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TEXTO QUE NIKOLAI GOGOL ESCREVEU COM A MINHA MÃO QUANDO
ESTIVE EM SÃO PETERSBURGO
(como não sei russo, agredeço ao meu
amigo Alexei Paschitnow esta
tradução)
ERA uma cabeça decapitada e uma perna amputada
e uma mão sem braço
que seguiam pelos campos e pelos bosques e mordiam
raivosamente a terra com a ira da exenteração.
iam em busca de um corpo que os unisse,
que os unisse como uma trindade,
um corpo nascido do sangue e da terra,
talvez com um pouco de sémen de deus e uma pitada
de cuspo do diabo.
cada qual tinha feito parte do corpo de três soldados
que morreram na primeira grande guerra,
um francês. um alemão e um português.
e os três lá seguiam, lá seguiam lado a lado
à procura de um corpo sonhado, lá seguiam lado a lado
um corpo que os pudesse unir como uma trindade.
não era preciso ser muito belo, nem mesmo perfeito
bastava que os mantivesse integramente unificados,
para que assim pudessem ser úteis
úteis como se deve ser, úteis como se deve ser
talvez de novo como soldados.
mas a verdade é que os três desesperados
não se conseguiam entender, pois cada qual
só falava a sua própria língua.
e lá iam, lá iam, dialogando e gesticulando,
gesticulando e dialogando, cada qual na sua língua.
um dizia para aqui, outro dizia para ali,
um puxava para aqui, outro puxava para ali,
mas ninguém se entendia,
ninguém se conseguia entender.
e assim foram caminhando,
caminhando através das noites,
caminhando através dos dias, caminhando noite e dia
até que certa manhã, chegados a uma encruzilhada,
já cansados de tanta discussão,
resolveram cada qual seguir o seu caminho,
pois aquela trapalhada já não tinha qualquer sentido.
e cada qual seguiu o seu caminho ,
cansados, já sem sonhos nem esperança,
cada qual seguiu o seu caminho
pois é verdade
que havia três falas, mas faltava a linguagem.
ii
TEXTO QUE DANTE ALIGHIERI ESCREVEU COM A MINHA MÃO
BORGIANO
CONTAVA-ME a minha avó que Jorge Luís Borges viveu, como exilado
político, durante alguns anos,
em Albergaria. Albergaria é a aldeia que me viu crescer, uma aldeia
enterrada na beira - alta com a
Serra da Estrela como pano de fundo. enfim, uma aldeia serena como o
centro da criação.
quanto a Borges, que seu saiba, da sua biografia não consta que
tenha sido refugiado político, nem
tenha estado em Albergaria.
mas a minha avó dizia que sim e sim. e eu nunca fui capaz de a
contrariar.
perguntando - lhe como era Borges, dizia - me que era um homem
amável, por vezes irónico, e que
trazia sempre uma enciclopédia debaixo do braço e era bem parecido,
mesmo bonito, os seus olhos
até faziam lembrar os de Homero.
porém, havia dias em que ficava muito irado, então deitava-se a
correr, embrenhava - se nos matagais
de Albergaria e só aparecia alguns dias depois com o vestuário todo
esfarrapado, os olhos muito
vermelhos, os cabelos compridos e a barba por fazer.
e quando a minha avó lhe perguntava por onde andou e o que andou a
fazer, ele respondia:
fui ao Inferno, fui ao Inferno.
e o que foi lá fazer?
fui ver se conseguia encontrar o caminho para a famosa
Biblioteca de Babel, pois segundo os anais de Ovídio há uma passagem secreta no Inferno que vai dar à
porta principal dessa biblioteca. mas ainda não foi desta que a encontrei. terei de lá voltar.
contava -me a minha avó que, durante o tempo que viveu em
Albergaria, Borges terá ido cerca de 20
vezes ao Inferno e terá mesmo escrito um volume de contos
sobre essas descidas ao Inferno, com o título: Estadia no inferno.
ao dizer a minha avó que esses contos me eram desconhecidos, embora
sendo eu um profundo
conhecedor da obra de Borges, ela respondeu:
esses contos, meu neto, nunca chegaram a ser publicados.
lembro-me que na última noite que Borges passou em Albergaria, recebeu a visita de um homem estranho que
falava uma língua estranha (provavelmente aramaico).
a verdade é que algumas horas depois de esse estranho ter
deixado a casa de Borges, ouvi Borges gritar:
maldito! maldito! levou-me o meu livro com as memórias do
Inferno. maldito! maldito!
um dia depois, Borges abandonava Albergaria para mais não voltar.
ii
O FANTASMA DE JEAN PIERRE DUPREY ESCREVE
UM POEMA COM A MINHA MÃO
É SABIDO que os fantasmas gostam de casas
obscuras e abandonadas
é sabido que deambulam pelos bosques
com rostos de crianças nocturnas
e que gostam de violar as coisas sagradas
e que sopram a luz da lua por entre os dedos
é sabido que não têm medo da morte
por vezes aparecem nos becos mais sujos
das ruas periféricas e assustam os passantes
fazem também longas viagens através
das noites nos comboios suburbanos
e bebem vinho avinagrado e fumam
fumam muito, e cantam...
por vezes, quando o revisor aparece,
transformam-se em mariposas e o revisor
não imagina que os fantasmas vão ali
e que tomaram conta daquele comboio
e que o condutor do comboio também é um fantasma
pelo amanhecer, os fantasmas regressam
ao silêncio das casas obscuras e abandonadas
e exaustos adormecem e sonham como crianças.
DITADOS
Luís Costa
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