REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezembro-janeiro | 2014-15

 
 

 

 

JOÃO RICARDO DIAS


«O Serafim»
e outros poemas

João Ricardo Dias é poeta, jornalista e, entre outros ofícios, cavaleiro templário pelo Priorado do Rio de Janeiro da OSMTH – Porto (PT). Mantém um blog sobre esoterismo, chamado Fé Mística. Publicou seu primeiro livro em novembro de 2014.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Dir. Maria Estela Guedes  
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O Serafim

 

Olhei o clarão de um fogo tempestuoso

 

Sete anjos de pérolas e esmeraldas nasciam do silêncio rubro e primitivo

 

Brancos como uma jovem mulher revestida de sol

com a lua debaixo de seus pés

e o cristal mais deslumbrante sobre sua cabeça

 

Eles eram como a virgem poderosa

(mater admirabilis)

cintilante, puríssima e imaculada

 

Escorriam continuamente por minha pele sepulcral

feito gangrenas irascíveis de escárnio e mutilações   

 

Seus cabelos eram como arco-íris em dias de chuva e

seus olhos como uma águia voando sobre rios de fogo e santuários de safira

 

Mãos e braços miméticos ao touro de Creta em seu labiríntico palácio

 

Suas pernas eram como candelabros de ouro polido

e

suas asas

graciosas como a neve

 

Um estrondo de águas torrenciais – como um leão

sobre um rebanho de cabras nas encostas de Galaad –

um dos serafins voou. Partiu-se.

 

(Cacos de céus caídos sobre o horizonte violento) 

 

As labaredas percorrem o infinito 

 
 

Minha adorada

A noite sussurra-me um nome, o seu,

e eu extasiado por me afogar em ti

mergulho os lábios no mais secreto íntimo

de seu reino: com sopros e gemidos

e com todos os deleites da Terra

 

na escuridão da janela às seis horas

o dia se entrega à vastidão prateada

e fria da noite surda, alva e estrelada –

como um livro de poesias, ainda em branco,

limpo da vil sujeira das palavras

 

minha adorada! Quero suavemente

senti-la, subir por sua tez, sua boca

senti-la na língua, por todo o poema

e desaparecer no silêncio úmido

de sua imagem, sua sombra e de seu ser 

 
 

Sou seu

 

Meu corpo solitário, inteiro, é seu

Assim como é seu todo o meu perfume...

Minha cor, quase preta, minha voz...

Meu desejo incandescente... o calor...

 

Sou seu no silêncio escuro... na música...

ou no paladar doce da avelã...

sou seu na cidade ou no vilarejo

às dez horas, à tarde ou na meia noite

 

na quietude quase sombria dos sonhos

perdido numa delicadeza alva,

bela, sussurrada pela tua voz

sou seu, dentro ou fora de ti, sou seu

 
 

Seu sabor 

 

Sua voz doce, seu sabor, como uma uva –

afável – em um lindo tom carinhoso

como o voo livre de uma borboleta

 

sua pele – uma bela e jovem videira

com os frutos a brotar de seus galhos

cada dia mais fortes e vigorosos

mas sem perderem a delicadeza –

uma inacreditável sinfonia

de carícias: com toques e desejos

e toda beleza que de si emana

 

os seus olhos são duas grandes potências

a bombardear minha paisagem trêmula

e inaudível à música dos trovões

 

suas mãos são como o toque do Sagrado

vindo à luz para libertar os homens

que, como eu, estão acorrentados à dor

 

Todo o mel, que já jorrou de sua língua

eu quis beber e nele cair ébrio e único –

como no redemoinho de seus beijos

prestes a afogar a fauna silvestre –

de minha alma adormecida – ao horizonte –

 

sua boca, suas mãos, seus olhos, sua voz

tudo é tão doce em ti... tudo é tão meigo...

tudo é tão simples... tal qual uma floresta

sem lugar para entrar ou para sair

onde eu te aguardo em um total silêncio

como um verso livre e rubro esperando

eternamente o incêndio na poesia

 
 

As tardes de uma infância

a Sonia Rute

 

Rubro, o entardecer perfura

com açúcares e perfume a sua tão delicada casa

 

sobre o teu bosque o dulçor inquieto do veludo

deixa, no paladar, o sabor do vento e da tarde musicada

 

o silêncio dourado da melancolia brinca

no amarelo das tardes com o anoitecido véu da nostalgia

 

