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		Aquilo que afirma 
		uma escrita, qualquer que seja, é a singularidade com que ela se veste, 
		a forma como explora os conteúdos da sua realidade. Só desse modo é que 
		ela pode ser universal, isto é, quando 
		parte da sua singularidade. É nesse contexto que a escrita de Carlos 
		Paradona Rufino Roque, neste caso, “Tchanaze a donzela de Sena” se 
		afirma, nessa sua tentativa de vincar alguns traços da nossa 
		moçambicanidade através desse mergulho a esse mundo desconhecido, mágico 
		e incompreensível para nós, simples mortais. Fá-lo sem entrar nesse 
		exercício folclórico a que alguma escrita desonesta se socorre com vista 
		a alcançar uma visibilidade que acaba sendo grotesca, anedótica e 
		efémera. Carlos Paradona não vai por esse caminho, apenas recria as 
		histórias inspiradas na realidade sugerida pelo Sena, onde o realismo 
		fantástico predomina, escrevendo, como o disse a escritora moçambicana 
		Paulina Chiziane, de modo a levar o leitor a uma viagem por mundos 
		desconhecidos, para trazer novas visões e colocar à luz, saberes ocultos 
		ou adormecidos.      
		 
		A estória do 
		livro tem como epicentro Sena, onde Tchanaze, eleita a mulher mais 
		desejada de entre todas as mulheres, aquela que foi fogo e lume dos 
		corações dos homens de Sena, e também de Mutarara, passando por Murraça, 
		Chipanga, Caia e mesmo até Cheringoma, vivia com os seus. Mas Tchanaze 
		não só conquistou o coração dos vivos como também dos espíritos que 
		jaziam no chão de Sena, seduzidos pela beleza do seu corpo, pelo brilho 
		das suas missangas e pela apetência da sua virgindade. O cenário do 
		livro decorre entre Inhangoma, Gorongoza, como também em Kumalolo, zona 
		situada abaixo e a nascente de Sena, mesmo junto de Zambeze, próximo de 
		Caia, santuário dos maiores feiticeiros e bruxos, os quais se encarnavam 
		nas vidas de pessoas já falecidas e que ditavam a sorte das pessoas que 
		habitavam aquele lugar. Uma maldição engendrada por gente maldosa fez 
		com que Tchanaze contraísse 
		n’fucua, doença mortal que se contrai pela maldição dos espíritos 
		que habitam o vale de Zambeze. O quadro que este livro narra é denso, 
		assustador, angustiante, quase macabro, e que talvez por isso prende o 
		leitor da primeira até à última página. É a estória do inconformismo 
		perante a morte de Tchanaze e o retratar de todos ritos e exorcismos que 
		culminarão, mais tarde, com a ressurreição da donzela mais bonita das 
		terras de Sena. Como disse a escritora Paulina Chiziane, este livro, 
		referindo-se a «Tchanaze a Donzela de Sena», mostra que a beleza 
		moçambicana é cultura, que deve estar acima da beleza monótona das 
		telenovelas. Paulina Chiziane afirma que através da leitura de 
		«Tchanaze», experimentou mergulhar nos saberes escondidos na gruta dos 
		tempos. Diz ainda a escritora: «Ganhei nova visão da existência, que 
		sempre nos ocultam sob a capa de superstição. Debati novos conceitos de 
		vida, porque entre nós bantu, os vivos, os mortos, o visível, se 
		entrelaçam na macabra dança do quotidiano».                
		 
		A escrita de 
		Carlos Paradona, aquela que encontramos nestas quase duzentas páginas, 
		traz o cheiro da nossa oralidade e a inesgotabilidade das nossas 
		tradições, maquiavélicas ou não, reais algumas, sobrenaturais outras, e 
		que nos faz imaginarmos alguém que sentado a roda de uma fogueira, 
		algures, nas terras de Sofala, conta estórias que enriquecem o 
		imaginário de quem as escuta. É uma escrita sem nenhuns pretensiosismos. 
		Sem excessivas metáforas. Límpida. Transparente. Sedutora. De um 
		verdadeiro contador de estórias. Como se disse, a escrita de Paradona é 
		simples. Nada o move para a complexidade discursiva, mesmo que a 
		complexidade da história que nos conta o sugira. A história, refiro-me a 
		história que Paradona nos conta, deve correr límpida como os rios. Como 
		o vento. Como o sussurro das florestas. Repare-se, por exemplo, na 
		beleza e simplicidade discursiva do seguinte parágrafo: 
		«Muito 
		devagarinho, a porta se abriu e, por entre os seus aros, apareceu ela 
		inteira, a transbordar para fora os seus encantos de divindade. Parecia 
		mulher que fora fogo e lume e brasa de corações apaixonados, em Sena. As 
		suas missangas e tatuagens não se podiam parecer com outras senão com 
		aquelas de cujo íntimo saíram mensagens que regozijaram toda a rapaziada 
		da região, e também as almas agrilhoadas no desconhecido. Ali estava 
		ela, aquela que podia ser a que fora venerada pelos espíritos passados, 
		presentes e futuros de Sena, Caia e de toda a terra». 
		Os romances que 
		vem sendo publicados nos últimos tempos em Moçambique, particularmente 
		“Tchanaze, a Donzela de Sena”, desmentem de forma categórica alguma 
		corrente de pensamento segundo a qual o romance é uma arte narrativa com 
		que os moçambicanos lidam com dificuldade, e com menos competência, 
		talvez até inabilidade. Para a estudiosa Ana Mafalda Leite, o romance é 
		um género de hibridação de formas, e, provavelmente, os moçambicanos 
		escolhem e optam por “modelos” próprios, em via de formação, diferentes, 
		por conseguinte, acabando por escapar a outros modelos considerados 
		canónicos. Por isso, a leitura do romance moçambicano provoca uma certa 
		perplexidade ou estranheza, uma vez que não se rotula ou encaixa em 
		formas previamente conhecidas, inaugurando outras, experimentais, e 
		menos convencionados. É nesse contexto experimental que se deve inserir 
		o romance “Tchanaze a Donzela de Sena”, um romance surpreendente, não 
		apenas pela sua temática, mas por esse seu carácter experimental, onde 
		podemos encontrar novas formas que em ultima estancia, não apenas 
		testemunham a vitalidade do romance moçambicano, como também asseguram 
		que este livro de Carlos Paradona Rufino Roque vai ser nos próximos 
		tempos uma das grandes referências sempre que estiver em causa a análise 
		do novo romance moçambicano. 
		  
		Março/2014 |