia e Narciso, refletindo-se na infinidade de apontamentos com espelhos, para além da mais óbvia representação no mar e nas ondas do Tejo, de onde ele filmou inúmeras perspetivas de Lisboa. Esse Corpo submerso, suicida, tem depois a contrapartida n' O último mergulho, com o suicídio do velho nas águas do Tejo. Mas vejamos um excerto do livro, de que hoje devem restar poucos exemplares, sendo por isso uma relíquia. Seja o poema I do "Canto fúnebre por Federico García Lorca":

a velha passou um limão
na sua testa de azeitona
e pelos seus olhos desfilaram
paisagens límpidas de ternura
já os assassinos caiaram
a branca parede em que o encostaram
já as balas da morte rasgaram
o seu corpo musical e moreno de cigano
formando um negro charco de sangue
junto das arenas silenciosas e crispadas


Para voltar ao projeto de edição e reedição dos textos escritos de João César Monteiro, saiu o primeiro volume, ilustrado, Obra escrita 1 (Editora Letra Livre, Lisboa, 2014), com sinopses, planificações e sobreposições (nem toda a planificação é só isso, há anotações posteriores à realização) dos filmes Quem espera por sapatos de defunto morre descalço, A sagrada família, Veredas e Silvestre. O primeiro tinha sido publicado na &etc, editora de Vítor Silva Tavares, que publicou os três livros de João César Monteiro anteriores: Morituri te salutant, em 1974, Le Bassin de John Wayne/As Bodas de Deus, em 1998, e um precioso diário redigido em Paris, Uma Semana Noutra Cidade, em 1999.

João César Monteiro, o mais abjecionista dos nossos surrealistas, não é uma figura a reter e a lembrar por causa disso. Ele reclamava para si, e por isso só aceitava, a filiação em si próprio. Profundamente individualista, com méritos à altura, só reclamou o que lhe pertencia por direito: ele é uma figura absolutamente original e singular, com rasgos geniais, nas nossas artes. E é-o apesar de tanta citação, tanta referência, tanta colagem a outros, desde Murnau e Carl Dreyer até Camões e André Breton, desde Godard a João Botelho, cujo título, Conversa acabada, transmutou satiricamente em Conserva acabada. Luiz Pacheco, ao pé deste Lúcifer lisboeta, era um santo. Amigos, ambos frequentaram os cafés Gelo e Montecarlo e outros estaminés surrealistas.

A propósito, conto um episódio religante: uma vez visitei o Luiz Pacheco quando ele estava num lar ali na praça do Príncipe Real, onde tanto filmou e fumou João César Monteiro. Mal cheguei, desatou numa ininterrupta conversa que me deu dores de cabeça e da qual pouco retive. A dado passo, comenta que está bem de saúde, a não ser a funda que usava. Aquilo perturbou-me um bocado, era um pormenor demasiado íntimo para a nossa relação de escritas, e que eu mais adivinhei do que assimilei, pois não tinha conhecimento da existência de tais objetos. Ora nas Recordações da casa amarela, a certa altura João de Deus vai ao médico queixar-se dos tomates inchados e etc.. Depois vemos parte do que o médico receitara: a tal funda.

Obra com funda para segurar os tomates, sim, e com alturas de abissal beleza, passe a contradição, sobretudo nas imagens mais usadas por este cineasta pouco amante dos grandes planos: as distantes, como num dos últimos planos de À flor do mar, quando o filme vai acabando e só se vê, de noite, lá longe, o esboço da casa, com as janelas iluminadas, e as minúsculas figurinhas a dançar em frente da porta. O mal comportado João César Monteiro foi um desses artistas iluminados pelo Delta radiante, olho de Hórus ou olho de Deus.



Maria Estela Guedes . Odivelas, 30.11.2014
   
  JOÃO CÉSAR MONTEIRO NO YOU TUBE 
   
   
   
   
  O olho de Deus, na clássica representação maçónica 
   
   
  Joaninha, a menina cega, d'As bodas de Deus 
   
   
  Aula de natação com maestro 
   
   
  João César Monteiro, no Jardim Botânico de Lisboa, explica que o facto de Branca de Neve ser um filme sem imagens decorre de ter adotado a perspetiva do olho cego.
   
  Biobibliografia e filmografia na Wikipédia:

 http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_C%C3%A9sar_Monteiro
 

 

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