 
 

Ode à natureza                              

 

A textura de seu néctar

É a de um suave sol iluminando a cor violeta da primavera

 

sobre a vastidão dos jardins

um campo inteiro

com

bromélias e orquídeas, 

beija-flores

maritacas e canários

 

a paisagem

floreia os Ipês

 

e o açúcar de seus prazeres

a adoçar minha mais intensa música

é como um cisne

penetrando em bucólicos quadros impressionistas

 

os pássaros cantam a embriaguez

de sua alma

 

e o teu ventre

entrelaçado de flores

tece, solenemente, as seivas invisíveis do idílio

 

a ternura das abelhas

a beijar-lhe

lembra-me os faunos lúdicos

com suas flautas

incitando o bailar das fadas – essas criaturas luxuriosas

de inconfessáveis paixões –

 

os atabaques inebriantes

exalam os perfumes de uma borboleta

incendiada por fagulhas

azuis

afeitas à serenidade dos corpos

 

e agora são os anjos que cantam

a sinfonia dos santos e

a prece dourada dos monges 

 

tu és assim. única e silenciosa

como uma poetiza, enclausurada em um convento,

à espera do poema

sem perceber que si só

já é uma deliciosa ode à natureza

 

 
 

Suicídio I

Uma espanhola  

gira

e

gira

 

circulando 

o acorde vermelho

e o sangue

que  jorra em seu ventre

 

manchando, violentamente, as córneas

 

os pulsos

 

e as lágrimas

 

luzes invisíveis de um espetáculo

silencioso

 

a morte é tão bela e triste

num suicídio

 

que tem no último suspiro a cor rubra

 

e

 

no instante seguinte

 

o negro tom de uma guitarra flamenca

exalando as notas de uma música póstuma

 

(um réquiem doente sob o crepúsculo)

 

o suicídio é uma escuridão tardia

como os desejos dormentes de um clérigo

 

e possui as cores silvestres de uma rosa

aquela

cujo o espinho me feriu 

 
 

Sobre a solidão

Ainda estou só

 

ante o mundo e seus mistérios

ante as tardes e as ruas arborizadas e feitas de pedras

ante as curvas do anoitecer e as soleiras das portas

 

Ainda estou só

 

assim como o silêncio doce

e a lâmina – fria – sigo

rasgando as paredes, o cascalho

as chuvas, o granizo e

o orvalho

 

Ainda estou só

 

Pela floresta inquieta e vermelha

– como o traje dos cardeais –

que assopra sua fronte de madeira

a golpear ferozmente minha face

e me enterrar em uma barbárie

e me desafiar ante a masmorra lírica

da solidão

sem cor

sem brio

sem vida

 

Ainda estou só

 

Essa condição é dura – às vezes bela – feito mármore

ou os olhos de uma donzela

feito a Lua: pedra e prata e

brilho

como um diamante

não se quebra

perfura

 

Ainda estou só

 

Como a melancolia incansável da garoa

que insiste em cair

mesmo quando os olhos

já não conseguem mais brotar lágrimas

e os sentidos

diluídos na voz dourada das horas

se atêm ao indizível

ao insolúvel

ao incompreensível

 

Ainda estou só

 

Lamentando as distâncias

o beijo

engolindo a eternidade adormecida das estrelas

diligentes ante a queda crepuscular dos dias

ante a comida e a bebida

ante o sonho e os suspiros

ante a vida e a pós-vida

 

Ainda estou só

 

E o caderno em que escrevo

jorra sangue e poeira

incendeia meus versos

e meus erros

implode em palavras e vazios

sussurra a metamorfose de meus espinhos

e esconde a loucura

de minhas mãos

 

Ainda estou só

 

Com a boca tremendo

sob a fúria violenta do despertar dos lábios

no horizonte intolerável das paisagens de luz e fogo

no ponto áureo

no coração

na razão

na ilusão

 

sozinho eu estou só

 

Sozinho

e sem sentido

com a música púrpura dos acordes

em gestos e gemidos

cores, sabores

ritmos

posições

 

Eu ainda estou só

 

Mesmo com o universo

deitado em minha cama

espalhado em livros e poesias

e prantos que percorrem meu corpo

e me expõe: tatuagem lúdica de uma

loucura

gritos, aflição

ternura

 

eu continuo só 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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